Como o ECA é visto pela sociedade

Como o ECA é visto pela sociedade.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completará dia 13 de julho, 32 anos de existência. É esta lei conhecida, divulgada e cumprida? Certamente que não. A maior parte da população desconhece o Estatuto da Criança e do Adolescente, inclusive aqueles que por ofício deveriam conhecê-lo muito bem. Alguém, por exemplo, sabe o que determina a lei 8069/90 do ECA no seu artigo 5º? Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Tomando conhecimento apenas deste artigo, alguém poderia dizer que o ECA é uma “lei que pegou”? Acho que não. Não. Tenho certeza que não, uai.

Elaborado a muitas mãos, o ECA é uma lei que nasce com uma essência democrática, levando em consideração perspectivas de especialistas de diversas áreas (direito, educação, sociologia, antropologia, psicologia…) e, fundamentalmente, contou com a participação de crianças e adolescentes de todo o Brasil.

O que é o Estatuto da Criança e do Adolescente?

Em 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, crianças e adolescentes passaram a ser considerados pessoas. Portanto, crianças e adolescentes passaram a ter direitos e usufruir propriamente deles, com as ressalvas necessárias ao considerá-las sujeitos em desenvolvimento.

A discussão sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente tem se resumido, quase sempre, à idade de imputabilidade penal do adolescente. O Estatuto de Criança e do Adolescente tem 267 artigos que tratam da proteção integral da criança e do adolescente. Mas quase ninguém sabe disso e muito menos que desses 267 artigos apenas 25 (do 103 ao 128) dedicam-se aos adolescentes infratores.

E, no entanto, a população clama que o ECA é a lei que protege os adolescentes que cometem crime ou contravenção penal, condutas que pelo ECA são chamados de ato infracional.

O ponto nevrálgico e quase único de discussão na sociedade e no Legislativo é o artigo 104 que considera penalmente ininputáveis os menores de 18 anos.

Sem sombra de dúvidas, a questão do adolescente infrator e a sua ininputabilidade penal tem sido, ao longo dos 32 anos de sua existência, a razão quase única da sociedade (e da mídia, como veículo do pensamento popular), para discussão e sobretudo críticas, às vezes veementes, raivosas, e até quase irracionais, à lei.

Ora, esta lei dispõe sobre a garantia de proteção integral a todas às crianças e adolescentes e não apenas aos infratores. É necessário um amplo compromisso dos meios de comunicação em divulgar esta realidade. É uma pena, mas me arrisco a dizer que o ECA, apesar de sua vanguarda no mundo pelo excelente propósito, é um ‘faz de conta’. Infelizmente. É aquilo que comumente falamos: é uma lei para o primeiro mundo, é para ser aplicado na Suécia, Suíça, etc., mas não no ‘Brezil’, onde falta tudo e tudo falta para que possa ser aplicada, observada, respeitada.

Houve avanços na proteção de crianças e adolescentes por conta do ECA? Em primeiro lugar, não creio que seja uma regra que a sociedade modifica comportamentos e condutas em função de determinações legais e sobretudo em relação às suas crianças e adolescentes.

O reconhecimento dos pais da necessidade de respeitar os filhos, de os educar sem violência, de não os humilhar e discriminar, de se preocupar com o seu bem-estar não só físico, mas emocional, de lhes proporcionar carinho e afeto não dependem apenas de legislações nos seus aspectos normativos e punitivos. Seria necessário um conjunto de normas para que isto aconteça nos relacionamentos entre pais e filhos? Por óbvio que não.

Entendo que estamos, neste particular, diante de um direito natural, desnecessário qualquer regulação. Mas no ‘Brezil’ nem com regulação legislativa é possível melhorar a política de atendimento em todos os aspectos às crianças e adolescentes. Impossível, uai. E torna-se impossível em razão de não haver ou se há, mas não surte efeito, uma política social de melhoria das condições sociais das classes menos favorecidas, cujos filhos e adolescentes não tem o mínimo necessário para que obtenham suas alforrias cultural, social, familiar etc.

É longo o processo de transformação de comportamentos da sociedade em relação às suas crianças e múltiplos fatores concorrem para essas mudanças. Acredito que uma eficaz fiscalização do cumprimento do ECA associada a medidas de prevenção junto à sociedade serão mais eficazes que o simples temor de punição prevista na lei. Mas o grande valor do ECA com sua ampla abordagem dos direitos de crianças e adolescentes é possibilitar que a sociedade cobre das autoridades medidas efetivas para o seu cumprimento. Mas quando isso irá acontecer? Quando serão as autoridades cobradas. Mas, mais que isso, o que a sociedade efetivamente pode contribuir para melhorar essa situação que nos deixa mais incrédulos, do que com algum otimismo?

O Estatuto cria e estrutura o Sistema de Garantia de Direitos com o princípio da articulação entre as políticas públicas para assegurar o que está escrito na lei, prevenir as suas violações e garantir a responsabilização dos violadores. Fiscalizar o poder público torna-se uma tarefa obrigatória para quem quer garantir a efetivação do que está preconizado no ECA.

Comemora-se 32 anos de sua edição, mas nada ou quase nada melhorou em relação ao que era quando de sua criação: os problemas sociais são os mesmos, a pobreza sempre sendo tratada de forma maquiada, educação no seu pior momento, pois nada mais ensina o que não justifica o gasto com a mesma para resultados pífios.

