Será que todos que estão presos são realmente bandidos?
Será que todos que estão presos são realmente bandidos?
Tenho recebidos algumas críticas de pessoas, por incluir, neste natal, a doação de panetones (80g) aos reclusos do Presídio Guaranésia-Guaxupé. Alegam que é um desperdício doar panetones e se preocupar com os bandidos presos. Explico, ao longo deste texto, a razão de minha decisão em doar os panetones.
Pois bem. Bandido é quem tem sua personalidade voltada para a prática contumaz de crime. É pessoa que comete crimes; DELINQUENTE; FACÍNORA; MARGINAL. Pessoa de má índole, perversa, má; MAU-CARÁTER; PATIFE; PILANTRA. Diz-se da pessoa em que há transgressão, aviltamento, perversidade; que provoca desprazer, sofrimento (paixão bandida). Diz-se da pessoa banida, desterrada. Pessoa que age, intencionalmente ou não, de modo a prejudicar ou arruinar (alguém, tarefa, projeto etc.).
Quando minha avó Eliza dizia que “as palavras têm poder”, encarava eu como uma crendice segundo a qual os meros sons proferidos pela boca teriam o condão de atrair energias cósmicas positivas ou negativas. Em resumo, uma bobagem. Observando nosso sistema de segurança pública e justiça criminal, no entanto, constato que as palavras têm não só poder, mas o maior deles: o de decidir sobre vida e morte. A distribuição dos estigmas popularmente expressos por “bandido” e “cidadão de bem” funcionam como roleta a definir quais indivíduos cairão no alcance da barbárie e quais permanecerão no espectro da civilização.
Por outro lado, existe uma crença corrente de que a raiz da criminalidade no Brasil está na impunidade. Operadores do direito, meios de comunicação e cidadãos em geral falam repetidamente nos baixos índices de resolução de crimes pelas Polícias Civis e apontam as leis penais e processuais penais como lenientes. É bastante conhecido o lema “A polícia prende e a Justiça solta”, presença garantida nos telejornais. Tal falta de fé nas respostas judiciais estimula, inclusive, uma subterrânea simpatia por resoluções imediatas da tropa armada, ou seja, mais e mais violência policial, execuções, facas e caveiras. Pode o problema ser colocado como meramente operacional, a ineficiência do Estado em proteger o “cidadão de bem” do “bandido”?
Bandido, ladrão, assaltante, infrator, traficante, criminoso, delinquente, … Pois, então, pergunto: todos que estão presos, cumprindo pena condenatória na prisão são tidos por bandidos? Por óbvio que não. Considerando a definição de bandido algures, podemos afirmar que a grande maioria que estão presos não passam de pessoas infelizes que, por algum ou outro motivo acabaram por cometer alguma infração criminal, e lá estão pagando pelo que fizeram, mas daí ser tido por bandido, vai uma distância astronômica.
Precisamos parar de chamar as pessoas de bandido. Quantas são as formas de rotular uma pessoa que pratica um ato considerado criminoso?
Em todos os lugares, desde que não se trate de pessoa com boas condições sociais, a notícia da prática de uma infração penal é lançada como: “Assaltante é preso”, “Traficante é morto a tiros”, “Bandido bom é bandido morto” e por aí vai.
Dentre os vários pontos em que necessitamos melhorar (no que se refere ao direito penal), está o fim da estigmatização de uma pessoa por praticar (e ser flagrado praticando) uma conduta contrária à lei.
Muitas vezes aquela é a primeira infração. Muitas vezes nem é “bandido”. Pode ter sido apenas a ocasião. Vai saber o que aconteceu na vida da pessoa para que ela fizesse o que fez. Mas, não! É bandido, ladrão, safado, vagabundo, …
Já parou para pensar que a partir do momento em que rotulamos uma pessoa por praticar um crime (bandido, ladrão, traficante, assassino, …), transformando-o em algo que muitas vezes ele não é, estamos influenciando diretamente na transformação dessa pessoa naquilo que afirmamos que ele é?
E esse rótulo acompanha o indivíduo por um loooongo período. Em vários lugares e momentos ele será lembrado de que é "bandido", a impossibilidade de tirar Certidão Negativa e conseguir emprego que o diga.
Por isso, estudos da criminologia moderna, incluindo aqueles voltados para a psicologia, apontam para a necessidade de pôr fim a esse rótulo, a essa estigmatização.
