A Prova de que o morador permitiu a entrada de policias na residência
Os policiais é que precisam provar, de modo inequívoco, que o morador autorizou que eles entrassem na sua residência para averiguarem a eventual prática de crime
Vejamos uma situação prática.
Policiais militares, após receberem denúncia anônima informando que estaria ocorrendo a prática de tráfico de drogas, dirigiram-se ao endereço de João, o suspeito. Quando ali chegaram, viram João jogando um pacote em cima da laje.
Os policiais afirmam que solicitaram, então, autorização para entrar na casa e que João teria concordado.
Ao revistarem o local, os policiais encontraram, na laje da residência, armas e drogas.
Em razão do fato, João foi preso em flagrante delito.
Ao ser interrogado, João negou que tenha autorizado que os policiais entrassem em sua casa.
Mesmo assim, ele foi denunciado pelo Ministério Público e a denúncia foi recebida pelo juízo.
A defesa impetrou habeas corpus pedindo o trancamento da ação penal, sob o argumento de que as provas obtidas seriam ilícitas considerando que houve ofensa à garantia da inviolabilidade de domicílio. A defesa sustentou que é completamente “descabida a alegação de que o réu teria franqueado a entrada dos policiais militares na residência, mesmo após supostamente ter jogado algo dentro da laje da própria casa e sabendo que no interior da residência se encontravam armas, munições e drogas.”
O STJ concordou com os argumentos da defesa. A prova obtida foi ilegal.
O STJ concedeu a ordem para reconhecer a nulidade do flagrante em razão da violação ao domicílio do suspeito e, por conseguinte, declarou também a nulidade das provas obtidas em derivação.
A 6ª Turma do STJ, no julgamento do HC 598.051/SP, decidiu que o consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação:
1) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito.
2) O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada.
3) O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação.
4) A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo.
5) A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.
STJ. 6ª Turma HC 598051/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 02/03/2021 (Info 687).
No mesmo sentido: Os agentes policiais, caso precisem entrar em uma residência para investigar a ocorrência de crime e não tenham mandado judicial, devem registrar a autorização do morador em vídeo e áudio, como forma de não deixar dúvidas sobre o seu consentimento. A permissão para o ingresso dos policiais no imóvel também deve ser registrada, sempre que possível, por escrito.
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.048.637/PR, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 6/3/2023.
Assim, a prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo.
No caso concreto, a violação de domicílio foi efetivada após o recebimento de denúncia anônima informando a prática do delito de tráfico no local, inexistindo prévias investigações que confirmassem os fatos noticiados na comunicação apócrifa e que subsidiassem a convicção dos agentes de que o agravado ocultava droga ou algum dos objetos mencionados no art. 240 do CPP.
Além disso, a suposta autorização não foi registrada em áudio-vídeo.
Em suma: A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo. STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 821.494-MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 6/2/2024 (Info 800)
No mesmo sentido: Havendo controvérsia entre as declarações dos policiais e do flagranteado, e inexistindo a comprovação de que a autorização do morador foi livre e sem vício de consentimento, impõe-se o reconhecimento da ilegalidade da busca domiciliar
No caso em comento, a polícia recebeu “denúncia anônima” de que estaria havendo tráfico de drogas na residência de João. Uma equipe policial se dirigiu até o local. João estava na frente da residência. Os policiais fizeram busca pessoal, mas nada de ilícito foi encontrado em sua posse.
Regina, esposa de João, que também estava na frente da casa, autorizou que os policiais entrassem na residência. Dentro da casa, os agentes encontraram uma pequena quantidade de droga. Em razão disso, João foi preso em flagrante. Na delegacia, Regina afirmou que somente autorizou a entradas dos policiais após sofrer ameaças de que “poderia ter problemas”, como perder a guarda do filho e eventualmente ser presa. Mesmo assim, João foi denunciado por tráfico de drogas. A defesa impetrou habeas corpus alegando, em síntese, que a prova é ilícita, por invasão de domicílio, em razão de mera denúncia anônima, sem existência de fundadas razões. No mais, afirmou que o consentimento da esposa do paciente não foi livre.
O STJ concordou com a defesa.
A abordagem do paciente se deu em virtude de denúncia anônima, sem que nada de ilícito fosse encontrado em sua posse, e, na sequência, ingressou-se na residência do paciente, com autorização da sua esposa. Contudo, além da ausência de justa causa para a busca pessoal e para o ingresso no domicílio do paciente, o consentimento de sua esposa não foi prestado livremente, circunstâncias que tornam ilícito o ingresso no domicílio bem como as provas obtidas com a diligência. STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 766654-SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 13/09/2022 (Info 759).
Sentado a beira do caminho, 18/24.
Millton Biagioni Furquim
Juiz de Direito