A Impossibilidade de ANPP no crime de maus-tratos contra cães e gatos
A Impossibilidade de ANPP no crime de maus-tratos contra cães e gatos
Aqui vamos dar uma pincelada na Lei 9.605/1998, conhecida como "Lei dos Crimes Ambientais", que tipifica o crime de maus-tratos ou contra a dignidade animal, assim como da Lei 14.064/2020, também conhecida como "Lei Sansão", que cria qualificadora do crime contra a dignidade animal, quando a vítima do crime for cão ou gato. O texto trata da violência como uma elementar do tipo maus-tratos contra animais, visto que “os animais, dentre os quais estão os cães e gatos, são seres vivos dotados de consciência e de capacidade de sentir e sofrer (a senciência), pelo que podem expressar comportamentos afetivos, intencionais e emocionais”.
Sobre o acordo de não persecução penal (ANPP), instituto de justiça negociada celebrado pelo Ministério Público, é bem de ver que é descabido, nos casos em que as vítimas são cães ou gatos. Em relação ao tipo qualificado do crime, previsto no § 1º-A do artigo 32, da Lei 9.605/98, no qual as vítimas são cães ou gatos, tais medidas despenalizadoras não são possíveis, dado não se tratar de infração penal de menor potencial ofensivo. Lembrem que o que se julga é a conduta do agente e o sofrimento impingido à vítima, e não a natureza do ser vitimado. O objetivo é impedir que os violentos se beneficiem dos favores legais, forma correta de política criminal.
Pois bem.
Sempre que tratamos do direito de um animal a não ser maltratado, abusado, mutilado ou mesmo ser morto criminosamente, surge a questão de se pretender equiparar animais a pessoas, o que é um enorme erro, fruto de séculos de indiferença à sorte dos animais, o que remonta à Idade Antiga, quando filósofos gregos, como Aristóteles e Platão, definiram que aqueles seres vulneráveis foram criados para servir ao homem e, por isso, não havia nenhum limite para o exercício desse poder, em que pese o pensamento dos filósofos vegetarianos Pitágoras e Plutarco, que acabaram vencidos em suas ideias. A situação se manteve na Idade Média, com Tomás de Aquino e Agostinho, apesar dos apelos de Francisco de Assis, tido como padroeiro dos animais. Nas Idades Moderna e Contemporânea prevaleceu e ainda se manifesta viva a teoria de Renée Descartes, que equiparou os animais a máquinas e que assim seus gemidos não significariam dor, mas sim um mal funcionamento das suas estruturas, tendo dito que seria inútil se importar com os gritos dos cachorros dissecados vivos, tendo o próprio Descartes praticado essas vivissecções, pensamento esse que repercutiu no mundo científico, tendo o médico Claude Bernard afirmado que o cientista não se preocupa com os gritos e nem com o sangue derramado dos animais em laboratórios, o cientista produz ciência.
Mas uma voz se levantou e deu origem ao reconhecimento que os animais também têm direitos, o filósofo inglês Jeremy Bentham, após analisar a situação dos animais à luz da teoria utilitarista, concluiu que “não importa se os animais são capazes de pensar, mas sim que eles são capazes de sofrer” e com esse pensamento deu origem ao direito dos animais, por serem aqueles seres capazes de sofrer, não importando que sua inteligência seja inferior à do ser humano, pensamento que ainda está em evolução e encontra forte resistência das pessoas que ainda consideram os animais como objetos, fenômeno que é denominado antropocentrismo, que paulatinamente vai sendo substituído pelo biocentrismo, em que toda forma de vida é respeitada.
A capacidade de sofrer, tanto fisicamente, sentindo dor, fome e sede, como emocionalmente, podendo experimentar situações de depressão, ansiedade e estresse, já foi definitivamente comprovada pela ciência, tendo vinte seis dos mais renomados neurocientistas do mundo, inclusive com a participação do astrofísico inglês Stephen Hawkins, se reunido na renomada Universidade de Cambridge/Inglaterra e, após estimular setenta e oito áreas cerebrais subcorticais de mamíferos, aves e até invertebrados como o polvo, publicaram a Declaração de Cambridge de 2012, concluindo que o funcionamento das estruturas neuroanatômicas, neuroquímicas e neurofisiológicas dos animais é tão próximo do que ocorre nas mentes humanas que aqueles seres possuem consciência da sua existência e são capazes de sentir emoções, que serão boas ou ruins, de acordo com suas mentes, e não conforme nossa percepção ou interesse.