E isso não é feito, até porque a sociedade não conhece o ECA. Ou será que as autoridades estão cumprindo o seu papel? Vejo hoje autoridades creditarem ao ECA a melhoria dos indicadores básicos de saúde e educação. Isso não é verdadeiro. São múltiplos os fatores que levaram o Brasil a reduzir taxas de mortalidade infantil, por exemplo, ao longo desses últimos 30 ou 40 anos.

O fator ECA, talvez seja o que menos influenciou para que esses avanços ocorressem. Houve grandes avanços com o ECA? Eu diria apenas que houve avanços e daria, apenas como exemplo, a criação dos Conselhos Tutelares (infelizmente ainda não existentes em todo o país e extremamente carentes de tudo, em muitos municípios), e não sei se vale a pena a existência desses CTs totalmente ineficientes e sem o mínimo de estrutura para seu funcionamento, dos Conselhos de Defesa dos Direitos da Criança e da ainda incipiente rede de Delegacias e Varas de Justiça Especializadas em Crianças e Adolescentes Vítimas.

O papel dos meios de comunicação tem sido fundamental para a divulgação dos direitos da criança e do adolescente. Infelizmente, repito, o foco tem sido quase exclusivamente o adolescente infrator. A sociedade precisa conhecer o ECA e esse papel cabe à mídia.

Eu diria que a grande meta para cumprir as determinações do ECA não são os 25 artigos destinados ao infrator, mas os outros 242. As grandes metas devem ser: priorizar a discussão e o foco nas crianças e adolescentes vítimas e cobrar dos governos a prioridade para a prevenção. Talvez assim poderemos, em algum 13 de julho, comemorar o importante papel do ECA na proteção integral da criança e do adolescente. Por enquanto, a voz do povo só se levanta para criticar o ECA. E todos nós sabemos que foram 32 anos de uma lei não cumprida. A crítica ao ECA não procede, mas sim aos por ela a responsabilidade por torná-la prática, exequível.

Estamos entre os países que mais mata adolescentes no mundo. Segundo o Unicef, morrem 31 crianças e adolescentes assassinados por dia no Brasil, sendo que a grande maioria das vítimas são meninos negros, moradores de periferia e que se encontram fora das escolas. Muitas destas mortes são provocadas pela ação violenta da polícia, milícia, gangs, grupos armados, etc.

O ECA é incisivo quanto à proteção contra o trabalho infantil, e defende a profissionalização como direito. Ignorando o Estatuto, o presidente da república afirma ser a favor do trabalho infantil, talvez uma das mais graves violações de direitos, como dizem seus adversários (será?).

Por evidente somos contra o trabalho infantil (crianças até 12 anos), para este segmento a única opção viável é a escola, mas não a escola do ‘faz de conta’. Escola real, produtiva, séria e com resultados, sobretudo às crianças provenientes daquela classe social menos favorecida.

É no trabalho precoce que crianças (até 12 anos) perdem a infância, são mutiladas, exploradas, ficam expostas a doenças laborais, muitas trabalham em condições análogas a de escravos. Mesmo o trabalho glamoroso traz estresse e prejuízos à saúde física e mental.

O trabalho infantil interessa principalmente a quem lucra com ele. Crianças que trabalham perdem o tempo de brincar, de ir para a escola, praticar esportes, fazer teatro, ler, soltar pipa, fazer palavras cruzadas, correr e se relacionar com seus pares. Este é o discurso dos defensores desta tese, mas saiba que eles incluem os acima de 12 anos até os 18 anos que não mais são crianças e sim adolescentes.

Mas mesmo assim pergunto: estes defensores vivem em que realidade? Não se discute que entre trabalhar e estudar, aqui no Brasil a opção deveria ser pelos dois (trabalhar e estudar), mas em relação aos adolescentes (12-18 anos).

E o que vemos? Adolescentes o dia todo sem ter o que fazer e sem estudar perambulando pelas ruas, até altas horas madrugadas, bebendo, drogando, baladas e mais baladas, desrespeitando a todos, causando medo nos cidadãos, em especial nos grandes centros. Ora, se a opção aqui no ‘Brezil’ é pelo estudo, então porque o Estado não vai até a comunidade, antigas favelas, no ‘morro’ e põe as crianças e adolescentes para frequentar as escolas?

Uma lei que protege a infância em sua plenitude protege a sociedade inteira. Vivemos em comunidade e uma parcela não pode ser violentada sem que o conjunto sofra. Sem lei estamos entregues à barbárie, sem referências para a construção de uma sociedade ética e para a dignidade humana. Mas a proteção a infância e juventude não pode ser na base do ‘faz de contas’, mas sim, ainda que seja imposição do Estado.

Só na perspectiva do tempo se pode apreciar com justiça a história de épocas vividas. A forma de desigualdade social no Brasil, com características marcantes, sofridas para os menos favorecidos, permite que se tenha dela uma visão panorâmica suficiente para possibilitar uma apreciação global de seu significado, ou seja, a exclusão social brasileira, vivida com características marcantes e definidas que perduram até os dias atuais.

É importante destacar que se faz necessário, portanto, continuar lutando por políticas públicas em educação voltadas para o desenvolvimento social, de forma a estar auxiliando as pessoas a alcançarem a cidadania, pois o espaço educativo se constitui em um espaço de excelência para que a semente de uma nova realidade seja plantada e possa germinar no Brasil.

Extrema, 15/04/22.

Milton Biagioni Furquim

Juiz de Direito

Milton Furquim
Enviado por Milton Furquim em 15/04/2022
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