Lei Maria da Penha. Legitimidade para requerer designação de audiência para renúncia à representação.
Lei Maria da Penha. Legitimidade para requerer designação de audiência para renúncia à representação.
Apenas a vítima pode requerer a designação da audiência prevista no art. 16 da LMP para a renúncia à representação; é vedado ao Poder Judiciário designá-la de ofício ou a requerimento de outra parte.
Art. 16 da Lei de Violência Doméstica
A Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) admite a renúncia à representação, desde que oferecida antes do recebimento da denúncia. Confira: Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) ajuizou ADI em face do art. 16 da Lei Maria da Penha. O objetivo da autora, contudo, não era retirar esse art. 16 do ordenamento jurídico, mas sim que o STF fizesse uma interpretação conforme.
A Associação argumentou que muitos magistrados têm designado, de ofício, essa audiência do art. 16, mesmo sem que haja manifestação da vítima. Em outras palavras, alguns Tribunais de Justiça estavam considerando que essa audiência do art. 16 seria obrigatória em todos os casos de ação pública condicionada.
A Autora sustentou, na ADI, que os Tribunais de Justiça, ao fazerem isso, afrontam a dignidade da pessoa humana e as prerrogativas do Ministério Público.
Diante disso, a CONAMP requereu que seja dada interpretação conforme ao dispositivo para que o STF diga que não é possível a designação, de ofício, da audiência do art. 16 da Lei Maria da Penha. Também não é possível reconhecer como “retratação tácita” ou “renúncia do direito de representação” o não comparecimento da mulher vítima de violência doméstica a essa audiência.
O STF concordou com o pedido formulado na ADI. O art. 16 da Lei Maria da Penha não deve ser lido de forma isolada, como se contivesse apenas dispositivos dirigidos ao juiz.
A audiência perante o juiz, de que trata o referido dispositivo para as ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida, tem a finalidade de viabilizar que a vítima, devidamente assistida por uma equipe multidisciplinar, expresse, de forma livre, a sua vontade. Não se trata da mera avaliação da presença de um requisito procedimental, de modo que não cabe ao magistrado delegar a realização da audiência a outro profissional, ou designá-la de ofício ou a requerimento de outra parte.
Essa finalidade está diretamente relacionada às obrigações que o Estado brasileiro tem no que tange à erradicação da violência contra mulher.
Nesse contexto, a função da audiência perante o juiz não é meramente avaliar a presença de um requisito procedimental, mas permitir que a vítima, assistida necessariamente por equipe multidisciplinar, possa livremente expressar sua vontade. Diante disso, não cabe ao juiz designar, de ofício, a audiência se a vítima não requerer.
O Estado brasileiro é obrigado a aplicar os dispositivos da legislação de combate à violência contra mulher de maneira estrita, garantido que todos os procedimentos legais em casos que envolvam violência sejam imparciais, justos e neutros relativamente a estereótipos de gênero.
Por isso, é completamente contrária ao texto constitucional e às obrigações internacionais que o país se obrigou a cumprir tornar obrigatória a audiência prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha.
Em suma: A interpretação no sentido da obrigatoriedade da audiência prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), sem que haja pedido de sua realização pela ofendida, viola o texto constitucional e as disposições internacionais que o Brasil se obrigou a cumprir, na medida em que discrimina injustamente a própria vítima de violência. STF. Plenário. ADI 7267/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 22/8/2023 (Info 1104).
Com base nesse entendimento, o Plenário do STF julgou parcialmente procedente o pedido para dar interpretação conforme a Constituição ao art. 16 da Lei nº 11.340/2006, no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade:
i) da designação, de ofício, da audiência nele prevista; e
ii) do reconhecimento de que eventual não comparecimento da vítima de violência doméstica implique “retratação tácita” ou “renúncia tácita ao direito de representação”.
É bem de ver que esse já era o entendimento do STJ
A audiência do art. 16 da Lei Maria da Penha não é um ato processual obrigatório determinado pela lei; a realização dessa audiência configura apenas um direito da vítima, caso ela manifeste o desejo de se retratar.
A audiência prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/2006 tem por objetivo confirmar a retratação, não a representação, e não pode ser designada de ofício pelo juiz. Sua realização somente é necessária caso haja manifestação do desejo da vítima de se retratar trazida aos autos antes do recebimento da denúncia. STJ. 3ª Seção. REsp 1977547-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 8/3/2023 (Recurso Repetitivo – Tema 1167) (Info 766).
Portanto • Para que a audiência do art. 16 se realize é indispensável a prévia manifestação da vítima levada ao conhecimento do juiz, expressando seu desejo de se retratar. • A intenção do legislador, ao criar tal audiência, foi a de evitar ou pelo menos minimizar a possibilidade de oferecimento de retratação pela vítima em virtude de ameaças ou pressões externas, garantindo a higidez e autonomia de sua nova manifestação de vontade em relação à persecução penal do agressor. Assim, não há como se interpretar a regra contida no art. 16 da Lei nº 11.340/2006 como uma audiência destinada à confirmação do interesse da vítima em representar contra seu agressor, pois a letra da lei deixa claro que tal audiência se destina à confirmação da retratação. • Se a vítima já fez a representação no início da persecução, ela se presume válida até que sobrevenha manifestação do mesmo indivíduo em sentido contrário. • A realização obrigatória de uma audiência para confirmar se a vítima da violência doméstica permanece com interesse de seguir com o processo contra seu agressor é uma providência que ganha contornos mais sensíveis e que tem o potencial de agravar o estado psicológico da vítima. Isso porque essa audiência coloca em dúvida a veracidade de seu relato inicial. Além disso, não raras vezes a vítima está inserida em um cenário de dependência emocional e/ou financeira, fazendo com que ela se questione se vale a pena denunciar as agressões sofridas, enfraquecendo o objetivo da Lei Maria da Penha de garantir uma igualdade substantiva às mulheres que sofrem violência doméstica. Por fim, essa audiência, se obrigatória, leva a vítima a reviver os traumas decorrentes dos abusos.
Extrema 11/11/23.
Milton Biagioni Furquim