Adoção Intuitu Personae, embora proibida, é mais do que uma realidade no “Brezil”.
Adoção Intuitu Personae, embora proibida, é mais do que uma realidade no “Brezil”.
Com a devida vênia faço colacionar, por pertinente e por uma melhor ilustração, o seguinte tópico ( 7. Aspecto Prático e Cristão da Adoção) extraído do artigo “Adoção Intuitu Personae: Evolução Principiológica” cujos autores Adriano Roberto Vancim e José Eduardo Junqueira Gonçalves, publicado na Amagis Jurídica, Ano III, Número 5, Semestral Janeiro 2011: Aspecto Prático e Cristão da Adoção.
Jesus, o menino que foi recebido nos braços pela virgem, encontrou em seu novo lar o carinho e os cuidados necessários para crescer e se tornar o Salvador da Humanidade. Sem o acolhimento de Maria e José, o Verbo que habitou entre nós, talvez não tivesse passado ileso por resfriados, febres, e outras enfermidades próprias daquela tenra idade diante da natureza humana da qual estava revestido. Afinal, tudo isso foi preciso para que seu sangue pudesse redimir os pecados do mundo. Quando o anjo Gabriel anunciou a chegada de Cristo estava também declarando a vontade do Pai, que havia escolhido aqui na terra aquela Sagrada Família. Talvez o primeiro relato histórico documentado, mas sem dúvida, a mais célere adoção “intuito personae” de todos os tempos.
Durante os dois últimos milênios, ninguém questionou esta manifestação paterna, portanto, inconscientemente, milhares de autores comentaram este fato sem atentar para o aspecto daquela adoção. Porque não existe uma dificuldade de alguns operadores do direito em aceitar esta modalidade de inserção familiar. O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que deva ser levado em conta o interesse do adotando e também não afasta o consentimento dos pais biológicos. O que precisa ficar claro é que não se trata de forma espúria de adoção, tampouco magistrados e promotores de justiça seriam coniventes com o abominável “comércio de crianças”.
A exceção existe até mesmo para legitimar a regra e para isso, felizmente, nossos tribunais de Justiça tem dado passos significativos na direção de agasalhar esta possibilidade a partir da guarda provisória e definitiva.
Sobre esse ponto, fazemos referência à fundamentação trazida pelo voto do eminente Desembargados Antônio Sérvulo (conhecido carinhosamente como o Toninho das moças), que no Agravo Regimental cível (100009509156-t/001), assim ponderou: “Malgrado o rito da adoção exigir rigor no cumprimento da ordem de preferência da adoção, tem-se no presente caso que a família originária não possui condições de cuidar de forma adequada de seu filho, conforme estudo social realizado, mostrando-se adequada a transferência de sua guarda, de maneira provisória. (...) Não se trata, portanto, de privilégio na adoção, mas de preservação da integridade do menor, em obediência ao fim maior buscado pelo Estatuto da Criança e Adolescente, que se sobrepões a qualquer barreira burocrática ou procedimental.”
O processo de adoção é muito maior do que lista ou pessoas e seus pontos de vista, é um ato de amor e dedicação que requer identificação técnica e ao mesmo tempo espiritual das autoridades envolvidas. Não se deve simplesmente ignorar o desejo dos pais biológicos de que seu filho seja amparado por certa família, assim como não se pode deixar um recém-nascido aos cuidados divididos de uma instituição enquanto, enfermo, aguarda alheio pelos tramites processuais. Nesta hora, não seria nenhum absurdo admitir que o bebê fosse exclusiva e pessoalmente tratado por um casal capaz de transmitir, em tempo integral, amor genuíno, dedicação, desejo e compromisso.
Assim como Cristo é o único caminho a ser seguido, podemos também confiar neste exemplo deixado por sua passagem entre nós, que muito revela sobre a importância de fazer prevalecer a vontade do Pai.
Pois bem.
