Droga, uma questão de saúde pública

Droga livre? Jovem escravo

“(...) roubada ou fornecida pelo Estado, a droga é, a longo, médio ou breve prazo, letal (...)”.

Vaticano, 25 de janeiro - Acabam de apagar-se as luzes da XIII Assembléia Plenária do Conselho Pontifício para a Família, o qual sempre fez parte Dom Lucas Moreira Neves, arcebisbo de Belo Horizonte, por nomeação do Papa, quase desde as origens. Em Roma, quando ali esteve para este evento, testemunhou outro de não pouca significação: o mesmo Conselho, na época, lançou, na Sala de Imprensa do Vaticano, para todo o mundo, um breve, mas denso documento sobre a liberalidade (ou discriminalização) da venda e uso da droga. Que seja o órgão de assessoria do Papa em questões relativas ao matrimônio e à família a tratar semelhante assunto, é já uma demonstração de que a pessoa humana e a família são as principais interessadas nos problemas conexos, como causa ou como efeito, com a tóxicodependência. Um precedente documento do mesmo Conselho Pontifício sobre o mesmo assunto, publicado em 1992, dizia já no título: Do Desespero à esperança: família e toxicodependência.

Esta é a posição fundamental da Igreja Católica nesta matéria. Ela sabe que no complexo inverso da droga entrecruzam-se dimensões várias - comercial, médica, pedagógica, jurídica, policial, psíquica, social, política, moral e espiritual - mas, presa nesta teia, ela vê principalmente a pessoa humana, seus valores primordiais, sua suprema dignidade. Por isso, no documento como em outros pronunciamentos, a Igreja recusa a indevida ideologização ou politização da questão e dos seus desdobramentos para levar em conta sobretudo a pessoa e sua família envolvidas na problemática.

Falando, hoje, da toxicodependência, seria um erro não considerar um aspecto relevante do fenômeno: sua extensão ou globalidade. Não é mais um fato que interessa uma só camada social, a média-alta, mas todas as outras. É um dado social que incide de modo predominante no mundo dos adolescentes, mas se alarga cada vez mais para a faixa infantil como para a dos jovens, jovens-adultos e adultos. Grassa tanto entre homens como entre mulheres. A incontrolável ampliação do fenômeno é, sem dúvida, favorecida pela descoberta de novas substâncias ou novas combinações, pela sofisticação técnica e pelo aperfeiçoamento da comercialização e do tráfico criminoso da droga, isto para não falar que 80% de todos os crimes praticados neste País de meu Deus tem relação com as drogas, quer aos usuários, quer aos traficantes.

Neste contexto de globalização da toxicomania, ganha importância absoluta o conhecimento das causas: por que se drogam nossos jovens? De fato - lembra o documento do Conselho para a Família, modestamente designado como uma reflexão – “o problema não está na droga, está na enfermidade do espírito que leva alguém a drogar-se”. E João Paulo II, escrevendo ao Diretor Executivo do programa da ONU contra a droga: “Existe um laço entre a patologia letal provocada pelo abuso da droga e a patologia do espírito que leva a pessoa a evadir-se de si mesma e a criar satisfações ilusórias na fuga da realidade”.

Por que se drogam os nossos jovens? Antes de tudo por problemas humanos considerados insolúveis. Porque, desde crianças, sobraram-lhes, talvez, benesses, mas faltaram-lhes presença e companhia. Porque ficaram abandonados a si próprios. Porque não houve verdadeira educação. Porque faltou-lhes afeto. Porque em lugar de liberdade com responsabilidade deram-lhes autonomia desenfreada. Porque não lhes robusteceram a vontade e lhes excitaram a embriaguez do prazer a qualquer custo. Porque os deixaram crescer sem interioridade, sem estrutura interna e, por isso mesmo, frágeis. E poderíamos multiplicar os porquês.

O conhecimento sério e responsável das razões que conduzem à droga e o esforço para sanar as carências que o jovem, equivocadamente, pensa curar com o “paraíso artificial” da droga são os únicos meios para a prevenção e, se esta não aconteceu, para a terapia eficaz.

