Prisão Civil. Há quem diga que é irracional. Que ainda seria desproporcional. E nos Países desenvolvidos como é?
Prisão Civil. Há quem diga que é irracional. Que ainda seria desproporcional. E nos Países desenvolvidos como é?
A sabedoria popular ensina que a única coisa que verdadeiramente funciona no Brasil é a prisão do devedor de alimentos. Esta coação é “tiro e queda”. No entanto, apesar disso, milhares de execuções de alimentos abarrotam os gabinetes das varas de família pelo Brasil afora. Depois dos executivos fiscais, creio que as ações de alimentos/execuções são os que mais abarrotam os fóruns.
O fenômeno tem duas singelas explicações. O devedor não cumpre sua obrigação voluntariamente e a justiça o constrange com a prisão. Por certo, ninguém deve sem motivos, mas o alimentando não consegue aguardar pacientemente que todos os problemas do alimentante se resolvam para, depois, ter fome. Não e não.
A Constituição Federal de 1988 alterou-se e o artigo 277 igualou as responsabilidades dos genitores e, também, previu a responsabilidade solidária do Estado no desenvolvimento e suporte material da criança. Confira: “Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Em sequência, com a entrada em vigor em nosso ordenamento jurídico, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, em seu artigo 22 determina a função reciproca dos genitores nos cuidados materiais com a prole e, finalmente em 2002, o novo Código Civil previu a assistência mútua dos cônjuges na guarda, assistência e criação dos filhos, com fulcro no artigo 1.566, III e IV: “Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. Parágrafo único. A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança [...] (grifo nosso)
A prisão civil nesta terra de Santa Cruz é vista e tida como meio de coerção para que o agente pague o seu débito alimentar, pena de prisão, e na maioria das vezes realmente serão. Devido a potencialidade do sujeito devedor de alimentos vir a ser preso, há quem entenda que tal punição civil é desproporcional e fere o princípio da dignidade humana, estabelecido no artigo 1º, III da Constituição Federal de 1988 – o que significa ferir os princípios do Estado Democrático de Direito.
Compreendo e, também comungo do mesmo pensamento, no entanto tenho que a nossa sociedade não parece desenvolvida ao ponto de que já possamos abrir mão deste instrumento de coerção - quem sabe quando alcançarmos outro grau de desenvolvimento e de tecnologia para detectarmos patrimônio de inadimplentes crônicos, possamos redimensionar tal tratamento jurídico.
Infelizmente vivemos num cenário onde a maioria só paga quando a polícia (oficiais de justiça) bate à porta, mesmo aqueles que não tem condições, quando presos, aparece no dia seguinte a prisão, o dinheiro para pagar, parece que "brota do nada", o que demonstra que a família se reúne para ajudar o devedor, ou seja, dava pra pagar, mas não o fez, mas sem a prisão, infelizmente o alimentado passará fome, essa é a única certeza.
Todavia, embora ocorra o avançar da legislação e da sociedade, no que tange a mútua responsabilidade dos genitores, habituou-se aos homens a função de responsabilidade material dos filhos, bem como o vício de prisão civil por inadimplemento de pensão alimentícia, o que é um déficit nos direitos a liberdades civis. Nesse sentido o juiz Rafael Calmon, no artigo “A prisão civil em perspectiva comparatista: e o que podemos aprender com isso”, na Revista do IBDFAM, 27ª edição diz que: “As democracias mais avançadas do planeta seguiram certas tendências que podem ser assim minimamente identificadas: todas excluíram a prisão civil de seus ordenamentos; todas possuem medidas mais eficazes e adequadas às suas realidades, para o recebimento da pensão pelos credores de alimentos; todas possuem um Estado mais atuante sobre o bem-estar social dos cidadãos; todas mantiveram a possibilidade de o devedor de alimentos ser preso criminalmente pela sonegação de algum tipo de suporte alimentar ao credor de alimentos. Por outro lado, em democracias menos avançadas ocorre o contrário: a prisão civil continua sendo permitida no ordenamento jurídico”.
Os países mais desenvolvidos não preveem o encarceramento do devedor de pensão alimentícia, como ocorre no Brasil, por vislumbrarem que é uma medida desproporcional e não satisfaz a real pretensão, que é o melhor interesse da criança e a manutenção da prestação material. Entre os países que aboliram a prisão civil, encontra-se a Itália, Portugal, Espanha e França, abolindo-a totalmente, cabendo ao direito penal os casos de inadimplemento por dolo.
