Sucessão. Herança Digital. Partilha. Redes Sociis. Regulamentação
Sucessão. Herança Digital. Partilha. Redes Sociis. Regulamentação
O direito das sucessões é um ramo do direito civil que regula a transferência de bens e direitos de uma pessoa após a sua morte. Este ramo do direito estabelece as regras e procedimentos que devem ser seguidos para a transferência de herança de uma pessoa para seus herdeiros legais.
O direito das sucessões determina como os bens de uma pessoa serão distribuídos após sua morte, quem são os herdeiros legais e como será feita a partilha dos bens. Além disso, estabelece as regras para a elaboração de testamentos, que é um documento que a pessoa deixa em vida para expressar sua vontade sobre a destinação de seus bens após sua morte. O direito das sucessões também define os direitos e deveres dos herdeiros e legatários, assim como as obrigações do inventariante, que é o responsável por administrar a herança e garantir que a partilha seja feita de acordo com a lei.
Em resumo, o direito das sucessões é uma área do direito que visa garantir a transferência ordenada e justa dos bens de uma pessoa após sua morte, respeitando a vontade do falecido e protegendo os direitos dos herdeiros legais. A previsão legal sobre direito das sucessões está contida no Código Civil brasileiro, em seus artigos 1.784 a 2.027. Os artigos 1.784 a 1.790 tratam da abertura da sucessão, ou seja, do momento em que os bens do falecido passam para seus herdeiros. Já os artigos 1.791 a 1.824 estabelecem as regras para a sucessão legítima, ou seja, a forma como os bens do falecido serão distribuídos entre seus herdeiros legais. Os artigos 1.845 a 1.850 tratam da sucessão testamentária, que é a forma de sucessão em que a pessoa deixa um testamento para expressar sua vontade sobre a destinação de seus bens após a morte. Além disso, o Código Civil também estabelece as regras para a partilha dos bens, a responsabilidade do inventariante, a aceitação e a renúncia da herança, entre outras questões relacionadas ao direito das sucessões. Outras leis também podem ser aplicáveis ao direito das sucessões, como o Código de Processo Civil e a legislação tributária, por exemplo, que estabelecem procedimentos e regras específicas para a realização do inventário e a tributação da herança.
Por outro lado, juridicamente, bens digitais seriam ativos intangíveis que podem ser comercializados, compartilhados ou distribuídos por meio eletrônico, como arquivos de texto, áudio, vídeo, imagens e softwares. Tais bens são diferentes dos bens físicos, tais como carros, casas e roupas, porque não possuem uma forma física ou tangível.
E isso influencia no direito sucessório.
A herança digital tornou-se mais relevante à medida que mais pessoas passaram a armazenar informações e bens digitais na nuvem e em outros dispositivos eletrônicos. Nessa toada, o relevante questionamento surgido diz respeito à destinação dos bens digitais quando o respectivo titular falece, dada a natureza diferenciada do referido acervo.
O presente ensaio se justifica, pois, consequentemente, alguns pontos importantes da doutrina de herança digital incluem: a importância de preparar um testamento digital; a necessidade de fornecer acesso às contas digitais; os desafios legais associados à herança digital. De fato, nota-se que a doutrina de herança digital está evoluindo à medida que mais pessoas começam a lidar com questões relacionadas a bens digitais. Evidentemente, mostra-se importante que as pessoas estejam cientes dessas questões e tomem medidas para garantir que seus bens digitais sejam distribuídos de acordo com seus desejos após a morte.
O mundo globalizado e em constante transformação intensificou o desenvolvimento tecnológico e dos meios de comunicação de uma maneira quase imensurável.
Não por outra razão, diariamente, são produzidos, transmitidos e consumidos dados e informações sem precedentes, com aceleração massiva da comunicação e efeitos percebidos nos mais diversos âmbitos individuais e sociais. Alguns dos efeitos gerados por tamanha produção digital incidem precisamente sobre a vida dos indivíduos, os quais, já em grande medida, utilizam-se das tecnologias para os mais variados fins, que incluem o próprio trabalho, família, estudos, negócios, entre outros.
Nesse sentido, os bens digitais são considerados bens imateriais e são protegidos pelas leis de propriedade intelectual. Podem ser objeto de contratos de licença, de cessão de direitos autorais ou de transferência de titularidade, como qualquer outro bem protegido pela lei.
A princípio, os bens digitais poderiam ser protegidos por direitos autorais, patentes, marcas registradas ou outras formas de proteção legal. Os detentores desses direitos têm o direito exclusivo de reproduzir, distribuir ou exibir esses bens, e podem exigir que outras pessoas obtenham sua autorização antes de usá-los. Ocorre, que com a crescente digitalização de informações e a popularização da internet, os bens digitais têm se tornado cada vez mais importantes na economia e na sociedade em geral, exigindo uma regulamentação e proteção adequadas.