A adoção é a forma que uma pessoa ingressa numa família que não é a sua biológica nem que está ligada por vínculos afetivos. A colocação de uma criança numa família mediante a adoção coloca essa criança inserida nessa família em todos os seus aspectos.
Quando analisamos o Estatuto da Criança e do Adolescente constatamos que para que ocorra a adoção existe um procedimento específico, e que nesse procedimento, prevê que as pessoas que querem adotar entrem numa lista – que é o Cadastro Nacional de Adoção.
E assim, que temos crianças e adolescentes que estão para serem adotados eles também são inseridos no referido cadastro. Tem-se como objetivo a lisura do procedimento, e deixar aquela criança com pessoas que já tinham manifestado o desejo de adotar e seguido o trâmite legal.
Contudo, existe uma espécie de adoção – denominada de adoção intuitu personae em que a genitora entrega o seu filho ou filha para uma pessoa específica adotar, é uma adoção dirigida, também conhecida como ‘adoção à brasileira”.
O E. Superior Tribunal de Justiça ao analisar uma situação de adoção intuitu personae entendeu que no caso concreto, enquanto não se decide o que irá ocorrer com a criança, é preferível que ela permaneça em um acolhimento familiar ao invés de estar em um abrigo, eis que é essa a preferência estabelecida no Estatuto da Criança e do Adolescente.
E assim, deve determinar que a criança permaneça no acolhimento familiar, enquanto se analisa o que deverá ocorrer com a criança, se permanece com essa família ou será encaminhada a outra família.
Vejamos, a decisão do E. STJ: HABEAS CORPUS. DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ADOÇÃO ‘INTUITU PERSONAE’. BURLA AO CADASTRO DE ADOÇÃO. BUSCA E APREENSÃO. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL EM ABRIGO. PRIMAZIA DO ACOLHIMENTO FAMILIAR. MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. ILEGALIDADE FLAGRANTE. CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. 1. Controvérsia a respeito do acolhimento institucional de criança entregue à adoção ‘intuitu personae’. 2. Inadmissibilidade da impetração de habeas corpus diretamente neste Superior Tribunal de Justiça em face de decisão de relator que, no tribunal de origem, indeferiu liminar (Súmula 691/STF). Ressalva da possibilidade de concessão da ordem de ofício, conforme jurisprudência desta Corte Superior. 3. Caso concreto em que a criança foi retirada do ambiente familiar e institucionalizada em abrigo com fundamento na burla ao Cadastro Nacional de Adoção. 4. Inexistência, nos autos, de indício de fatos que desabonem o ambiente familiar em que a criança se encontrava. 5. Nos termos do art. 34, § 1º, do ECA: “A inclusão da criança ou adolescente em programas de acolhimento familiar terá preferência a seu acolhimento institucional, observado, em qualquer caso, o caráter temporário e excepcional da medida, nos termos desta Lei”. 6. Primazia do acolhimento familiar em detrimento do acolhimento institucional. Precedentes desta Corte Superior. 7. Existência flagrante ilegalidade no ato coator, a justificar a concessão da ordem de ofício. 8. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA DE OFÍCIO. (HC 487812/CE – Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino – 3a. Turma do STJ – Dje 01/03/2019)
Em que pese repetitivo, adoção intuitu personae acontece quando a mãe biológica manifesta o interesse em entregar a criança a pessoa conhecida, sem que essa conste no Cadastro Nacional de Adoção. Trata-se a princípio de medida ilegal porque este ato é realizado sem passar pelos trâmites legais, por não atender à regra absoluta da habilitação prévia exigida pela Lei 8.069/90.
A adoção intuitu personae além de não ser permitida pela Lei 8.069/90, pode ainda configurar a prática do crime previsto no artigo 242 do código penal , com pena de reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, se houver o registro do filho adotado pelo casal adotante como se fosse filho biológico, caracterizando dessa forma, crime contra estado de filiação.
