Se até um risco no chão pode conter pássaros treinados, por que encarcerar adolescentes em conflito com a lei?

José Erigutemberg Meneses de Lima

O símbolo maior da liberdade é o pássaro, espécie que há tempos domina a imaginação viva e sensível dos amantes da literatura e do cancioneiro popular. Os versos “Liberdade, liberdade abre asas sobre nós” e “A praça! A praça (...) É o antro onde a liberdade Cria águias em seu calor” fagulham no coração dos defensores da liberdade metaforizada na poética condoreira. Castro Alves, poeta colosso, sujeito moço, mas soube o que fez” [1] com “sua visão de futuro na poesia que ia além de seu século”, [2] declamou a liberdade, devotando o talento incomum no manuseio do verso à abolição da escravatura.

Galileu Galilei, embora filho de alaudista, não declamava versos, ao que se saiba, mas pelo menos uma vez utilizou a bela metáfora da águia e dos estorninhos, alertando para a existência de poucos privilegiados destacados na multidão de comuns. É do argumento de Galileu que alguns privilegiados “voam como águias e não como estorninhos. É bem verdade que as águias, por serem raras, oferecem pouca chance de serem vistas (...) e os estorninhos, que voam em bando, param em todos os cantos enchendo o céu de gritos e rumores, tirando o sossego do mundo.” [3]

Não se vai aqui aproveitar o sentido exato da narrativa de o Ensaiador, alcançado por Pablo Mariconda e Hug Lacey. Conforme destaca o Professor do Departamento de Filosofia da FFLCH (USP) e o Professor titular de filosofia do Swarthmore College, Pensilvania, Estados Unidos, "voar como as águias" é uma evidente expressão da independência do juízo científico caracterizada pelas virtudes de "espírito aberto e racional", cuja conseqüência é que os cientistas não podem pertencer a uma escola "não são como os estorninhos" que voam em bando, submetendo–se ao principio de autoridade”. [4]

O objetivo é colher alguns pontos da figura metafórica que possam se ajustar à narrativa do artigo voltado a buscar comparação entre os estorninhos que tiram o sossego do mundo e os jovens em conflito com a lei, o grosso da juventude negra do país encarcerada nas unidades de atendimento socioeducativo. É nessa subversão premeditada do sentido da metáfora que se vincula os estorninhos à população preta e parda [5] de desvalidos, marginalizados que se reproduzem em bandos e em bandos são cooptados facilmente por promessas enganadoras das organizações criminosas, voam em bando e ingere doses generosas de álcool e entorpecentes. Não para desenvolverem a enzima específica do pássaro utilizada para processar alimentos rapidamente, mas para se alhear da realidade que os machuca.

Para os jovens em conflito com a lei, o uso de substâncias foi destacado nas pesquisas de Dell’Aglio et. al. [6] como um dos principais impulsionadores do ato infracional. Já os estudos de Martin e Pillon [7] demonstraram que o uso de substância precoce aumenta a probabilidade de o adolescente ter comportamentos delinqüentes, também de forma precoce. E especificamente se tratando de jovens cumprido medidas socioeducativas, 44% dos meninos e 53% das meninas, tem envolvimento com o tráfico de drogas. [8]

Para as pretensões do artigo, os pássaros pretos são estes adolescentes considerados cidadãos do mal, cidadãos de segunda categoria, os excluídos, os que ostentam nas costas o alvo para os tiros certeiros dos snipers e alimentam o imperativo categórico do fascismo tupiniquim de que bandido bom é bandido morto. [9] Na mesma perspectiva, as águias são destacadas na figuração de pessoas de bem, cidadãos de primeira classe, os “doutores”, que estão acima da lei, que sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do dinheiro e do prestígio social.(...) mantém vínculos importantes nos negócios, no governo, no próprio Judiciário (...) permitem que a lei só funcione em seu benefício. [10]