A doutrina sobre herança revela-se também um conjunto de ideias e princípios que se referem à transmissão de bens digitais após a morte de uma pessoa, desde contas de mídia social e e-mails até arquivos de música e fotos digitais.
Algumas dúvidas elementares naturalmente surgem: O que é considerado herança digital? Quem tem direito à herança digital? Como é possível acessar contas e informações digitais após a morte de alguém? Quais são as leis em vigor em relação à herança digital em diferentes países? Como é possível se preparar para a herança digital, ou seja, o que se pode fazer para garantir que os bens digitais sejam transferidos ou protegidos após a morte?
Herança digital, o que é? Definimos herança digital como o patrimônio deixado por uma pessoa na forma de arquivos de texto, áudio, vídeo, imagens, dados pessoais, contas online e outros dados compartilhados digitalmente durante a vida.
Pode-se dizer que Herança digital é o conjunto de ativos digitais, como contas de e-mail, perfis em redes sociais, arquivos na nuvem, sites, fotos digitais e outros conteúdos criados e armazenados em formato digital, que são deixados por uma pessoa após sua morte.
No contexto jurídico brasileiro, a ausência de uma legislação específica para regular a herança digital representa um desafio significativo. Os avanços tecnológicos têm impactado a forma como lidamos com os bens digitais de uma pessoa falecida.
A sucessão post mortem, em especial quando o patrimônio a ser transmitido é digital, fez nascer nos últimos anos o termo “herança digital”.
A sucessão digital é assunto cada vez mais relevante, seja pelo evidente avanço da tecnologia, que possibilitou que muitas pessoas passassem a possuir uma quantidade significativa de bens digitais, seja pela nova preocupação com a privacidade e proteção dos dados que são gerados.
Dessas preocupações surgem algumas perguntas: o que acontece com esses ativos após a morte do titular? São transmitidos aos herdeiros? Não existiria uma violação à privacidade?
Na 9ª Jornada de Direito Civil, o Conselho da Justiça Federal aprovou o enunciado 687, reconhecendo que o patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido. Isso sinaliza uma mudança significativa na percepção jurídica dos ativos digitais e destaca a importância de uma abordagem mais abrangente para lidar com a herança digital.
Cada plataforma tem sua própria abordagem para lidar com o legado digital de um usuário após sua morte. Por exemplo, o Facebook oferece a opção de transformar um perfil em uma “página de homenagem”, enquanto o Google introduziu a funcionalidade “Conta Inativa”. No entanto, esses são apenas alguns exemplos entre muitas políticas diferentes adotadas pelas diversas plataformas disponíveis, destacando a falta de padronização e a complexidade do assunto.
De acordo com a doutrina de Bruno Zampier, bens digitais podem ser definidos como: bens incorpóreos, os quais são progressivamente inseridos na Internet por um usuário, consistindo em informações de caráter pessoal que lhe tragam alguma utilidade, tenham ou não conteúdo econômico”. O autor diferencia os bens digitais em patrimoniais e existenciais, havendo ainda aqueles que conteriam ambos os aspectos – os chamados bens digitais patrimoniais-existenciais.
Os bens digitais são classificados em três categorias distintas: patrimoniais, existenciais e patrimoniais-existenciais. Os bens patrimoniais possuem uma natureza predominantemente econômica e incluem moedas virtuais, websites, aplicativos, entre outros. Já os bens existenciais têm um valor sentimental e são preservados em redes sociais, como fotografias pessoais e e-mails. Por fim, os bens patrimoniais-existenciais representam uma combinação das duas categorias anteriores, possuindo tanto características econômicas quanto pessoais. Esse fenômeno se manifesta à medida que o conteúdo compartilhado pelo titular no ambiente virtual desperta interesse em outros, transformando-se em fonte de receita, como os perfis em redes sociais que, devido à sua significativa audiência, são monetizados, gerando ganhos financeiros para seus criadores.
Nessa linha de raciocínio, os bens digitais, ainda podem ser divididos em:
Conteúdo digital - São informações, documentos, arquivos, obras intelectuais, como textos, imagens, vídeos, músicas, softwares, jogos eletrônicos, entre outros, que são armazenados e acessados por meio de dispositivos eletrônicos.
Direitos digitais - São os direitos relacionados aos conteúdos digitais, como os direitos autorais, direitos conexos, direitos de propriedade intelectual, direitos de personalidade e outros direitos específicos que se aplicam ao ambiente digital.
Ativos digitais - São os elementos de valor no ambiente digital, como domínios de internet, marcas virtuais, patentes de software, bases de dados eletrônicas, criptomoedas, tokens e outros ativos financeiros digitais.