Nas brilhantes palavras do Ministro Cezar Peluso: [...] É coisa inconcebível. E inconcebível é, agora, que continuemos a admitir, de modo claro ou velado, que o corpo humano possa ser objeto de técnicas de violência física para induzir o cumprimento de obrigações de caráter patrimonial. (RE 466.343/SP – STF) Grifo nosso
Em termos, é praticamente inútil. Se considerarmos aqueles que têm dinheiro e não pagam por birra, eles pagarão para não ficarem presos. Se considerarmos a grande maioria dos pais, muitas vezes desempregados e sem realmente condições de pagar, ficarão presos, sairão e continuarão sem pagar, posto que não têm bens para serem executados. Prendê-los apenas torna mais difícil a busca por empregos ou ‘bicos’ para poderem cumprir as obrigações. Nada inteligente. Confesso que a minha posição é inteiramente paradoxal, pois sou contrário à prisão civil pode débito alimentar, no entanto, inda é o meio mais eficaz, embora injusto, de fazer com que o inadimplente cumpra com sua obrigação.
Outro princípio ferido com a prisão civil diz respeito a proporcionalidade, cujo fim não justifica a medida adotada e tampouco é a mais adequada a solução desejada. A prisão civil traz efeitos negativos não apenas ao devedor, mas à criança. A prisão ainda pode ocorrer, e ocorre diversas vezes, ou seja, um verdadeiro bis in idem, pelo mesmo motivo. Verdade é que o fato seria novo, uma nova prestação alimentar, mas o fundamento é exatamente idêntico, o que comprava a irracionalidade de sua aplicação, assim como eficácia. Pode ser preso tantas vezes seja o descumprimento pela mesma prestação. Punir um cidadão ausente de possibilidade de arcar com a obrigação não serve ao direito e tampouco a finalidade de atender à necessidade alimentar do ascendente.
Pela experiência posso afiançar que o melhor interesse da criança não se resolverá através da prisão, pois fere a manutenção dos vínculos e enseja possivelmente na construção e sentimentos destrutivos para com a genitora que solicitou a prisão civil, assim como ao genitor – impossibilitado.
É bem de ver que se faz necessário buscar alternativas de modo a viabilizar a efetividade dos direitos humanos. Faz-se necessário a criação de novas medidas, racionais e que proporcionem o estabelecimento financeiro do pai, e sua volta ao mercado de trabalho, como oferecimento de cursos profissionalizantes e até mesmo a contratação temporária desses homens em dívida alimentar para a prestação de serviços ao Estado, ou convênios com o setor privado, para a contratação desses devedores desempregados. Confesso que esta idéia, embora salutar, mas tenho por inviável diante da situação econômica do País e a falta de políticas sociais para a solução da problemática.
A falta de pagamento da pensão alimentícia não justifica, por si, a prisão do devedor, medida excepcional que somente deve ser empregada em casos extremos de contumácias, que, embora possua meios necessários para saldar a dívida, procura todos os meios de protelar o pagamento judicialmente homologado.
Nunca esquecer que a Constituição Federal permite a prisão civil do devedor de alimentos apenas em casos da dívida voluntária e inescusável do devedor de alimentos. A proposta é a busca por meios mais céleres, através de mecanismo mais eficaz para cumprimento da obrigação alimentícia. O judiciário deverá se utilizar de outros mecanismos processuais para a efetivação do dever alimentar, inclusive a própria possibilidade de tutela específica, à luz do que estabelecem os artigos 497 e 498, ambos do Código de Processo Civil.
O Código de Processo Civil vigente trouxe, expressamente, algumas medidas coercitivas de adimplemento da dívida alimentar, tais como a possibilidade de protesto (artigo 528, §1°), desconto em folha de pagamento do alimentante (artigo 529) e, enfim, a prisão desde devedor de alimentos, sendo este limitado à execução do crédito alimentar compreendido das últimas três prestações anteriores ao ajuizamento da ação.
Porém, além das medidas já mencionadas de coerção do devedor de alimentos, outras medidas podem ser empregadas pelo juiz, se a legislação possibilita a medida extrema da prisão civil, havendo outras medidas tão eficazes quanto e menos gravosas ao devedor, devem estas, preferencialmente, serem adotadas pelo magistrado.