Esta comparação que não se nega ser intencionalmente forçada quiçá se encaixe na percepção de Eduardo Galeano, ao abordar a dura realidade de crianças e adolescentes discriminados que, pela cor da pele e pela situação econômica, têm desrespeitados os direitos e garantias constitucionais. Para estes, o postulado todos “são iguais perante a lei adquire funcionalidade vazia, embebida em retórica sem sentido prático”. [11] Galeano, coerente com o pensamento da invisibilidade social e exposição criminal daqueles socialmente excluídos, aduz que “(...) O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos e nem pobres, conserva os atados à mesa do televisor, para que aceitem desde de cedo, o destino, a vida prisioneira.” [12]

Prosseguindo. É na subversão desta metáfora interligada a outras que, em inusitado esforço, se busca correlacionar o sentido figurado e simbólico do encarceramento e treinamento de aves às peculiaridades das unidades de atendimento socioeducativo. Tais unidades que deveriam voltar-se à alteração do comportamento do adolescente, visando à reintegração pessoal e social, não passam de cadeiões disfarçados.

A população dessas unidades tem a mesma representação étnica e racial das demais instituições prisionais erguidas para a custódia de adultos. Em ambos os casos, mesmo se olhando a população encarcerada com os olhos atentos, espertos dos falcões e das águias, não se vê com facilidade a presença de brancos. As águias estão ali em números reduzidos em relação aos pássaros pretos, os estorninhos encardidos que entopem as unidades de atendimento socioeducativo ou prisionais. Olhando-se em todas as direções indicadas nos pontos cardeais, não se verá tantas penas brancas, quanto as asas pretas conformando corpos raquíticos enrodilhados em suas redes-ninhos puídas a dividirem espaço até o teto com ratos e baratas.

Segundo os dados do IBGE, a porcentagem de pessoas negras no sistema prisional é de 67%, ao passo que na população brasileira em geral, a proporção é significativamente menor, 51%. [13] O negro em geral continua rotulado e encaixotado na teoria que Lombroso para quem “o delinquente era um ser atávico, um europeu que não havia completado seu desenvolvimento embriofetal [...] e, portanto, consistia numa detenção do processo embriofetal que resultava em um ser semelhante ao selvagem colonizado: não tinha moral parecia fisicamente com o indígena ou o negro, possuía pouca sensibilidade a dor, era infantil, perverso etc."[14] O preconceito demonstrado neste raciocínio e enraizado na cultura brasileira transforma o negro em um quase humano, um animal mais feroz até do que os estorninhos que deve ser detido para não contaminar a sociedade.

A sociedade preconceituosa, intolerante, racista não entende que os estorninhos começaram a delinquir, interrompendo o voo livre pela vida, o mais das vezes, soprados pelos ventos do consumo excessivo de álcool e entorpecentes utilizados em finalidade diversa dos estorninhos. Consumindo álcool e drogas, os pássaros pretos humanos buscam afastar a miséria, a solidão, a ausência de perspectiva de futuro, o desprezo e falta de empatia da sociedade e das autoridades que os deixam largados ao deus-dará, rota cujo ponto final é um dos braços de uma macabra encruzilhada: a morte nas ruas ou a morte em vida nos calabouços medievais, como são rotulados até por autoridades as instituições prisionais brasileiras.

Incrementando a alegoria passarinheira alude-se ao filme A Viagem, de 1999, versão teen do clássico O Expresso da meia noite, filme que projetou o diretor Alan Parker para o estrelato em 1978. [15] No meio da via-crucis de duas amigas presas por tráfico de drogas, o roteirista inclui a história dos baya weavers, pássaros que negociantes inescrupulosos, postados ao lado de fora do histórico Templo de Phanan Cheong, em Ayutthaya, Tailandia,[16] oferecem à venda para serem libertados pelos turistas convencidos de que a liberdade dos pássaros escravizados os fará ganhar méritos e recompensas para a próxima encarnação. Os pássaros que passam o dia em pequenas gaiolas ou até em sacos plásticos trazem um pedaço de papel descrevendo o tipo de mérito ou de recompensa a ser alcançada para contribuir com o aumento do carma positivo em uma vida melhor na próxima encarnação. [17]