A regra é que todos aqueles que desejam adotar devem seguir os trâmites do procedimento de habilitação.
A Lei 8.069/90 estabelece de forma taxativa no art. 50 § 13 as únicas e exclusivas hipótese de adoção em que é dispensado o procedimento de habilitação. E não consta a possibilidade dos pais ou mãe biológica escolher a quem será entregue seu filho em adoção sem observar tal regramento.
Embora considerada ilegal, atualmente tendo em vista a aplicabilidade do princípio do melhor interesse da criança, norma basilar e norteadora de todo o sistema protecionista do menor, encontra-se diversas decisões judiciais excepcionando a regra legal, na hipótese de existir vínculo afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, ainda que este não tenha realizado o procedimento de habilitação e não constem do Cadastro Nacional de Adoção. Trata-se de uma excepcionalidade do sistema, que tem por primazia a valorização da afetividade, permitindo a regularização de uma adoção à princípio ilegal quando já comprovado a existência de forte vínculo afetivo consolidado entre adotante e adotado, e não havendo indícios de maus-tratos, negligência ou abuso. Nesse sentido: REsp. 837.324/RS, REsp. 1.172.067/MG, REsp. 1.328.389/MS.
Enfim, sou favorável à regularização de questões em que haja a formação de laços de afetividade - haveria verdadeiro parentesco socioafetivo passível de se convolar em parentesco social (decorrente de adoção). Mas tudo há que ser feito com o máximo cuidado e rigor legal - isso porque, a lei é rígida para evitar situações de abuso - por exemplo, venda de filhos por pessoas em situação de penúria socioeconômica a pessoas abastadas, vendas para tráfico internacional e por aí vai. De se observar que não obstante a lei nova preveja a possibilidade salutar de regularização, por exemplo, de situações que perduram no tempo, por exemplo, crianças que convivam com os adotantes à brasileira há anos, não pode ser aplicada de modo a possibilitar de crianças e adolescentes virem moedas de troca. Há que se passar por regras bem definidas (estágios de convivência, nessas condições, não podem ser curtos) e deve haver rigorosa análise psicossocial do caso.
A Lei 12.010/09 criou algumas restrições à adoção realizada fora do cadastro, porém os princípios norteadores da Constituição da República e da Lei 8069/90 são prioridade absoluta e interesse superior da criança e do adolescente. Assim, o cadastro para adoção não é princípio legal nem constitucional.
A partir da Constituição de 1988, generalizou-se a compreensão de que a família repousa sob o valor afeto. Tudo, afinal, começa e gira em torno da afetividade. Mas isso não é novidade, pois desde os romanos já se proclamava a affection maritalis. Assim, o que há de novo é o reconhecimento do afeto como valor jurídico fundamental. E, tratando-se de um sentimento, sem dúvida, é extremamente difícil sujeitar-se a uma regulamentação, a uma delimitação por parte do legislador. Nesse diapasão, a adoção intuitu personae é uma das figuras que surge e se desenvolve a partir do afeto.
Inspirados nos princípios constitucionais afetos à família e à criança e adolescente, a doutrina e jurisprudência, inclusive das cortes superiores, admitiam a adoção intuitu personae, desde que fundadas no superior interesse da criança e no vínculo de afeto estabelecido entre os adotantes e o adotado.
O Estatuto da Criança e Adolescente, antes da reforma de 2009 era omisso no tocante à adoção intuitu personae. E mais, com o avento da Lei 12.101/09 o cadastramento para o fim de adoção passou a ser obrigatório, já que, desta forma se evita que seja dada preferência anti-isonômica a alguma pessoa ou casal em detrimento de outros que já aguardavam por uma criança ou adolescente para adoção.
Todavia, o legislador elencou hipóteses permissivas de adoção fora do cadastro de postulantes. Assim, o artigo 50, § 13º disciplinou as situações em que a adoção pode ser deferida a pessoa ou casal que não estava já previamente habilitada e inserida nos cadastros de postulantes à adoção: Art. 50. A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção. § 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando I - se tratar de pedido de adoção unilateral, II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade; III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei.