E se os animais podem sofrer eles têm o direito de não sofrer, que nada mais é do que o conceito de DIGNIDADE, significando que humanos e também os animais têm dignidade, não ocorrendo, como muitos entendem, uma equiparação entre nós e aquelas outras formas de vida, o que é igual é o direito de não sofrer em razão da crueldade humana, e está claro que os direitos para que nós humanos não tenhamos sofrimento são mais complexos, temos os direitos de família, herança, salário mínimo, educação, previdência, direito a voto, e evidentemente direitos que tais não se aplicam aos animais, a estes são aplicados os direitos que lhes são próprios, denominados “Liberdades”, que são as seguintes: 1) fisiológica – direito de não sentir fome nem sede; 2) saúde – direito de não sentir dor, de não viver em ambientes insalubres, e de ser livre de doenças, tendo direito a assistência veterinária; 3) psicológica – direito de não sofrer medo, angústia e estresse; 4) ambiental - ser mantido em espaço suficiente para se movimentar e se abrigar; e 5) comportamental - direito de poder expressar seu comportamento natural, que a natureza lhes ensinou. Como exemplo dessa liberdade comportamental, os elefantes têm o instinto de tomar banho de terra e depois de água, para formar uma lama que os protege do sol e de insetos, e mesmo que sejam mantidos em cativeiro, o que não deveria acontecer, sentem uma enorme necessidade de manter esse comportamento. E nem precisa dizer que o comportamento natural de um pássaro é voar!
Então já sabemos que dignidade é um conceito que está intrinsecamente ligado ao sofrimento, como dizia o filósofo Kant, dignidade é ter valor intrínseco, é não ser instrumento para a satisfação de outro, dignidade é simplesmente o direito de não sofrer, e esse direito os animais também têm, assim existe dignidade humana e dignidade animal, e uma não existe sem a outra, a única diferença é que os direitos para garantir nossa dignidade são mais numerosos e mais complexos do que aqueles relativos aos animais.
Na Constituição Federal a dignidade do ser humano está escrita logo no artigo primeiro, inciso terceiro, sendo um dos fundamentos da estrutura política do nosso País, e a dignidade dos animais está prevista no artigo 225 e seu parágrafo primeiro, inciso sétimo, quando diz que é direito de todos ter um meio ambiente ecologicamente equilibrado, que, na parte que respeita aos animais considerados como indivíduos, é o direito daqueles de não serem submetidos à crueldade humana, significando que direito animal é também direito humano, é cláusula pétrea, não admite retrocessos, nesse sistema político-jurídico só se anda para a frente, e a principal consequência desse dispositivo constitucional é que animais não são coisas, pela razão óbvia que uma coisa não sofre, estando assim absolutamente inconstitucional, nessa parte, o art. 82, do nosso arcaico Código Civil.
A consequência dessa intepretação das disposições civilistas sob o prisma constitucional é que o bem-estar de um animal sempre deve ser observado, mesmo que seja utilizado para produção, e isso já é reconhecido há pelo menos duas décadas pelo Governo Federal, mas o ramo do direito civilista em que esse reconhecimento do animal como sujeito de direitos mais se aplica é inquestionavelmente no direito de família, nos casos de dissolução de vínculos, para que seja determinada a guarda do animal, direito de visitas e pensão para o sustento do pet¸ não podendo, sob nenhuma hipótese, ser o animal de estimação partilhado como se fosse um bem do casal, o que infelizmente ainda se vê em algumas decisões judiciais. Essa é a posição do Superior Tribunal de Justiça - STJ e do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM (Enunciado 11), considerando a realidade social de que em mais de 44% dos lares brasileiros há pelo menos um cachorro ou gato, todos queridos pelos seus tutores, a propósito, existem mais animais de estimação do que pessoas de até 14 anos de idade (IBGE).
Portanto, o respeito à dignidade dos animais, a par de constituir direito constitucional de última geração, aprimorando os valores morais da sociedade, o que já é muito, também espelha a maneira como nós mesmos nos tratamos, estando provado pela psiquiatria forense, com base no estudo pioneiro do médico psiquiatra John Marshall MacDonald (1963), seguido por vários outros cientistas nos Estados Unidos e no mundo, que quem comete crimes violentos contra animais também irá fazê-lo contra os seus próprios semelhantes, é a denominada “Teoria do Link”, utilizada pelo FBI para traçar o perfil de assassinos seriais desde o final da década de 70, o que levou a Associação de Psiquiatria Americana (American Psychiatric Association), em seu Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais – DSM, a considerar, desde 1987, a crueldade contra animal como transtorno de conduta.