Na verdade, nem os turistas, tampouco os negociantes estão interessados ou comprometidos com a causa da liberdade e da humanização das ações do homem na encarnação presente ou futura. Alimentam o comércio ilegal de aves. Aqueles que não perecem nas violentas condições de caça e apresamento inicial, se deparam com a morte, tão logo sejam liberados do cativeiro, à vista da desorientação que tolda os sentidos e os fazem atirar-se contra os prédios ou veículos. E o pior, não conseguem mais se acostumar à liberdade, já que tradicionalmente muitos desses pássaros foram treinados para retornar de imediato ao cativeiro, em busca de alimento e proteção, já que perderam contato com a vida selvagem.

Noutras palavras. A aquisição e soltura de pássaros cativos em nada contribuem para a melhoria do carma, senão para aumentar os ganhos de negociantes inescrupulosos que se aproveitam da credulidade ou ingenuidade das pessoas. Não passam de estelionatários que usam a crença alheia para ludibrio da fé. O filme não mostra evidências do acumpliciamento dos pássaros no ato de enganar turistas com algum dinheiro no bolso e vazio nos cérebros... A prisão e soltura do bando de baya weavers humanos em nada contribuem na melhoria da vida em sociedade ou reduzir os índices de reincidência dos egressos do sistema prisional ou sócio-educativo.

Antes de prosseguir, cabe indagar: Será possível que os baya weavers tailandeses possam receber e assimilar treinamento específico para retornar a um ponto de origem?

Os apontamentos sobre a espécie dão conta de que se trata de pássaros dotados de inteligência incomum, conhecidos por tecelões graças a habilidade na confecção de nós, utilizados na feitura dos ninhos pendurados em forma de retortas tecidos a partir de folhas. Pelo menos de quatorze a dezoito tipos diferentes são conhecidos, habilidade inata que permite a construção de estrutura hígida capaz de manter íntegros e com capacidade de resistir às tempestades de monções os ninhos engenhosos. [18]

Segundo registros, os baya weavers vem sendo adestrados historicamente por artistas de rua para pegar objetos sob o comando de seus treinadores, disparar canhões de brinquedo, pegar moedas ou girar uma vara fina com fogos nas extremidades sobre sua cabeça (Robert Tytler) [19] entre outros entretenimentos causando estupefação às pessoas, desde a época de akbar. A propósito, diz Edward Blyth, [20]

(...) a verdade é que os feitos realizados por Bayas treinados são realmente maravilhosos e devem ser testemunhados para serem totalmente creditados. Os expositores os transportam, acreditamos, para todas as partes do país; e o procedimento usual é quando as mulheres são Apresente, para o pássaro, sob um sinal de seu mestre, pegar um doce na sua conta e depositá-lo entre os lábios de uma dama, e repita essa oferta para todas as mulheres presentes, o pássaro seguindo o olhar e o gesto de seu mestre. então, é trazido um canhão em miniatura, que o pássaro carrega com grãos grosseiros de pó (...). [21]

No aspecto em que os baya weavers condicionados retornam ao cativeiro para ser novamente revendidos, retroalimentando a cadeia de negócios ilícitos, a situação remete ao processo de desaculturação e aculturação vivenciada pelos prisioneiros em geral (pássaros pretos) que, às mãos de agentes do estado (adestradores/negociantes) sem comprometimento com a ressocialização prevista noECAA, mais interessadas em status, senão em ganhos financeiros, praticamente ficam impossibilitados da inclusão e convivência saudável no mundo fora das grades das gaiolas voltadas ao encarceramento humano.

