O Direito de permanecer calado do acusado, caso não cientificado gera nulidade?
O Direito de permanecer calado do acusado, caso não cientificado gera nulidade?
Só há nulidade pela falta de cientificação do acusado sobre o seu direito de permanecer em silêncio, em fase de inquérito policial, caso demonstrado o efetivo prejuízo
Eis a hipótese: Foi instaurado um inquérito policial para apurar um homicídio. Rodrigo foi convocado para depor na qualidade de testemunha. Vale lembrar que a testemunha, antes de iniciar o seu depoimento, assume, perante a autoridade, o compromisso de dizer a verdade. Caso a testemunha faça afirmação falsa, negue ou cale a verdade, ela poderá até mesmo ser acusada do crime de falso testemunho (art. 342 do CP).
Em seu depoimento, Rodrigo disse que não sabia nada sobre o crime, que estava próximo ao local, mas que não viu o homicídio. Posteriormente, outras testemunhas apontaram que Rodrigo havia sido o autor do homicídio. Rodrigo foi denunciado. A defesa impetrou habeas corpus alegando nulidade tendo em vista que, ao ser ouvido na polícia, Rodrigo não foi informado do seu direito de permanecer em silêncio.
O Tribunal de Justiça denegou a ordem por entender que não houve prejuízo uma vez que o acusado, ao ser ouvido, negou veementemente a autoria do crime, de modo que as suas declarações, ainda que fornecidas como testemunha, não lhe prejudicaram. Inconformada, a defesa impetrou habeas corpus ao STJ insistindo na tese de que houve nulidade diante da inobservância do direito à não autoincriminação. O STJ, por óbvio, não concordou com os argumentos da defesa.
O reconhecimento de nulidades no curso do processo penal, seja absoluta ou relativa, exige que se demonstre que houve efetivamente prejuízo à parte. Sem essa demonstração de prejuízo, a nulidade não deve ser declarada prevalecendo o princípio da instrumentalidade das formas positivado no art. 563 do CPP: Art. 563. Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa. Trata-se do chamado “pas de nullité sans grief”.
“Pas de nullité sans grief” é uma expressão francesa que significa “não há nulidade sem prejuízo”. Este princípio é aplicado no direito processual, tanto administrativo quanto penal, e estabelece que um ato processual só deve ser considerado nulo se houver uma efetiva demonstração de prejuízo para uma das partes envolvidas no processo. Em outras palavras, a mera existência de um vício processual não é suficiente para declarar a nulidade de um ato, é necessário que este vício tenha causado um prejuízo concreto e demonstrável para a defesa ou para a acusação. Este princípio está positivado no art. 563 do CPP. Desse modo, para que haja a declaração de nulidade não basta que a parte alegue a existência de prejuízo. É necessário que demonstre, de forma efetiva, a sua ocorrência.
No caso concreto, não houve prejuízo porque o réu, mesmo sem ser advertido de seu direito ao silêncio, não declarou nada que lhe pudesse prejudicar. Ao contrário. Ele negou veementemente a autoria do delito.
Sobre o tema, confira o seguinte julgado do STJ: Convém lembrar, ainda, que o reconhecimento de nulidade, relativa ou absoluta, no curso do processo penal, segundo entendimento pacífico desta Corte Superior, reclama uma efetiva demonstração do prejuízo à parte, sem a qual prevalecerá o princípio da instrumentalidade das formas positivado pelo art. 563 do CPP (pas de nullité sans grief). STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 738.493/AL, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 18/10/2022.
Além disso, vale relembrar que: eventuais máculas na fase extrajudicial não têm o condão de contaminar a ação penal, dada a natureza meramente informativa do inquérito policial. STJ. 5ª Turma. RHC 119.097/MG, Rel. Min. Leopoldo de Arruda Raposo (Desembagador Convocado do TJ/PE), julgado em 11/2/2020.
Em suma: Só há nulidade pela falta de cientificação do acusado sobre o seu direito de permanecer em silêncio, em fase de inquérito policial, caso demonstrado o efetivo prejuízo. STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 798.225-RS, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 12/6/2023 (Info 791).
Veja como a situação poderia ser diferente em caso de prejuízo. A hipótese: Foi instaurado inquérito policial para apurar o furto de um aparelho celular. Diversas pessoas que trabalhavam no local onde ocorreu o crime foram convocadas a depor, na qualidade de testemunha, dentre elas, João. João, após prestar o compromisso legal de dizer a verdade, iniciou seu depoimento afirmando que não sabia de nada e que não tinha estado no local onde o celular foi furtado naquele dia. Depois de algumas perguntas, começou a entrar em contradição e solicitou à autoridade policial que desconsiderasse suas declarações anteriores, afirmando estar mentindo, mas que passaria a dizer a verdade, e, na sequência, assumiu ser ele o autor do furto. Com base unicamente na confissão, o Ministério Público ofereceu denúncia contra João pelo delito de furto.
A defesa produziu a sua manifestação defensiva
A denúncia foi recebida. O defensor de João impetrou, então, habeas corpus, alegando que a denúncia estava baseada em confissão inválida. Segundo a defesa, houve ofensa ao direito do acusado de ficar em silêncio e não se auto incriminar (princípio do nemo tenetur se detegere). Isso porque João foi convocado para a inquirição como testemunha, não tendo sido advertido pela autoridade de que tinha o direito de ficar em silêncio, recusando-se a responder perguntas que pudessem incriminá-lo. Assim, houve violação à garantia da ampla defesa.
A tese da defesa foi acolhida pelo STF. A confissão prestada foi inválida. Ofende o princípio da não-autoincriminação a denúncia baseada unicamente em confissão que foi feita por pessoa ouvida na condição de testemunha, quando não lhe tenha sido feita a advertência quanto ao direito de permanecer calada. O preso (e a pessoa que está sendo acusada em geral) tem o direito de permanecer em silêncio, nos termos do art. 5º, LXIII, da CF/88: LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado. Essa garantia é uma expressão do princípio da não-autoincriminação, segundo o qual o acusado tem o direito de não produzir prova contra si mesmo.
A partir do momento em que a testemunha começou a prestar declarações que a incriminavam, a autoridade policial deveria ter encerrado seu depoimento como testemunha e ter iniciado outro, na condição de investigado (suspeito) e, antes de qualquer outra declaração, deveria ter esclarecido que ao interrogado que ele tinha o direito de ficar em silêncio e de não produzir provas contra si mesma. Se mesmo ele sendo cientificado de seus direitos, resolvesse assumir o crime, então, essa confissão seria agora válida. A falta de advertência quanto ao direito ao silêncio tornou ilícita a prova produzida.
Embora o inciso LXIII fale em pessoa presa, a doutrina e a própria jurisprudência do STF o ampliam para estendê-lo, também, às pessoas que estejam soltas e que sejam investigadas ou formalmente acusadas. Se o indivíduo é convocado para depor como testemunha em uma investigação e, durante o seu depoimento, acaba confessando um crime, essa confissão não é válida se a autoridade que presidia o ato não o advertiu previamente de que ele não era obrigado a produzir prova contra si mesmo, tendo o direito de permanecer calado. STF. 2ª Turma. RHC 122279/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 12/8/2014 (Info 754).
Extrema, 15/12/23.
Milton Biagioni Furquim