Propor, em lugar disso, a fácil “solução” da liberação da droga é não somente ineficaz mas contraproducente e altamente nocivo, posição defendida por muitos. A alegada diferença entre droga leve ou doce e pesada ou dura é falaciosa. Falaciosa porque não leva em conta a necessidade de passar das mais leves para as cada vez mais pesadas. Porque cria paliativos em lugar de atacar a raiz do mal. Porque não atende à pessoa humana na sua plenitude.

É preciso partir da convicção de que a droga, qualquer droga, faz mal porque destrói a pessoa humana no seu cerne (é uma trágica ironia argumentar que a droga leve é levemente destruidora e a droga suave é suavemente mortífera!). Comprada ou obtida de modo delituoso, roubada ou fornecida pelo Estado, a droga é, a longo, médio ou breve prazo, letal. E é pouquíssimo provável que o Estado, depois de liberalizar a droga, tenha meios para desarmar esta bomba-relógio; para curar os efeitos da liberação. Aqui está o cerne da questão para que o usuário seja tratado como um problema de saúde pública.

O documento do Conselho Pontifício para a Família é mais um brado de alerta no momento em que cartéis inescrupulosos difundem o veneno, através de redes perfeitamente organizadas, em todos os níveis e segmentos da sociedade. É também um apelo aos governantes, aos guardiães da ordem, aos educadores, aos comunicadores sociais, aos líderes religiosos e sobretudo aos pais: cada qual no seu setor, são todos convocados para uma obra de salvamento. Nossos jovens precisam e esperam. Não querem que a droga livre os faça escravos. Sim, embora, penso, inevitável o seu contato com as drogas.

Sabemos que a flagrante falta de apoio conduz os nossos jovens a adentrar a passos largos na marginalidade, fazendo dele um ator de trágica dramaturgia, na qual só existem vítimas – todos nós.

É oportuno, ainda, refletirmos que o jovem, mesmo por curiosidade, ao buscar nessas substâncias entorpecentes as respostas para as suas aflições, indagações e inquietações, entra, quase sempre para o irreversível mundo das drogas pesadas.

O hediondo mercado das drogas está dizimando a nossa juventude. Ele avança e vai ceifando vidas nos pardieiros da periferia abandonada e no trágico ‘auê’ dos bares e noitadas animadas freqüentadas pela nossa juventude bem-nascida e sadia. Movimenta muito dinheiro. Seu poder corruptor anula, na prática, projetos meramente repressivos. Por isso, a prevenção e a recuperação, únicas armas eficientes a médio e longo prazo, reclamam um apoio mais eficiente dos governos e, porque não, da iniciativa privada às instituições sérias e aos grupos de auto-ajuda que lutam pela reabilitação dos viciados, pois, o combate às drogas não se esgota numa simples operação policial. Esse combate inicia na família e nas salas de aula, mas requer um apoio mais efetivo às iniciativas capazes de reintegrar os jovens no convívio social, a exemplo da nossa instituição AFETO que, pelo que observo, pouco ou nenhum apoio vem recebendo, quer da administração pública ou da iniciativa privada. A família guaranesiana de há muito está preocupada com a escalada e envolvimento de seus filhos com as substâncias entorpecentes. (na época era juiz em Guaranésia).

É dever de nossa sociedade dar auxílio aos adolescentes, procurando resgatar os cidadãos aprisionados nestes jovens e sofridos seres. Relembremos o genial escultor Michelângelo: “Tudo está dentro da pedra. Só raspo as saliências desnecessárias”.

De nada adianta, de per se, as medidas sócioeducativas previstas no Estatuto da Criança e Adolescente a ser aplicadas aos adolescentes infratores – usuários e traficantes. Penso que tais medidas não podem ser compreendidas como castigo ou pena, mas sim indicam finalidade de caráter educativo, pois têm como finalidade o meio de defesa social, bem como instrumento educativo de intervenção no desenvolvimento do adolescente, de sorte a revelar ou desenvolver recursos pessoais básicos e necessários ao enfrentamento das adversidades próprias da vida, sem utilização de soluções violentas ou ilegais. É vero. Mas é muito pouco e quase sempre não resulta em praticidade, eis que a ausência da sociedade na busca de soluções práticas que, aliada a inexistência de políticas efetivas por partes daqueles que têm a incumbência de dar pronta solução às questões de saúde pública, quando se manifestam o faz com retórica sem nenhuma objetividade.