Em muitos outros aspectos a juventude negra em conflito com a lei se assemelha aos baya weavers. Citem-se a morte durante a caçada, no confronto com as forças de segurança, nas dependências das unidades de atendimento socioeducativo (gaiola), ou mesmo mortos quando soltos. Sem condições de se manterem longe da criminalidade fora da gaiola pela carência econômica dos pais ou desleixo do estado voltam a reincidir em crimes iguais ou mais graves, sendo mortos no curso da prática destes novos crimes. A reincidência dos adolescentes em conflito com a lei é muito grande. Estudo realizado e divulgado em 2012 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que a reincidência entre os menores em cumprimento de medida de internação, na região Centro-Oeste, é de 45,7%.

Ainda, refletindo a saga dos baya weavers que passam a vida no cativeiro, o jovem encarcerado sofre torturas, agressões e se envolve em brigas para se defender o que pode ocasionar penas sucessivas fazendo com que cumpram uma espécie de prisão perpétua sem direito a liberdade condicional.

A juventude encarcerada como os baya weavers, pouco a pouco, vão perdendo contato com a cultura da liberdade em prol da cultura do encarceramento, razão de voltarem às mãos dos gaioleiros. Fenômeno idêntico tem presença no cotidiano dos presos humanos. Quiçá os pássaros não saibam discernir entre o bem e o mal que lhes causem o treinamento ou se seus atos geram consequências negativas para terceiros. Acostumam-se pela estranha mania de ter fé na vida... Os prisioneiros negros também trazem nos corpo a marca Maria, Maria, e misturando a dor e a alegria mudam ou simplesmente ajustam-se para sobreviver.

Nas unidades de atendimento socioeducativo, à semelhança dos presos adultos, vivenciam um período de desaculturação e aculturação permanente. As práticas anteriormente vivenciadas antes da prisão são paulatinamente substituídas pela assimilação de muitos aspectos presentes no ambiente sócio-educativo. Ali somente os fortes sobrevivem dando corpo à visão darwiniana de que somente as espécies mais adaptáveis sobrevivem ao meio permanente de mudanças...

Ora. Sendo possível ministrar treinamento aos baya weavers para que retornem às gaiolas, será também, sensato supor-se que se possa “treinar cérebros adolescentes” para o retorno dos jovens à vida produtiva? Será o ECA instrumento adequado para socializar o adolescente e viabilizar o desenvolvimento de todas as suas potencialidades psicossociais? E em que se baseou o êxito dos treinadores de pássaros que passou despercebido aos treinadores de cérebros humanos, já que as unidades de atendimento socioeducativo não cumpriam a programação de ressarcimento do dano social por medidas pedagógicas voltado a ressocializar?

Na perspectiva do arcabouço legal, as unidades de atendimento socioeducativo estão estruturadas dentro de um conceito multidisciplinar envolvendo equipes de saúde, de atendimento psicológico, pedagógico e de suporte técnico que ficam à disposição dos adolescentes visando ao desenvolvimento de práticas que auxiliam na reinserção do adolescente infrator na sociedade. [22] Consta do art.944 doECAA o rol de obrigações a serem cumpridas por essas Instituições. Dentre elas, encontram-se os seguintes preceitos:

I – observar os direitos e garantias de que são titulares os adolescentes; III – oferecer atendimento personalizado, em pequenas unidades e grupos reduzidos; IV – preservar a identidade e oferecer ambiente de respeito e dignidade ao adolescente; VII – oferecer instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança e os objetos necessários à higiene pessoal; VIII – oferecer vestuário e alimentação suficientes e adequados à faixa etária dos adolescentes atendidos; IX – oferecer cuidados médicos, psicológicos, odontológicos e farmacêuticos; X – propiciar escolarização e profissionalização; XI – propiciar atividades culturais, esportivas e de lazer.[23]

