Estupro. Consumação. Tentativa. Provas. Sujeito Passivo. Vulnerável. (para leigos). (Parte 2)
Estupro. Consumação. Tentativa. Provas. Sujeito Passivo. Vulnerável. (para leigos). (Parte 2)
Recentemente as redes sociais foram tomadas por manifestações contrárias à uma sentença proferida por um juiz da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, o qual, acatando manifestação do promotor de justiça absolveu o réu do crime de estupro de vulnerável que teria sido praticado contra a vítima Mariana Ferrer, em 16 de dezembro de 2018, no Beach Club Café de La Musique, conforme a descrição inicial do fato na denúncia.
Não pretendo aqui desenvolver nenhum comentário ao que levou a absolvição do réu, as ocorrências da audiência. Minha proposição é apenas para mostrar ao público o quão difícil é julgar (sentenciar) um acusado de estupro em razão das provas quase sempre inexistentes, a não ser a palavra da vítima, tão só a palavra dela contra a palavra do acusado.
Estupro de vulnerável
Neste tópico vamos discorrer de forma bem didática a ocorrência do crime de estupro de vulnerável, isto é, quando a vítima é ‘di menor’ de 14 anos e, ainda do menor entre 14 e 18 anos de idade.
Todos nós em algum momento estamos vulneráveis em certas circunstâncias, ou seja, envolvidos em uma vulnerabilidade eventual. Mas não seria essa vulnerabilidade o objeto do legislador, que leva em conta critérios objetivos de vulnerabilidade tais como idade, enfermidade mental ou estado de incapacidade. Desta forma, sendo a pessoa considerada vulnerável, a violência será considerada presumida. Sendo a pessoa não considerada vulnerável, a violência a ser observada deverá ser a violência real para ser configurado o crime.
Há três situações caracterizadores da vulnerabilidade:
a) menor de 14 anos: é inegável que um ato sexual para ser fruto da escolha livre da pessoa, só será possível se esta atingir uma idade que lhe permita ter maturidade sexual. O legislador, pois, precisa estabelecer uma idade mínima para que seja possível a realização de um ato sexual livre. A escolha do legislador brasileiro é a idade de 14 anos. Abaixo dessa idade, a lei estabelece ser proibida a prática de qualquer ato sexual, ainda que a pessoa menor de 14 anos deseja e consinta no ato sexual (consentimento sem qualquer respaldo jurídico). Não é necessário que haja violência ou grave ameaça, de modo que não o dissenso não é um elemento constitutivo desse crime. Em outras palavras, se uma pessoa de 13 anos consentir na prática do ato sexual, ainda assim, haverá crime, pois a lei define como crime a prática sexual com menor de 14 anos. (vulnerabilidade presumida)
Discute-se se é possível desconsiderar a vulnerabilidade, em casos em que a pessoa, embora menor de 14 anos, tem experiência sexual e consente no ato. (fato comum, não podemos ignorar). Predomina o entendimento de que não há a possibilidade de exclusão da vulnerabilidade, de modo que se um adulto pratica ato sexual com menor de 14 anos, independentemente da condição da vítima, haverá crime. (Delmanto, 2016, p. 717) Em sentido contrário, Nucci afirma que para a pessoa que tem mais de 12 anos e menos de 14 anos, em interpretação conjunta com o Estatuto da Criança e do Adolescente, que considera criança quem tem menos de 12 anos, deve-se afastar a vulnerabilidade. Assim, segundo seu entendimento, havendo prova cabal da “capacidade de entendimento da relação sexual” de pessoa com 12 ou 13 anos, que consentiu na relação sexual, não haverá crime de estupro de vulnerável (Nucci, 2016, p. 1155). (muita discussão doutrinária e jusrisprudencial). Contudo a questão, embora não seja pacífica, mas predomina o entendimento de que sexo com menor de 14 anos de idade caracteriza estupro, pois a vulnerabilidade, pela lei, é absoluta. Diferente será a questão quando o sexo praticado for com ‘di menor’ entre 14 e 18 anos de idade em que a vulnerabilidade é tida por relativa.
b) enfermidade ou deficiência mental: trata-se da hipótese em que a vítima não é capaz de ter discernimento sobre o caráter sexual. Não basta a enfermidade ou a deficiência mental, é necessário que a pessoa não tenha essa capacidade de autodeterminação no campo sexual. Aqui já estamos referindo ao adulto.
c) impossibilidade de oferecer resistência: nessa hipótese, a vítima encontra-se em uma situação que lhe retira, no momento da ação, a possibilidade de resistir. A impossibilidade de resistência pode ser permanente, como no exemplo em que a vítima é tetraplégica, ou momentânea, no caso de embriaguez total ou sedação decorrente de consumo de droga. Ressalte-se que a condição da vítima, que a impossibilita de resistir, não precisa ter sido provocado pelo agente.