Não é criminalizando e prevendo pena, seja de que tipo for, que a questão estará resolvida. Não! Não é um texto legislativo prevendo penas ou medidas socioeducativas que vai fazer com que o jovem do dia para a noite deixe de fazer uso da maconha, crack, cocaína, etc.

Cito como exemplo o meu caso. Enquanto juiz não me sinto à vontade para admoestar o usuário de entorpecente tentando conscientizá-lo dos malefícios da droga. Não me sinto à vontade exatamente porque também sou dependente químico, mas da droga tida por lícita. Consumo, infelizmente, duas carteiras de cigarros por dia (carlton). Teleologicamente não há nenhuma diferença entre o cigarro (carlton) – droga lícita, da droga ilícita (maconha), pois sou tão viciado e dependente quanto aquele que faz uso das drogas ilícitas. Não é, por certo, editando leis transformando o carlton – droga lícita, em lícita, que vou deixar de fazer uso do meu cigarro. Assim, com certeza, serei um juiz marginal, pois continuarei, agora, às escondidas fumando o meu carlton.

Somos todos, usuários de drogas lícitas e ilícitas, dependentes, doentes, e se doentes somos, então a questão é um problema da saúde pública, e não da polícia e do juiz.

Tenho que, no que diz respeito ao usuário, ao dependente químico, já se faz tarde para que seja desjudicializada – independentemente de sua liberação ou não, e seja tratada como uma questão de saúde pública. Não é tarefa da polícia e do Juiz curar o toxicônomo, antes, o contrário. A atuação destas instituições faz ainda mais que o jovem seja estigmatizado perante a sociedade. A Polícia e o Judiciário no trato com o usuário/dependente contribui ainda mais para a discriminação destes infelizes.

Para fechar, a grande discussão que se trava no momento – se liberar ou não o uso de drogas para uso próprio, é totalmente perda de tempo, digo isto porque a droga de anos já está liberada neste País, pois enquanto ainda judicializada a questão do usuário de drogas, a medida prevista ao usuário é a ‘advertência’.

Ora, desde quando o usuário vai dar importância para a advertêncial? Em caso de reincidência, a medida a ser aplicada é a ‘admoestação’. Uai sô, num consigo enxergar diferença entre advertência e admoestação. Tudo na mesma. Se houver a reiteração o usuário/dependente será ‘punido’ com multa de um salário mínimo. Hilário. Ué, se o pobre infeliz não tem dinheiro nem para adquirir um grama de maconha, como ele poderá pagar ao Estado a multa de um salário mínimo?

Bão sô, mas se ele não paga a multa e com certeza num paga ‘memo’, o que fazer? O órgão incumbido deverá, então, executar o valor da multa de um salário mínimo. Num é prá rir? E como ele, mesmo sendo executado, irá quitar a dívida? Uai, se não pagar o juiz manda penhorar bens do infeliz. Penhorar bens? Pqp. Num tem dinheiro para comprar um ‘bituca’ de maconha, pois tem que traficar para com o lucro manter o seu vício.

Após responder ao procedimento – policial/judicial, é aplicada a medida de advertência; essa advertência é tida como ‘chacota’, pois sai da audiência rindo de todos. Num nova abordagem policial é tido por reiteração no uso da droga – responde novamente a todo procedimento policial/judicial e, a ele, agora, uma nova medida é aplicada, no caso a admoestação.

Em nova incursão policial, agora é flagrado e, sendo reincidente – após responder aos procedimentos policial/judicial, lhe é aplicada uma pena de multa de um salário mínimo. Se não paga a multa, entao dá início a execução com penhora de bens. Não encontrando bens, arquiva-se a execução. Uai, mas tá ou não liberada a droga desde tempos. .

Guaranésia, 10 abril de 1999.

Milton Biagioni Furquim

Juiz de Direito

Milton Furquim

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Enviado por Milton Furquim em 25/01/2021
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