Quando os transformamos, afastamos deles as suas naturais e indispensáveis condições que os tornam humanos, tanto no nosso trato para com eles, assim como no trato deles para com eles mesmos.
Será que ainda falta muito para percebermos que não se trata de “nós x ‘eles'”, mas de nós e nós mesmos?!
Ainda dentro desse estudo da psicologia criminal e da criminologia psicológica, surge a necessidade da sociedade se enxergar dentro dos presídios e daqueles que se encontram dentro dos presídios se enxergarem dentro da sociedade.
Não há divisão. No máximo, existem condições momentâneas que impedem a livre convivência, mas não divisão.
Todos que estão dentro dos presídios, independente das histórias individuais que os levaram a estar onde estão, são integrantes da sociedade em que vivemos, são, acima de tudo, humanos e dignos dos mesmos direitos fundamentais destinados a nós, que não estamos lá dentro…
… Mas podemos estar.
Uma direção sob efeito de álcool ou outra substância que cause dependência; um momento de perda de controle emocional; ou uma sonegação fiscal é o suficiente para fazer com que você, pessoa de bem, se torne um “bandido”.
Como disse, basta uma ação e podemos nos transformar no “outro”, podemos parar lá dentro de onde queremos esconder até a morte os “bandidos”.
Só que com você não é “bandido”, né?!
E esse é justamente o ponto em que precisamos chegar, não existe divisão, “nós x eles”, “pessoas de bem x criminosos”. Ou evoluímos juntos ou ficamos como estamos.
Ora, como dito alhures, qualquer pessoa de ‘bem’ pode, eventualmente, cometer um crime. E como pode. O crime eventual por ele cometido não pode ser o mote para transformarmos ele em bandido.
Vejamos um fato pessoal e relevante. Até então se me perguntassem se eu seria capaz de tirar a vida de alguém, ferir, matar, etc., eu, naturalmente, excomungava e afirmava, veementemente de que jamais seria capaz de praticar tal ato assassino.
Tal fato se refere a época em que se realizou o plebiscito do desarmamento. Em 2005, 63% dos brasileiros votam em referendo a favor do comércio de armas. Plebiscito em 23 de outubro previsto no Estatuto do Desarmamento dividiu famílias. Minha posição quanto ao referendo era a favor da proibição do comércio de armas.G
Na véspera do referendo, passeava eu como meu Golden Retriver – o Ulisses, logo por volta de 7 hs. da manhã, em frente a UNIFEG, de repente um Pit Bull, solto, veio em direção ao meu cachorro e o atacou. Essa praga e Pit bul quando morde com suas mandíbulas não mais solta sua presa. Estava ele matando meu Goldem que ‘chorava’ desesperadamente, e eu, sem saber o que fazer. Estava desarmado. Então dei início a uma defesa do meu animal, chutando e agredindo com murros o pit bul que não parava de atacar o Ulisses. Desesperado agarrei o pit bull pelo seu corpo forçando-o a soltar o Ulisses, mas em vão, de modo que sem soltá-lo caímos ao chão na avenida, os veículos desviando, mas ninguém se atrevendo a ajudar. Em dado momento apareceu um senhor com uma barra de ferro e passou a agredir o pit bull que, então largou o Ulisses e ‘perna prá quem tem’. O Ulisses todo ferido. Eu com algumas escoriações por lutar com o pit bull.
O interessante é que enquanto o Pit Bull agredia meu Goldem, e eu lutava com o agressor, só tinha um pensamento: ‘se estivesse armado atiraria e mataria o pit bull; se os donos aparecessem naquele momento, não hesitaria em atirar nos proprietários do animal, quando, então, lamentei não estar portando arma, e decidi mudar meu voto que, então, seria pela autorização na venda de armas.
Por certo responderia a um processo e, se condenado por este fato estaria eu, a partir de então, me transformando em um bandido? Por evidente que não. Por uma situação inesperada acabaria cometendo um crime e por ele deveria prestar conta a sociedade. E nesta condição muitos devem estar no Presidio cumprindo suas penas.
A outra lição que tirei do episódio e que muito me serviu e ainda me serve de norte, como ensinamento na condição de juiz, é que me tornei capaz de me colocar no lugar do outro e de entender que todos podemos, num ato de desatino cometer uma infração penal, de modo que posso avaliar e analisar o por quê de ter o acusado praticado tal ato a que está a responder.
Extrema, 2º dia de férias, 14/12/23.
Milton Biagioni Furquim