Vulnerabilidade absoluta e vulnerabilidade relativa
A discussão sobre a qualidade da presunção de violência no estupro sempre esteve acirrada, se a mesma era absoluta ou relativa. Em relação a presunção absoluta, não comportando prova em contrário, ou se relativa, possibilitando-se prova em contrário. O legislador atribuiu a condição de vulnerável ao menor de quatorze anos ou a quem por enfermidade ou deficiência mental não tenha discernimento. Na visão do legislador, existir duas modalidades de vulnerabilidade: a absoluta e a relativa. A absoluta seria referente ao menor de quatorze anos, bem como a relativa seria referente ao menor de dezoito anos e maior de quatorze, expressão empregada ao contemplar a figura do favorecimento a prostituição ou outra forma de exploração sexual.
Então que dizer que a configuração do tipo estupro de vulnerável não exige a ocorrência da elementar violência de fato ou presumida, bastando que o agente mantenha conjunção carnal ou pratique outro ato libidinoso com menor de catorze anos. Não tem necessidade de que a vítima ‘di menor’ sofra violência real, pois esta violência é presumida, de modo que é irrelevante, o consentimento da vítima e/ou sua experiência no sexo.
O estupro de vulnerável é hediondo em todas as suas formas. Em razão disso, a pena será cumprida inicialmente em regime fechado. Ademais, são vedados a anistia, graça, indulto e fiança. O sujeito passivo é a vítima, do sexo masculino ou feminino, menor de 14 (quatorze) anos, ou quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tenha o necessário discernimento para a prática do ato, ou, ainda, quem, por qualquer motivo, não possa opor resistência. O objeto jurídico no estupro de vulnerável é a dignidade sexual do vulnerável, e não a liberdade sexual, afinal, neste crime, não se discute se a vítima consentiu ou não com o ato sexual.
Tanto crianças quanto adolescentes. Ademais, frise-se que a vítima pode ser tanto do sexo masculino quanto feminino. O crime pode se dar pela conjunção carnal (cópula vagínica) ou pela prática de ato libidinoso diverso, não sendo exigido o emprego de violência real ou grave ameaça.
O elemento subjetivo do tipo penal é sempre o dolo, consistente em conquistar a conjunção carnal ou outro ato libidinoso, não sendo admitida a modalidade culposa por ausência de previsão legal. É essencial que o agente tenha consciência de que a vítima é menor de 14 (quatorze) anos. Se o seu desejo é a conjunção carnal, e a penetração do pênis na vagina não vem a ocorrer por razão alheia à sua vontade (CP, art. 14, II), o crime ficará na esfera da tentativa, embora outros atos libidinosos, não desejados, mas naturais ao ato, já tenham ocorrido.
A ciência da idade da vítima: O fato é que a condição objetiva prevista no art. 217-A deve fazer presente para que ocorra o crime de estupro de vulnerável. Basta que o agente tenha conhecimento de que a vítima é menor de catorze anos de idade e decida com ela manter conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, o que efetivamente estará caracterizado o crime em questão, sendo dispensável, portanto, a existência de violência ou grave ameaça para tipificação desse crime, cuja conduta está descrita no art. 217-A do Código Penal.” (STJ, AgRg no REsp 1407852 / SC, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, j. 05/11/2013).
A prova do crime nos estupros de vulneráveis. Neste e em outros crime contra a dignidade sexual a palavra da vítima tem peso relevante, principalmente por sempre acontecer sem a presença de testemunhas. Repetindo, nos crimes contra a liberdade sexual, a palavra da vítima é importante elemento de convicção, na medida em que esses crimes são cometidos, frequentemente, em lugares ermos, sem testemunhas e, por muitas vezes, não deixam quaisquer vestígios, devendo, todavia, guardar consonância com as demais provas coligidas nos autos” (AgRg no REsp 1346774/SC, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, j. 18/12/2012). Até mesmo a ausência de exame de corpo de delito, de acordo com a jurisprudência, não tem sido considerada causa de exclusão da materialidade delitiva. A uma porque em se tratando de atos libidinosos estes nem sempre deixam vestígio; a duas porque por ser substituído pela prova testemunhal” (STJ, HC 240393 / BA, Rel. Ministra MARILZA MAYNARD, j. 18/06/2013).
É certo que além da descrição objetiva dos fatos, as reações da vítima são importantes também na formação do juízo de convicção a respeito da ocorrência do delito o que só demonstra que o delito provoca reações psicológicas que perduram no tempo, transparecendo com reações adversas, inclusive querendo esquecer o que efetivamente vivenciou no dia dos fatos. Saliento que é comum, compreensível e esperado, que vítimas de abusos sexuais demorem tempo para dilacerar o silêncio e denunciar os abusos sofridos, em razão das constantes ameaças que vítimas desse tipo de crime sofrem e pelo enorme constrangimento psicológico e moral, tendo gravíssimas consequências negativas no decorrer de suas vidas.