Concluímos, destarte, que os animais, assim como os humanos, têm o direito de não sofrer, têm dignidade, e que o respeito às outras formas de vida que coabitam nosso pequeno planeta serve para aprimorar os valores morais da sociedade e refletem nosso comportamento com nossos próprios semelhantes. Direitos humanos sem direitos aos animais são incompletos, pois o que está em jogo é o sofrimento, e não a natureza dos seres que sofrem, e em segundo lugar, a integridade e coerência moral do agente, não a qualidade moral do paciente. Direitos animais são uma extensão dos direitos humanos, ambos visam garantir as necessidades primárias de seres que se importam originariamente com o que lhes ocorre, ambos tratam de seres que são fins em si mesmos, ambos são respostas à vulnerabilidade dos indivíduos dependentes entre si. Direitos humanos sem considerar os animais são incompletos, pois direitos humanos, como afirmou Cavalieri, não são apenas humanos. Por isso, de acordo com a nossa Constituição, uma tese sobre direitos animais também é sobre direitos humanos, ela é sobre o mínimo devido a seres vivos que são sujeitos, não objetos; que são alguém, não algo.
O crime de maus-tratos contra animais após a Lei "Sansão".
O crime de maus-tratos contra animais (melhor: crime contra a dignidade animal) está previsto no artigo 32 da Lei 9.605/1998, conhecida como "Lei dos Crimes Ambientais". A redação atual do dispositivo, com o parágrafo 1º-A introduzido pela Lei 14.064/2020, é seguinte: "Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º. Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.
§ 2º. A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal."
A Lei 14.064/2020 foi batizada como "Lei Sansão" (em homenagem ao cão vítima de tortura e amputação das patas traseiras) e resultou da aprovação do Projeto de Lei (PL) 1.095/2019, de autoria do deputado federal Fred Costa (Patriotas/MG), sancionada pelo Presidente da República, no dia 29 de setembro de 2020, e com vigência no dia da sua publicação, em 30 de setembro de 2020.
O tipo qualificado do crime contra cães e gatos
O parágrafo 1º-A, introduzido pela Lei 14.064/2020, criou uma qualificadora do crime contra a dignidade animal: quando a vítima do crime for cão (animal da espécie Canis lupus familiaris) ou gato (animal da espécie Felis catus), as penas são mais rigorosas: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição de guarda.
No crime qualificado, a pena privativa de liberdade é de reclusão, significando que pode, desde o início, a depender das condições do caso, ser cumprida em regime fechado, ou seja, "em estabelecimento de segurança máxima ou média" (artigo 33, § 1º, I, CP). Além disso, como a pena máxima é superior a dois anos, deixa de ser considerada infração penal de menor potencial ofensivo, escapando dos Juizados Especiais Criminais e da Lei 9.099/1995. Em consequência: (1) descabe a simples elaboração de termo circunstanciado em lugar do inquérito policial; passa a ser exigível o exame de corpo de delito no animal vitimado (artigo 158, CPP), preferencialmente elaborado por Médico Veterinário, com especialização em Medicina Veterinária Legal (artigo 159, CPP); (2) cabe a prisão em flagrante do autor da infração, além da sua conversão em prisão preventiva (artigo 313, I, CPP), após audiência de custódia; (3) a liberdade provisória pode ser concedida mediante fiança arbitrada pelo juiz, mas não pela autoridade policial (artigo 322, CPP); (4) descabe transação penal (artigo 76, Lei 9.099/1995), devendo o processo penal seguir, no Juízo criminal comum, o procedimento penal comum ordinário (artigo 394, § 1º, I, CPP); (5) também não cabe a suspensão condicional do processo (artigo 89, Lei 9.099/1995), dado que a pena mínima cominada é superior a um ano.
Violência como elementar do tipo no crime de maus-tratos contra animais
Destarte, verifica-se que o sujeito passivo imediato da conduta delitiva é o animal considerado em si mesmo. Quem sofre o abuso ou os maus-tratos, quem é vítima do ferimento ou da mutilação ou quem é usado indevidamente em experiências dolorosas ou cruéis é o próprio animal. A dignidade do animal que sofre é o que se protege pela tipificação desse crime. Apenas como sujeito passivo mediato do crime poder-se-ia cogitar o meio ambiente, ante o direito difuso de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, possibilitando a defesa dos animais também nas searas administrativa e civil, quando incabível a via criminal, que exige conduta dolosa.