Identidades digitais - Referem-se às informações e dados pessoais que identificam e representam uma pessoa no ambiente virtual, como senhas, logins, perfis de redes sociais, endereços de e-mail, entre outros.
A partir dessas definições já podemos perceber que a proteção e a regulação dos bens digitais envolvem desafios específicos devido à natureza virtual desses elementos.
Há uma decisão, por sinal recente, da 3ª câmara de Direito Privado do TJ/SP que autorizou uma mãe a acessar os dados digitais do celular de sua filha falecida que marca um avanço importante nesse cenário. Ao reconhecer que o patrimônio digital pode fazer parte do espólio e ser transmitido como parte da sucessão, essa decisão sinaliza uma mudança na percepção jurídica dos ativos digitais.
Além disso, o uso do testamento e do codicilo como instrumentos legais para lidar com a herança digital tem se mostrado uma solução viável. Esses documentos permitem que o indivíduo manifeste sua vontade quanto à destinação de seus bens digitais após a morte, proporcionando uma base jurídica sólida para sua execução.
Uma abordagem interessante que tem sido adotada é a nomeação de dois inventariantes nos inventários: um para administrar os bens tradicionais e outro para lidar especificamente com os bens digitais. Essa divisão de responsabilidades reconhece a natureza única dos ativos digitais e a necessidade de tratamento diferenciado.
Enquanto aguardamos uma legislação mais específica sobre o assunto, a abertura de testamentos ou codicilos continua sendo a melhor opção para garantir a proteção e a destinação adequada dos bens digitais após a morte.
Felipe Hernandes e Byanca de Freitas Barbosa publicaram excelentes considerações em Redes Sociais sobre essa intrincada questão ante a não regulamentação do tema.
Pois bem. Lembramos que o patrimônio é composto por todos os bens e direitos de uma pessoa, enquanto a herança digital refere-se especificamente aos bens e informações digitais deixados após o falecimento. Embora a herança digital faça parte do patrimônio, ela possui características próprias devido à sua natureza digital.
Em que pese algures pinceladas sobre classificação de bens digitais ainda pode-se dividi-los em Bens digitais com valor econômico; Bens digitais com valor sentimental. Bens digitais com valor econômico, incluindo os ativos digitais que possuem valor monetário, como criptomoedas, domínios de internet valiosos, programas de computador desenvolvidos pelo falecido, entre outros.
Conteúdos digitais que possuem valor emocional para os familiares, como fotos, vídeos, mensagens, e-mails e postagens em redes sociais.
Não existe regulamentação no Brasil para a herança digital, e, também, essa realidade não é exclusiva do Brasil, afinal, os avanços tecnológicos andam a passos largos e os processos legislativos, a nível global, foram moldados com uma série de burocracias que demandam tempo, tempo esse que está em completo descompasso com a era da informação que vivemos.
Em 2022, durante a 9ª Jornada de Direito Civil, o Conselho da Justiça Federal aprovou o enunciado 687, reconhecendo que o patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido. Isso sinaliza uma mudança significativa na percepção jurídica dos ativos digitais e destaca a importância de uma abordagem mais abrangente para lidar com a herança digital.
Interessante decisão que vem da Alemanha, podemos considerá-lo como leading case alemão o emblemático caso que serviu como norte para a comunidade internacional sobre a transmissibilidade da herança digital.
Os pais de uma adolescente de 15 anos, vítima de um acidente fatal ocorrido no metrô de Berlim, em 2012, ingressaram com ação contra o Facebook por terem sido impedidos de acessar a conta da adolescente na plataforma. A conta da adolescente havia se transformado em “memorial” e as circunstâncias de sua morte não estavam esclarecidas. Os pais da adolescente suspeitavam de suicidio e o acesso à conta era no intuito de averiguar se existiam indícios de mobbing – perseguição psicológica ou moral empreendida contra um indivíduo – ocorrido no colégio. O Facebook esclareceu que a transformação da conta em memorial, com a consequente vedação de acesso a qualquer pessoa, tinha como intuito proteger não apenas os direitos do usuário falecido, mas também os direitos de seus contatos. Segundo o argumento da plataforma, os interlocutores (amigos do falecido) entendem que as mensagens trocadas sejam mantidas em sigilo e, permitir que herdeiros tenham acesso, violaria o direito à privacidade. O juiz de primeiro grau (LG Berlin), em 17/12/2015, concedeu os pedidos feitos pelos pais da adolescente e determinou que o Facebook liberasse o acesso à conta da falecida, sob o argumento de que a herança digital do falecido pertence a seus herdeiros, podendo eles acessar todas contas de e-mails, celulares, WhatsApp e redes sociais. A decisão foi reformada em recurso, negando acesso a conta sob o argumento de violação ao sigilo das comunicações dos interlocutores. Foi reconhecido que, a princípio, ocorreria a transmissibilidade das pretensões e obrigações do contrato celebrado pela falecida aos seus herdeiros, contudo, não havia clareza jurídica sobre a transmissibilidade de bens digitais com conteúdo personalíssimo. Em novo recurso, a decisão foi mais uma vez reformada, dessa vez para garantir aos herdeiros o direito sucessório dos pais e a consequente autorização para acesso à conta da filha falecida. A argumentação foi no sentido de que como se tratava de um contrato de utilização celebrado entre a falecida e o Facebook, esse seria transmissível aos herdeiros com a morte. Nesta decisão ainda restou entendido que o direito sucessório à herança digital não ofenderia os direitos de personalidade post mortem, ao direito de personalidade da falecida ou dos terceiros interlocutores, ao sigilo das comunicações e nem às regras de proteção de dados pessoais. Como vimos, o Tribunal alemão aplicou o princípio da sucessão universal, ou seja, todo o patrimônio do de cujus, seja ele analógico ou digital, deve ser transmitido aos herdeiros.
