O venire contra factum proprium também se aplica para o réu no processo penal?
O venire contra factum proprium também se aplica para o réu no processo penal?
Venire contra factum proprium, ou nemo potest venire contra factum proprium, é um brocardo latino que significa "vir contra seus próprios atos", "ninguém pode comportar-se contra seus próprios atos". É um princípio base do Direito Civil, que veda comportamentos contraditórios de uma pessoa. Seu fundamento se encontra nos princípios da boa-fé e da força cogente dos contratos (pacta sunt servanda).
Segundo jurisprudência assente no STJ, "a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada objetivamente, segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé" (REsp n. 1.192.678/PR, Relator Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/11/2012, DJe 26/11/2012).
No Agravo Regimental no Recurso em Mandado de Segurança, o Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA usou tal fundamento para negar provimento ao recurso: Se o recorrente concordou, anteriormente, com a produção da prova, sua mudança de opinião a respeito do assunto constitui afronta ao princípio da boa-fé processual e impede o reconhecimento de nulidade, em virtude do brocardo jurídico 'nemo potest venire contra factum proprium', que veda o comportamento contraditório.
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: "Não é dado à ré exigir que o autor forneça documentos para fins de transferência dos salvados junto ao órgão competente e, após, adote comportamento contraditório, permanecendo inerte, sob pena de ferir o princípio "venire contrafactum proprium"." (TJRS - 6ª Câmara Cível - 70050898410, Rel. Des. Sylvio José Costa da Silva Tavares)
Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul: "a mudança de negociações pautadas por expectativa escudada na boa-fé objetiva importa em venire contra factum proprium devendo ser arrostada pela proteção da confiança da outra parte" (TJMS – 1ª Turma Cível – Apelação Cível – Ordinário – n° 2001.006261-8/0000-00 – Relator Des. Jorde Eustácio da Silva Frias)
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: "inadmissível comportamento processual em contradição à conduta de anuência à composição havida" e "aplicável o princípio segundo o qual a ninguém é licito venire contra factum proprium". (TJSP – Apelação Cível – 5ª Turma de Direito Privado – n° 5818044200 - Rel. Des. Oscarlino Moeller).
A bem da verdade, de forma a facilitar o entendimento, o venire contra factum proprium, é nada mais nada menos do que a vedação ao comportamento contraditório.
Inicialmente, é de se consignar que vigora na moderna teoria contratual a obrigatoriedade de os contratantes agirem segundo a boa-fé objetiva, ou seja, atuando conjuntamente para que ambos obtenham o proveito almejado quando da celebração do negócio jurídico. Sobre referido princípio, assim leciona Caio Mário da Silva Pereira: “Princípio da boa-fé objetiva: A boa-fé objetiva não cria apenas deveres negativos, como o faz a boa-fé subjetiva. Ela cria também deveres positivos, já que exige que as partes tudo façam para que o contrato seja cumprido conforme previsto e para que ambas obtenham o proveito objetivado. Assim, o dever de simples abstenção de prejudicar, característico da boa-fé subjetiva, se transforma na boa-fé objetiva em dever de cooperar. O agente deve fazer o que estiver a seu alcance para colaborar para que a outra parte obtenha o resultado previsto no contrato, ainda que as partes assim não tenham convencionado, desde que evidentemente para isso não tenha que sacrificar interesses legítimos próprios. ” (Instituições de Direito Civil – Contratos, 11ª ed., Forense: Rio de Janeiro, v. III, 2003, p. 21)
Em decorrência da aplicação da boa-fé objetiva e, ainda, em razão da vedação ao benefício decorrente da própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans), aplica-se no ordenamento jurídico brasileiro a teoria da vedação ao comportamento contraditório, do latim nemo potest venire contra factum proprium, com amplamente aceitação na jurisprudência brasileira, conforme se extraí do seguinte julgado: “CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL CUMULADA COM OBRIGAÇÃO DE FAZER. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. FRANQUIA. CONTRATO NÃO ASSINADO PELA FRANQUEADA. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. VEDAÇÃO AO COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO. JULGAMENTO: CPC/2015. (…). 7. A exigência legal de forma especial é questão atinente ao plano da validade do negócio (art. 166, IV, do CC/02). Todavia, a alegação de nulidade pode se revelar abusiva por contrariar a boa-fé objetiva na sua função limitadora do exercício de direito subjetivo ou mesmo mitigadora do rigor legis. A proibição à contraditoriedade desleal no exercício de direitos manifesta-se nas figuras da vedação ao comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprium) e de que a ninguém é dado beneficiar-se da própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans). A conservação do negócio jurídico, nessa hipótese, significa dar primazia à confiança provocada na outra parte da relação contratual. (…). (REsp 1881149/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 01/06/2021, DJe 10/06/2021)
Recapitulando, a expressão "venire contra factum proprium" significa vedação do comportamento contraditório, baseando-se na regra da pacta sunt servanda. Segundo o prof. Nelson Nery, citando Menezes Cordero, venire contra factum proprium' postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro - factum proprium - é, porém, contrariado pelo segundo.
O venire contra factum proprium encontra respaldo nas situações em que uma pessoa, por um certo período de tempo, comporta-se de determinada maneira, gerando expectativas em outra de que seu comportamento permanecerá inalterado.