Considerando tudo isso, deve-se perceber que todo crime tipificado no artigo 32, da Lei 9.605/1998, é doloso e violento. A violência intencional, nesse caso, é dirigida ao animal vítima do crime. Não há abuso, maltratamento, ferimento, mutilação ou experimentação dolorosa indevida sem violência contra o animal. A violência contra os animais não é limitada ao sofrimento físico diretamente infligido, como no caso do ferir ou do mutilar, constantes do tipo penal. Os maus-tratos, nas suas diferentes caracterizações, o abuso e a utilização indevida em experimentos científicos dolorosos também são condutas humanas violentas contra animais, descritas no tipo, nas quais o sofrimento animal pode ser tanto físico, como psíquico.
Vale sempre relembrar que os animais, dentre os quais estão os cães e gatos, são seres vivos dotados de consciência e de capacidade de sentir e sofrer (a senciência), pelo que podem expressar comportamentos afetivos, intencionais e emocionais.
O acordo de não persecução penal após a Lei 13.964/2019
O acordo de não persecução penal, instituto de justiça negociada, é um negócio jurídico de natureza extrajudicial, homologado judicialmente, celebrado pelo membro do Ministério Público e o autor, em tese, do fato delituoso, necessariamente assistido pelo seu defensor.
A celebração do pacto sujeitará o infrator a determinadas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do Ministério Público de não perseguir judicialmente os fatos sumariamente esclarecidos na investigação, caso em que, se tais condições forem cumpridas, será declarada extinta a punibilidade do agente. Diferencia-se de outros institutos de justiça negociada por exigir a circunstanciada e formal confissão do investigado.
Introduzido no ordenamento jurídico pela Resolução 181/2017 e, posteriormente, pela Resolução 183/2018, ambas do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o acordo de não persecução penal foi uma das grandes novidades do denominado "pacote anticrime" (Lei 13.964/2019) e encontra-se agora inteiramente regulamentado no artigo 28-A do Código de Processo Penal.
Da leitura do referido artigo 28-A, caput, observa-se que existem requisitos obrigatórios para o acordo, além da já mencionada confissão: (1) não seja caso de arquivamento (ou seja, exige-se suporte fático-probatório mínimo); (2) o crime seja apenado com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; (3) o crime seja cometido sem violência ou grave ameaça; (4) seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. O § 2º do artigo 28-A, por sua vez, veda a celebração do acordo de não persecução penal na hipótese em que for cabível ou for constatado: (1) transação penal; (2) reincidência; (3) habitualidade criminosa; (4) ter o agente sido beneficiado, nos últimos cinco anos, em acordo de não persecução penal, transação ou suspensão condicional do processo.
Da impossibilidade de acordo de não persecução penal no crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos
É evidente que, no tipo simples do crime de maus-tratos contra animais, que não sejam cães e gatos, são cabíveis diversas medidas despenalizadoras, como a transação penal, dado que, por enquanto, se trata de crime de menor potencial ofensivo, submetido às branduras dos Juizados Especiais Criminais e da Lei 9.099/1995. Descabe o acordo de não persecução penal nesse caso, ante a imposição do artigo 28-A, § 2º, I, do CPP, até por ser desnecessário.
Mas, em relação ao tipo qualificado do crime, previsto no § 1º-A do artigo 32, da Lei 9.605/98, no qual as vítimas são cães ou gatos, tais medidas despenalizadoras não são possíveis, dado não se tratar de infração penal de menor potencial ofensivo. Também se deve concluir não ser cabível o acordo de não persecução penal para esse tipo qualificado de crime contra animais.
A título de introdução, vale a pena recordar as palavras da professora Sônia Felipe, verbis (com destaque nosso): "[…] se negamos aprovação moral a alguém que causa dor e sofrimento a um ser humano para se beneficiar de tais atos, então devemos manter a mesma convicção quando se trata da dor e sofrimento de outros seres, ainda que não pertençam à espécie Homo sapiens, pois o que está em jogo, em primeiro lugar, é o sofrimento, não a natureza dos seres que sofrem, e em segundo lugar, a integridade e coerência moral do agente, não a qualidade moral do paciente".
Guaxupé, 26/04/24.
Milton Biagioni Furquim