O PODER DA LITERATURA E O ETERNO CONFLITO ENTRE A FÉ E O SABER, SEGUNDO STANISLAW BALNER.

Em uma conversa pública com bom público, numa casa no Humaitá no Rio de Janeiro, ao iniciar a sua fala, perto do último fim de século, também chamado de rodada do milênio, o grande psicanalista e cientista social, também afeito a fazer resenhas literárias, Jurandir Costa Freire disse que a sua filiação era à tradição judaico-cristã e ao racionalismo grego. O tema era uma conversa sobre o mal e não apenas sobre o mal-estar na contemporaneidade.

É claro que a ética cristã foi e é essencial, seja pela justeza dos dez mandamentos ou da excelente sistematização dos pecados capitais: ira, inveja, avareza, luxúria, gula, soberba e preguiça. Ao assumir filiação à tradição judaico-cristã, Jurandir Costa Freire sabia disso!

As ações das igrejas sempre se pautaram em culpar quem desrespeitasse os dez mandamentos ou cometesse pecado capital. Por séculos e séculos, antes do amadurecimento pleno das ciências, que começou com Galileu Galilei.

A grande diferença entre a Igreja Católica Apostólica Romana e outras igrejas é a de que a igreja nunca deixou de aceitar a existência do pecado, enquanto no fundamentalismo religioso se crê na inexistência do pecado sob a presença de deus. Apesar de durante a Inquisição a Igreja ter tentado extinguir o pecado, sem sucesso e com muito sadismo e torturas.

Na época da Reforma Protestante, uma das ações da Igreja cristã foi a de criar o barroco, se os protestantes criticavam a adoração das imagens, aí mesmo é que com a arte barroca o cristianismo tradicional reafirmou a adoração às imagens. O anjinho barroco, roliço e fofinho em nossa opinião é uma das razões da emergência da pedofilia no clero católico, só combatida com honestidade no papado atual do Papa Francisco.

Por seu lado, no campo pentecostal também há o pecado não pecado. Um jovem bonito que parecia uma moça foi o moço do romance Morte em Veneza, Fera Delicada um dia nos contou: O Pastor John John Pentecolhão me convidou para ir a sua casa para estudos bíblicos, terminou que transou comigo quando descansei meus cotovelos na janela. Gostei, foi bom. Mas depois do sexo o Pastor me chamou para realizarmos uma oração para apagar nosso pecado. Não gostei. Nunca mais voltei naquela igreja e nem a nenhuma outra.

O fato é que o cristianismo no mundo ocidental funcionou muito bem como algo essencial ao liame social, laço forte entre as pessoas a partir de princípios claros, apesar dos excessos do patriarcado, laços esses que precisavam se afrouxar porque é inadmissível, por exemplo, aceitar que uma mulher jovem se suicidasse por causa da perda da virgindade, como ocorria até os anos cinquenta do século XX.

Isso tudo começou a ser questionado principalmente a partir dos anos sessenta a oitenta do século passado. Um dos méritos do movimento de maio de sessenta e oito na França, que fez a juventude incendiar o mundo foi o do declínio do poder do pater família, no plano político a herança dos anos sessenta é a da liberação dos costumes com surgimento de narrativas orais catárticas ou escritas dos diversos gêneros.

Hoje há seitas com messias em igrejas realizando a partir do poder da fé farsas de cura ou algumas curas até, quando a sugestão é forte o bastante para “curar” um histerismo. Como se a presença de deus acabasse com a existência do pecado. Livros como o crime do Padre Amaro, casos como o do menino e do Pastor, filmes como A má educação de Pedro Almodóvar, são melhor entendidos se partirmos da premissa que com a exceção de Charles Chaplin toda a filmografia foi realizada a partir de escritos literários, mostrando situações em que a fé quer modelar o saber, isto é, dizer que há coisas que não merecem ser aprendidas, às vezes com razão outras vezes não, quando por exemplo a onipotência usa a fé para torturar os outros ou levar um caso a um desfecho trágico.

O estudo das letras e o exercício da literatura ocupa o espaço entre a fé e o saber que impede que o que se saiba seja absoluto.

