Justiça proíbe uso da frase ‘sob a proteção de Deus’ e leitura bíblica em sessões de Câmara Municipal
Justiça proíbe uso da frase ‘sob a proteção de Deus’ e leitura bíblica em sessões de Câmara Municipal
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) proferiu uma decisão controversa ao declarar a inconstitucionalidade da leitura bíblica e do uso da frase “sob a proteção de Deus” no início das sessões das Câmaras Municipais de alguns Municípios bandeirantes.
Com essa determinação, o referido rito será eliminado na abertura das atividades legislativas.
A decisão, que foi unânime e já transitada em julgado, foi emitida em maio deste ano, após o Ministério Público propor uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).
O julgamento possui efeito “ex-tunc”, o que significa que a inconstitucionalidade está presente desde o início da prática e não cabe mais recurso.
A inclusão da expressão “sob a proteção de Deus, iniciamos nossos trabalhos” na abertura das sessões legislativas, juntamente com a subsequente leitura de um texto da Bíblia Sagrada por um dos vereadores presentes, está estabelecida nos Regimentos Internos das Câmaras Municipais.
Em contrariedade, o desembargador relator sustentou que o dispositivo viola o princípio da laicidade do Estado brasileiro, uma vez que a Câmara Municipal, como instituição pública inserida em um Estado laico, não pode privilegiar uma religião em detrimento de outras ou daqueles que não possuem crença religiosa.
De acordo com ele, o trecho do Regimento Interno da Câmara configura uma interferência estatal no direito à liberdade religiosa, violando também os princípios da isonomia, da finalidade e do interesse público, alegando também que a iniciativa não traz benefícios à coletividade.
A garantia do Estado laico obsta que dogmas da fé determinem o conteúdo de atos estatais. Assim entendeu o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo ao anular uma lei de Itapecerica da Serra, que previa a leitura de um versículo da Bíblia antes do início das sessões na Câmara de Vereadores.
Ao propor a ADI, a Procuradoria-Geral de Justiça afirmou que não compete ao Poder Legislativo criar preferência por determinada religião, e alegou que a norma afronta a laicidade estatal.
Ao julgar a ação procedente, o relator, desembargador Ferreira Rodrigues, disse que a "inconstitucionalidade da lei é manifesta", diante da disposição expressa do artigo 19, inciso I, da Constituição Federal. Ele citou inúmeros precedentes do Supremo Tribunal Federal sobre a garantia do Estado laico.
Entre eles, o entendimento do STF de que nenhum ente da federação está autorizado a incorporar preceitos e concepções, seja da Bíblia ou de qualquer outro livro sagrado, a seu ordenamento jurídico, e de que, ao optar por uma orientação religiosa, a norma atacada quebrou não apenas o dever de neutralidade estatal, como também violou a liberdade religiosa e de crença de quem não tem a mesma fé.
"Como foi bem ressaltado pelo douto Procurador-Geral de Justiça, não compete ao Poder Legislativo municipal criar preferência por determinada religião, voltado exclusivamente aos seguidores dos princípios cristãos, alijando outras crenças presentes tradicionalmente no tecido social brasileiro como a judaica, a muçulmana etc., bem como de outras que não ostentem essa percolação, justamente à vista da laicidade do Estado brasileiro", disse.
É importante considerar, sob esse aspecto, que as regras sobre organização político-administrativa (contidas no Título III, Capítulo I, da Constituição da República) traduzem verdadeiro instrumento de calibração do pacto federativo. Vale dizer, como normas centrais da Constituição Federal, “reproduzidas, ou não” na Constituição Estadual, “incidirão sobre a ordem local” por força do princípio da simetria, a fim de conservar o modelo federalista e os padrões estruturantes) no controle abstrato de normas municipais com base na norma remissiva do artigo 144 da Constituição Estadual: “Artigo 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.
Assim, verificada a incompatibilidade do dispositivo impugnado com a disposição do artigo 19, inciso I, da Constituição Federal, aplicável aos municípios por força do artigo 144 da Constituição Estadual, não resta outra solução, no caso, senão decretar a procedência da ação.
Dever de neutralidade imposto ao Estado impede a participação do Município em assuntos religiosos. Configurada, ademais, descabida predileção em favor de determinada religião. Inconstitucionalidade reconhecida. Precedentes da Suprema Corte e do C. Órgão Especial. Arguição acolhida” (Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade n. 0012666-38.2020.8.26.0000, Rel. Des. Evaristo dos Santos, j. 1º/07/2021).
Bom, para uma discussão e reflexão sobre o tema, a invocação dos usos e costumes não seria a solução para que possam continuar invocando na abertura dos trabalhos legislativos citações bíblicas? Seriam os usos e costumes, como fonte do direito, inconstitucionais?
As práticas consuetudinárias suscitam profundas reflexões, no que tange ao estudo dos processos difusos de mudança do Texto Maior, principalmente diante do problema relativo à determinação do valor jurídico dos usos e costumes, enquanto fontes do direito constitucional.
Uma constatação, porém, parece não deixar dúvidas: as constituições não se encerram nos limites de suas normas. Estão em permanente progresso, em eterno devenir. Embora venham contidas num instrumento formal, jamais se imobilizam, não se estratificam. Evoluem no dia-a-dia, por meio dos costumes, das interpretações e decisões jurisprudenciais, nas lições dos professores/mestres,
O seu ser reside no estar-se realizando, porque não são documentos prontos e acabados. As constituições têm vida! Tenho minhas dúvidas, uai.
Guaxupé, 21/08/23.
Milton Biagioni Furquim