Estupro tendo como vítimas o menor com idade entre 14 a 18 anos.
O parágrafo 1º do artigo 213, por sua vez, qualifica a figura do estupro quando da ocorrência e lesões corporais de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 anos ou maior de 14 anos. Duas são as hipóteses: 1ª) ocorrência de lesões graves (que abrangem as lesões gravíssimas) decorrentes da conduta do agente. 2ª) vítima maior de 14 anos e menor de 18 anos na data do fato.
Quanto às lesões graves (ou gravíssimas), devem ocorrer da conduta. Com isso, deixou claro o legislador que tais resultado devem decorrer da conduta, portanto da violência ou grave ameaça empregadas contra a vítima. Cremos, também, que as lesões graves podem decorrer, inclusive, da penetração ou do ato libidinoso diverso em si. Quanto à idade da vítima, se maior de 14 e menor de 18 anos, evidentemente, apenas poderá qualificar o delito se houver dolo do agente quanto à circunstância, direto ou eventual, sob pena de se estar admitindo responsabilidade penal objetiva, evidentemente vedada em Direito Penal.
Quanto à consumação, ocorrerá com a penetração ou a efetivação do ato libidinoso diverso da conjunção carnal, a exemplo do que já ocorria anteriormente. Assim é preciso que fique claro que em se tratando de estupro envolvendo menor de 14 anos – contra vulnerável, tido por vulnerabilidade absoluta, a violência é presumida, não há necessidade de que se pratique a violência real; ao passo que nos menores de idade entre 14 e 18 anos, a violência há de ser demonstrada.
Tais crimes somente são cometidos mediante dolo, isto é, vontade, desejo de realizar a ação, o crime, já que não há crime deste jaez na modalidade culposa.
Absolvição do acusado. O Estado tem a obrigação de comprovar a culpa do indivíduo, sem que permaneça qualquer dúvida, para afastar a presunção de inocência prevista na Constituição Federal. "O ônus da prova, sem que reste dúvida razoável, é do Estado acusador". O inciso VII do artigo 386 do Código de Processo Penal (CPP), prevê a absolvição do réu quando não existir prova suficiente para a condenação. Muitas vezes o juiz ao entender que o caso apresenta dúvida razoável, diante da divergência de laudos técnicos, por exemplo, há de julgar improcedente a ação. A situação de dúvida razoável é elemento indispensável do tipo penal e, portanto, o princípio constitucional da não culpabilidade deve ser interpretado em benefício do acusado. Para o juiz julgar um crime de estupro não é difícil, difícil é sentenciar fazendo justiça. Absolver quando tem que absolver e condenar quando se tem que condenar.
Concordância da vítima. Nos crimes contra a dignidade sexual, a palavra da vítima, em especial quando encontra apoio em outros elementos de provas coletados nos autos, mostra-se suficiente para manter a condenação. Em sendo a vítima menor de 14 anos à época dos fatos, e tendo o acusado conjunção carnal com a pessoa vulnerável nos termos legais, a imputação do crime do artigo 217-A do CP mostra-se plausível na espécie, sendo despiciendo o consentimento da vítima. É irrelevante o consentimento, para o ato de manter conjunção carnal, da vítima menor de quatorze anos, configurando-se o estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do CPP, mesmo na hipótese de concordância da ofendida ou eventual experiência sexual anterior.
Lamentável, mas há situações em que a verdadeira vítima é o acusado de cometer estupro. A Lei Maria da Penha não nos deixa mentir. Voltaremos na última parte a tratar do tema.
Erro de tipo. Estupro de vulnerável. Evidenciando que o acusado, de fato, não tinha convicção de que mantinha relação sexual com menor de 14 anos, exclui-se o dolo, relativo a elementar do crime de estupro de vulnerável, referente à menoridade. Se o erro de tipo exclui o dolo do agente, não resta alternativa sua absolvição porque não existir estupro culposo.
Pois bem. Em quaisquer situações é certo que não se pode tratar igualmente o agente que pratica violência sexual contra crianças de tenra idade e aquele que a comete contra adolescente, pois, muito embora ambos pratiquem a infração penal contra vulnerável (menor de 14 anos), a vulnerabilidade da vítima que conta com pouca idade é demasiadamente maior, situação que revela delito mais grave e demanda severidade na aplicação da pena.
No próximo trataremos de outros temas relevantes e da dificuldade ou quase impossibilidade de fazer justiça.
Guaxupé, 07/11/2020.
Milton Biagioni Furquim
Juiz de Direito