Mas ainda assim, as pessoas se aglomeram em crenças como a de que se vacinar é inútil, que o importante é ter a doença naturalmente, numa negação de evidências que só os cegos não veem. Procurando tratamento nos coachings, grandes charlatões com falsas terapias.

Mas a falsa arte, aquela que se propõe a suprimir a dramaticidades de uma ação é tão perversa quanto a fé onipotente e hipócrita. Um museu permitiu a desempenho de uma criança indo em direção de um homem que estava pelado. Oras a nudez é sempre excitante. Aos homens e mulheres que defendem isso como expressão de arte, cabe dizer que há atitudes de certos canalhas que são capazes de causar constrangimentos mesmo dentro da maior suruba. Nelson Rodrigues dizia que o pudor é afrodisíaco, Luís Fernando Veríssimo escreveu que os jovens de hoje (tenho certeza que não são todos) não sabem o prazer da descoberta das coisas aos poucos. Nossa geração disse-me uma moça: foi exposta a tudo de uma vez. Não se expõe uma criança à excitações que o psiquismo dela não pode suportar. Tais canalhices “artísticas” fez que, no Brasil, a extrema-direita se apossasse do discurso da moralidade.

O pior é que sempre quando a permissividade alcança todos os olhares, a reação é proporcional e contrária: são às vezes os piores segmentos que reagem tentando levar de volta o mundo ao tempo da inquisição e do falso moralismo, ao confronto desinteressante com os piores representantes do ultraliberalismo, ou, se quiserem, contra fundamentalistas punheteiros ou tarados, levando de roldão pessoas que não sabem por onde caminhar diante de tanta confusão.

Muita má informação no âmbito do cristianismo se deve à teologia da libertação que criou muito conflito entre a fé e o saber, ao saber referido a partir de uma das piores formulações de Karl Marx para quem a miséria da filosofia era a de que a filosofia não possuía uma práxis e que a práxis revolucionária com o uso da violência em guerras insurrecionais seria o melhor para todo o mundo e a melhor solução.

A fé e o saber nunca deixarão de estar em conflito. Agradecemos à fé a inexistência legal do ser sem pai nem mãe gerado em laboratório genético. Repudiamos a fé que se nega a discutir a questão do aborto, quando todo mundo conhece alguém que já fez o aborto, que diz que o rock é satânico, porque acreditamos apenas na fé como a vontade de alguém se tornar melhor. Tornar-se melhor a partir do usufruir a boa leitura de um livro, por exemplo, a Bíblia. Não acreditamos na fé que produz textos ou espetáculos em elogio à própria bondade de seres superiores porque essa é a fé exercida no fascismo de direita ou de esquerda, na qual nascem os mitos que acabam por governar um país como Lula ou Bolsonaro. Lula que dizia que “os nossos militantes vão dar porrada nesses coxinhas”, Bolsonaro que comparece a manifestações públicas nas quais seus militantes usam de violência contra jornalistas ou manifestantes de outras posições políticas ou da realidade.

A questão do aborto, por exemplo, poderia ser decidida em plebiscito.

O racionalismo grego é o que permite um entendimento menos raso de tudo o que acontece hoje. Religiões e dogmatismos políticos nunca possuem real dimensionamento do trágico, governos de segmentos sempre querem que a outra metade seja aniquilada, isso faz com que qualquer conversação política vire questão de vida ou morte. Precisamos de um presidente do Brasil que cuide dos problemas nacionais e não governe apenas para o segmento a que seja simpático dizendo que os outros tem mais é que morrer. Um presidente que não destrua a arte por ser conservador e que também não esculhambe a arte com espetáculos escatologicamente negativos ou doutrinários, como pretendeu o lulopetismo. Da mesma forma que repudiamos a doutrinação marxista, repudiamos o ensino baseado na ultra direita que é a expressão do fascismo, no qual o último espetáculo sempre é o da decadência moral semelhante ao espetáculo dos pelados no círculo fechado pelo dedo no cu de quem está adiante.

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 06/12/2020
Código do texto: T7128917
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