Em vista desse comportamento, existe um investimento, a confiança de que a conduta será a adotada anteriormente, mas depois de referido lapso temporal, é alterada por comportamento contrário ao inicial, quebrando dessa forma a boa-fé objetiva (confiança).
O venire contra factum proprium encontra respaldo nas situações em que uma pessoa, por um certo período de tempo, comporta-se de determinada maneira, gerando expectativas em outra de que seu comportamento permanecerá inalterado.
Em vista desse comportamento, existe um investimento, a confiança de que a conduta será a adotada anteriormente, mas depois de referido lapso temporal, é alterada por comportamento contrário ao inicial, quebrando dessa forma a boa-fé objetiva (confiança).
Entendo que este instituto pode muito bem ser usado contra aquelas cláusulas padrão em quase todo contrato, as quais dizem que a tolerância no inadimplemento de alguma obrigação assumida por aquele instrumento não constitui novação, se mostrando apenas como mera leniência da parte prejudicada. Isso quer dizer, portanto, que se há um comportamento permissivo reiterado no descumprimento de uma cláusula e a outra parte nunca tenha se insurgido quanto a isso, então não poderá posteriormente requerer indenização ou ruptura do contrato por conta desse descumprimento. Isso vale, também, para as cláusulas de condomínio que preveem o sorteio de vagas de garagem periodicamente, mas nunca o fizeram e, depois de vários anos, dão início a esse sorteio, sendo que os condôminos que se sentirem prejudicados poderão alegar o comportamento contraditório do condomínio em proceder com o sorteio.
Por meio deste princípio é vedado que uma parte adote um comportamento diverso daquele adotado anteriormente, em verdadeira surpresa à outra parte, sendo evidente que se busca proteger com este princípio a confiança e lealdade das relações jurídicas. A coerência, então, deve pautar as condutas das partes a fim de se evitar a violação da legítima expectativa, que fora criada justamente por conta de atitudes que foram tomadas ao longo da relação jurídica.
Pois bem, Em que pese o alongado introito, tal se dera para podermos facilitar o entendimento do que se pretende neste texto: O venire contra factum proprium também se aplica para o réu no processo penal?
Imagine a seguinte situação hipotética: João foi denunciado pelo crime de roubo.
A denúncia foi recebida. O acusado foi devidamente citado para responder ao processo e apresentou resposta escrita.
O juiz rejeitou o pedido de absolvição sumária e designou audiência de instrução e julgamento.
Ao ser intimado, João não foi localizado no endereço informado. Diante da ausência do réu na audiência, foi decretada a sua revelia. João foi condenado. O réu recorreu alegando que ele havia se mudado e que o juiz antes de decretar a revelia, deveria ter tentado esgotar todos os meios disponíveis para encontrá-lo. Como o magistrado não adotou essa cautela, teria havido nulidade.
Este raciocínio do réu estaria correto? Por certo que não, uai.
O réu já tinha sido citado e, portanto, tinha conhecimento da ação penal. A despeito disso, mudou de residência sem declinar seu novo endereço, fato que ensejou a decretação da revelia.
Desse modo, não se pode pretender atribuir a responsabilidade pelo seu paradeiro ao Poder Judiciário.
O réu mudou de endereço e não informou a Justiça, demonstrando, portanto, desinteresse em acompanhar o processo. Logo em seguida, com o resultado do processo desfavorável, arguiu a nulidade da revelia. Esse proceder não pode ser aceito porque representa venire contra factum proprium.
A proibição do venire contra factum proprium é um dos corolários do princípio da boa-fé objetiva e impede que o sujeito adote posturas contraditórias, como vimos no intróito.
Vale ressaltar que a regra que veda o comportamento contraditório (venire contra factum proprium) aplica-se a todos os sujeitos processuais, inclusive ao réu.
Em suma: Não é aceitável que o acusado, após a mudança de endereço sem informar ao Juízo, venha a arguir a nulidade da revelia, porquanto a vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium) aplica-se a todos os sujeitos processuais. STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.265.981-SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 28/2/2023 (Info 773).
Além do argumento acima exposto, vale frisar que, a teor do art. 565 do CPP, nenhuma das partes poderá arguir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido: Art. 565. Nenhuma das partes poderá arguir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido, ou referente a formalidade cuja observância só à parte contrária interesse.
No mesmo sentido: “O agravante, inequivocamente, tinha conhecimento da ação penal e optou por deixar de comparecer em Juízo, em várias oportunidades, sem motivo justificado. A regra que veda o comportamento contraditório (venire contra factum proprio) aplica-se a todos os sujeitos processuais, e não é aceitável, a teor do art. 565 do CPP, que ele venha agora a arguir a imprescindibilidade do interrogatório, máxime quando não indica tese relevante que interferiria no resultado do julgamento.STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 1.039.077/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 5/12/2017.”
Portanto, conclui-se que apesar da ausência de previsão legal específica, o instituto da proibição de comportamentos contraditórios é amplamente aplicado em nosso ordenamento jurídico pátrio, o que reforça a importância da boa-fé em todas as relações jurídicas.
Guaxupé, 07/07/23.
Milton B. Furquim