A utilização da desconsideração inversa de personalidade jurídica, quando haja ocultação de patrimônio do devedor em pessoa jurídica, como uma forma de coerção; a perda do poder familiar, caso o devedor ainda o exerça, e, principalmente, a aplicação de medidas restritivas de direitos, também poderiam ser empregadas, a exemplo do que ocorre no Direito Penal. Porém, aqui, unicamente com intuito de incentivar o devedor a adimplir o débito alimentar.
Temos ainda a aplicação da teoria da aparência quando o sujeito vive numa ambiência nababesca de modo que não justifica, levando em consideração não possuir renda suficiente e/ou bens em seu nome, eis que ocultados exatamente para furtar-se do pagamento de seu débito alimentar.
Foi em boa hora que o atual Código de Processo Civil chegou, pois em seu artigo 139, inciso IV, dispõe: “Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (...) IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária; (...)”.
Com isso, no lugar da medida extrema da prisão do devedor dos alimentos, o juiz poderá se socorrer de outras medidas menos gravosas ao devedor, mas também eficazes ao credor, como a suspensão da licença para dirigir; suspensão dos direitos políticos; suspensão do exercício da profissão; apreensão de passaporte, e o bloqueio de cartões de crédito, entre outras, hoje sendo aplicadas tais medidas e com relativo sucesso.
É sabido que tais medidas já são acionadas, porém, para que as alternativas acima sejam consideradas, deverá também o legislador mudar as regras para que o credor da pensão possa acionar o Judiciário. Poderia ele, o credor, buscando a celeridade, ir de encontro ao apoio do Estado-Juiz logo depois de caracterizada a inadimplência do primeiro mês de pensão alimentícia.
Um outro mecanismo que poderia ser utilizado para se garantir o crédito alimentar é a imposição de astreintes, que tem como objetivo induzir o devedor ao cumprimento de uma obrigação de fazer, não fazer e entregar coisa. E, portanto, o meio imposto pelo juiz para coagir o devedor a satisfazer a obrigação decorrente da decisão judicial.
Em alguns casos o devedor de alimentos tem a intenção de adimplir a prestação pecuniária, mas não consegue, por conta de estar muitas vezes desempregado e, com isso, não ter nem mesmo condições de manter sua própria subsistência. É a grande maioria que se sujeitam às execições e que vão presos, infelizmente. O Poder Judiciário, que representa o Estado, poderia, analisando o enquadramento nesse caso, fazer convênios através de Parcerias Público Privadas, por meio das quais esse devedor prestaria serviço e o valor seria repassado direto para o credor.
Como já afirmado, os exemplos de alternativas capazes de aumentar o índice de adimplência ou reduzir a inadimplência dos créditos de pensão alimentícia, temperando a sanção prisional, não se esgotam nos citados acima.
Há notícia de várias alternativas adotadas por diversos países que caminham na direção de buscar atingir o objetivo principal da execução do crédito alimentar, a satisfação do credito, sem que, para isso, se lance mão de um expediente tão cruel para a dignidade da pessoa humana que é a perda de sua liberdade.
O direito processual civil, a exemplo do direito penal brasileiro, deverá caminhar na direção de reconhece que o encarceramento de um ser humano não deverá se a única forma de fazer respeitar a lei.
Faz-se mister ressaltar, a responsabilidade solidária do Estado no inadimplemento das obrigações alimentares e na consequente manutenção da dignidade, vida e bem-estar da criança. O Estado ciente do risco a vida, saúde e integridade do menor em decorrência da impossibilidade do genitor arcar materialmente, sendo responsável pela alimentação deste - uma obrigação constitucional e social, não apenas da criança, mas do pai em situação de desemprego.
Art. 227 CR/88 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição
Os custos com o encarceramento, que variam de acordo com a unidade da federação, de modo racional também podem servir ao pagamento da prestação alimentar até que o genitor se estabeleça economicamente e possa arcar com suas responsabilidades.
O assunto necessita de atenção e urgência, a envolver diversos setores público para melhor análise dos gastos, não apenas com o detento, mas todo o aparato judicial e policial movido para a prisão civil de um cidadão impossibilitado de arcar com a dívida alimentar.
De modo que, a ideia de que a prisão civil por débito alimentar já está ultrapassada, vai de encontro com o que há de mais moderno e racional, filosófico e moral, resolve, de fato, semiologicamente, e, objetivamente, o axioma atual da irresoluta questão privativa da prisão civil.
Extrema 28/05/19.
Milton Biagioni Furquim
Juiz Direito