De acordo com a doutrina e jurisprudência, tal regra deve ser mitigada, visando à concretização do melhor interesse da criança e adolescente e a valorização dos vínculos de afeto dos pretensos adotantes que não se enquadram nas hipóteses de exceção do prévio cadastro. Nesse sentido é a lição de Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel: “Considerando o posicionamento da doutrina e da jurisprudência sobre a possibilidade de permissão da adoção intuito personae, temos a esperança que esta péssima regra constante do § 13, do art. 50, do ECA, seja mitigada, continuando a ser modalidade de adoção em estudo, permitida sempre que ficar demonstrado que os adotantes já mantém vínculo de afeto para com as crianças.” (Curso de Direito da Criança e Adolescente, Lumem Juris, RJ, 2010, 4ª edição, pág. 255)
Ainda no campo doutrinário, Valter Kenji Ishida aduz com clareza: "Acreditamos, todavia que o rol não é taxativo, mas sim exemplificativo. Existirão outras hipóteses que excepcionalmente o juiz poderá deferir o pedido de adoção, como na hipótese de adoção intuito personae, considerando o interesse maior da criança ou do adolescente" ( Estatuto da Criança e do Adolescente – Doutrina e Jurisprudência – Atlas, SP, 2010, 11.ª edição, pág. 107).
No mesmo caminho o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA manteve seu entendimento pela relatividade do cadastro de pretendentes em face do superior interesse da criança e do adolescente, mesmo após a vigência da Lei 12.010/09: Informativo nº 427 Terceira Turma ADOÇÃO. CADASTRO A Turma decidiu que, par fins de adoção, a exigência de cadastro (art. 5º do ECA) admite a exceção quando for de melhor interesse da criança. No caso, há verossímil vínculo afetivo incontornável pelo convívio diário da criança com o casal adotante, que assumiu a guarda provisória desde os primeiros meses de vida, de forma ininterrupta, por força de decisão judicial. Precedente citado: REsp 837.324-RS, DJ 31.10.2007. REsp 1.172.067-MG, Rel. Min. Massami Uyeda, julgado em 18.03.2010 (g.n.)
Ademais, o próprio Estatuto autoriza a mitigação do disposto no § 3 do artigo 28, uma vez que estabelece como um dos critérios fundamentais à adoção e a relação afetividade: Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei. (...) § 3o Na apreciação do pedido levar-se-á em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as consequências decorrentes da medida.
Por fim, necessário destacar que os cidadãos hipossuficientes economicamente, e muitas vezes desprovidos de informação, não podem ser preteridos em direitos, sendo impedidos de adotar crianças e adolescentes com quem tenham evidentes vínculos afetivos e de afinidade, que atendam ao interesse da criança e do adolescente, em razão de não ter regulamentado legalmente a guarda fática existente anteriormente. Ante o exposto, o melhor interesse da criança e do adolescente deve prevalecer à adoção cadastral na hipótese de comprovada guarda de fato exercida, que tenha desenvolvido vínculos de afinidade e afetividade, trazendo evidentes benefícios à criança e adolescente.
Não se pode olvidar, que além dos direitos fundamentais há diversos princípios fundamentais que norteiam o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dentre eles se encontra o princípio do melhor interesse da criança consagrado expressamente no art. 3º da Convenção dos Direitos da Criança. Art. 3.1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança. (g.n.) Este princípio está relacionado ao melhor equilíbrio físico e psicológico, que faz prevalecer o interesse da criança.
De modo que, ultimando o tema, a finalidade mais importante da adoção em nossos dias é a proteção de menores, assertiva pela qual toda atividade jurisdicional deve se voltar e se despender para a consecução da garantia e preservação dos direitos da criança e adolescentes.
Extrema, Dez/1923
Milton Biagioni Furquim