Posicionamento judicial sobre herança digital no Brasil
No Brasil não existe legislação específica sobre o tema e poucos casos foram apresentados ao Poder Judiciário. Os processos judiciais que tivemos acesso giram em torno da privacidade e proteção de dados e do direito sucessório, sendo que as soluções se deram através da interpretação de princípios já constantes no sistema.
Processo nº 0001007-27.2013.8.12.0110 que tramitou em Campo Grande Mato Grosso do Sul: Após o falecimento de sua filha (a jornalista Juliana Ribeiro Campos), Dolores buscou através dos meios administrativos desativar o perfil do Facebook de Juliana, sem êxito. Dolores se sentia incomodada com as mensagens recebidas na página de Juliana. A questão foi judicializada e o pedido liminar foi deferido determinando a exclusão da página sob pena de multa de R$ 500,00 e imputação do crime de desobediência à ordem judicial.
Processo 1119688-66.2019.8.26.0100 a justificativa do pedido foi totalmente oposta. Elza ingressou com ação de obrigação de fazer para manter a conta do facebook de sua filha falecida (Mariana) ativa, sob o argumento de que o acesso ao perfil era uma forma de amenizar a dor da perda. A ação foi julgada improcedente, sendo que a sentença foi mantida em acórdão proferido pela 31ª Câmara de Direito Privado sob a fundamentação de que a plataforma ao excluir a conta, teria agido em exercício regular do direito, por seguir os termos de uso aceitos no ato da contratação do serviço.
Processo 1020052-31.2021.8.26.0562 que tramitou perante a 2ª Vara do Juizado Especial Cível de Santos, foi assegurado o acesso aos dados salvos na conta Apple ID do jovem J.V.D.N. pelos herdeiros necessários, especialmente pelo caráter sentimental, que foi o fundamento do pedido.
A questão principal sobre a transmissibilidade de ativos digitais, discutida no Brasil e ao redor do mundo, é relativa a transmissibilidade total aos herdeiros ou a transmissibilidade parcial, dividindo o acervo digital em patrimonial-transmissível e privado-moral-intransmissível.
Imaginemos que no acervo digital do falecido contenham bens de diversas características e funções, dentre eles: fotos íntimas, diários particulares e até mesmo mensagens trocadas com terceiros.
Não há dúvidas que estamos diante de um patrimônio disponível, sendo plenamente possível dispor em testamento, contudo, caso não exista testamento, será que estamos diante de um patrimônio transmissível por herança? Não existiria uma violação à intimidade, vida privada, bem como do sigilo das comunicações?
As perguntas não têm uma resposta definitiva, alguns doutrinadores e julgadores entendem que por se tratar de um direito da personalidade, não é transmissível.
Por sua vez, outros doutrinadores e julgadores entendem que o direito sucessório autoriza, em regra, a transmissibilidade dos conteúdos digitais, sendo que tal transmissibilidade não ofenderia o direito da personalidade post mortem e que seria irrelevante distinguir as situações jurídicas patrimoniais e existenciais.
A herança digital é uma realidade e o debate sobre o tema se tornará cada vez mais relevante.
A ausência de legislação específica cria desafios para os advogados que atuam nessa área, mas também abre espaço para que os pensadores livres busquem soluções que respondam adequadamente aos novos desafios impostos pelo mundo digital.
É fundamental que os profissionais estejam atualizados e preparados para orientar seus clientes sobre questões relacionadas à herança digital, garantindo a proteção dos bens digitais e o respeito aos desejos dos falecidos.
Guaxupé, 02/06/24.
Milton Furquim