Na prática, contudo, pouco do esperado se observa. Na maior parte das unidades o que ocorre é exatamente o contrário, ao invés de promoverem a reinserção do adolescente, incentivam a violência e a criminalidade. Apesar do panorama de tranqüilidade o cotidiano dos adolescentes é recheado de “agressões físicas e psicológicas até de humilhações verbais por parte dos funcionários. Essa prática faz parte do repertorio usual e punitivo que tende a se apropriar da Lei de Talão de que a sociedade deve pagar na mesma moeda o que sofreu em relação ao ato infracional praticado pelo adolescente.” [24]

A legislação obriga, mas as gestões não cumprem o determinado, por conta das inúmeras dificuldades arguidas pelos gestores de recursos direcionados aos programas sociais. Diariamente os exemplos e a cobertura mediática confirmam que as unidades de atendimento socioeducativo, igual a outras instituições prisionais brasileiras, não tem condições de provocar a integração social, por se limitarem a retirar o adolescente do convívio em sociedade na esperança de que a simples exclusão, de alguma forma, permita a integração social. O sistema é reconhecidamente falho por não se aplicarem nele as medidas necessárias para a reintegração dos adolescentes à sociedade de forma plena e para que não voltem a praticar atos infracionais. E a razão da falha vai-se buscar, por incrível que pareça, na metodologia do treinamento dos baya weavers, ou dos pássaros em geral.

O segredo do treinamento das aves não se encontra no âmbito da magia, mas na integração de seis habilidades desenvolvidas pelo adestrador, cujo efeito combinado é maior do que a soma dos seus efeitos individuais, como afirma Steve Martin, presidente da Natural Encounters Inc, empresa dedicada ao treinamento de animais. Para ele, o segredo vem do encontro da Ciência, Poder, Comunicação, Respeito, Enriquecimento e Confiança, que aplicadas simultaneamente criam sinergia entre os envolvidos, propiciando o sucesso dos treinadores e a melhora na qualidade de vida das espécies treinadas.

A primeira habilidade que associada às demais resulta em bom treinamento é a aplicação da ciência do comportamento que no reino animal é tão importante e válida quanto no meio humano. A compreensão científica da tipologia das aves e da lei da gravidade permite o treinamento das aves. Do mesmo modo, o entendimento do comportamento humano permitirá a ressocialização do individuo. A ciência do comportamento ajuda a planejar o trajeto, a resolver problemas, e dar o combustível necessário para se alcançar os mais elevados níveis de desempenho pessoal.

A segunda habilidade consiste no poder que é dado ao indivíduo. À percepção mínima de sinais sutis de desconforto e a correção pronta da postura permite que o treinando ofereça ao treinando o que lhe é adequado. Quanto mais liberdade se der, maior será a vontade do treinando em participar das sessões de treino.

A terceira habilidade é a comunicação. O treinamento avança quando há uma troca de informação clara. No treinamento das aves, o treinador usa “comandos” para dizer ao animal o que deve ser feito e a ave diz ao treinador, através de sua linguagem corporal, se quer participar ou não. A comunicação de duas vias, onde a voz do animal é tão importante quanto a voz do treinador, prepara o palco para o treinamento bem sucedido.

A quarta habilidade é o respeito às individualidades do ser. Como enfatiza Steve Martin, “Os melhores treinadores respeitam cada animal como um indivíduo. Isto é único, especial e importante em seu próprio direito. O fato de dois animais serem da mesma espécie e criados em um mesmo ninho pelos mesmos pais não significa que seu comportamento será igual ou até mesmo, semelhante “.

A quinta habilidade é o “enriquecimento ambiental que na ambiência do treinamento de pássaros é mais do que colocar brinquedos na gaiola.” Nos ensinamentos de Steve Martin, o envolvimento envolve a permissão aos animais à oportunidade de usar os sentidos e adaptações para “ganhar” vida, algo que lhes é tirado quando são colocados em gaiolas. Não importa quão interessante seja a gaiola que mesmo de ouro não deixará de ser uma prisão, limitando as experiências de vida.

A sexta e última habilidade é a confiança. Toda vez que se faz algo que o pássaro gosta, o treinador faz um saque de confiança na conta corrente do banco de relacionamento com o pássaro. Quando o treinador faz algo que o pássaro não gosta, ocorre um saque na conta corrente da confiança. O saque na confiança também é feito toda vez que a ave é forçada a realizar uma atividade da qual não gosta, como a entrada forçada na gaiola ou o açoite para que atenda a um comando. Sem confiança, não se treina um animal, com confiança, quase tudo é possível, até mesmo mantê-la quieta entre riscos no chão, sem a presença de grades.

Qualquer espécie animal não se sente confortável em situações críticas. Por que haveria de ser diferente com os adolescentes em conflito com a lei irrequietos em virtude das alterações físicas, psicológicas e sociais na busca frenética por uma identidade?

À guisa de procurar reflexões e ponderações sobre o encarceramento a ressocialização de adolescentes no treinamento das aves, não autoriza a que se pense que se deseja coisificar o indivíduo, igualando o homem a um ser irracional que adéqua o instinto às necessidades de se adaptar ao meio para sobreviver. Mas inconteste é que o modelo sócio educativo atual é incompatível com a esperada ressocialização do jovem, de modo que é preciso se refletir fora da casinha sobre outras possibilidades de tratamento ou correção de comportamento dos jovens.

Não se defende uma lavagem cerebral do adolescente em conflito com a lei, por implicar a violação do livre-arbítrio e da autonomia do sujeito, como acertadamente condenam os adeptos da criminologia crítica. Sustentam estes que tal perspectiva pressupõe a anulação da personalidade, das ideologias e das escalas de valores para adequar o homem aos valores sociais tidos como legítimos. Adiantam mais que o modelo atual espelha o paradoxo de querer corrigir comportamentos desviantes fazendo com que quem desvie se ajuste às regras sociais segregados completamente da sociedade, inserido um microcosmo prisional com suas próprias regras e cultura. [25]

O que se busca acima de tudo é entender como um mero risco no chão pode impedir que pássaros ganhem a liberdade e voltem ao convívio de seus adestradores e não possa acontecer a ressocialização de adolescentes em conflito com a lei por meio de medidas protetivas. Noutras cores, deseja-se trazer à baila a discussão de que as unidades de atendimento socioeducativo estão muito distantes dos objetivos de educar, treinar, preparar para o futuro. Estas instituições estão “conspurcadas por superlotação, insalubridade das instalações habitacionais, condições inadequadas de trabalho dos funcionários, escassez de servidores, rebeliões e tumultos, torturas, elevados índices de reincidência, influência de organizações criminosas, e ausência de formação e supervisão adequadas que viabilizem capacitação e aperfeiçoamento dos servidores da entidade. Neste contexto, elas não se prestam à reeducação, mas ao aprimoramento para o crime.

Não se defende a ideia de um manual ou guia para treinamento de jovens endo e extra muros das unidades de atendimento socioeducativo, senão o cumprimento do que está previsto no art. 227 da Constituição Federal a realçar ser dever dos pais, da sociedade e do Estado a proteção e educação dos jovens, reproduzido no art. 4º do ECA. In verbis: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Ao entendimento de Digiácomo e Amorim: “O Art. 4º do ECA, dispositivo, que praticamente reproduz a primeira parte do enunciado do art. 227, caput, da CF, procura deixar claro que a defesa dos direitos fundamentais assegurados à criança e ao adolescente, não é tarefa de apenas um órgão ou entidade, mas deve ocorrer a partir de uma ação conjunta e articulada entre família, sociedade/comunidade e Poder Público. [26]

O descumprimento dos estatutos legais, o descaso combatido pelo art. 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8069/90, segundo o qual “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”, ou a omissão das autoridades no desempenho de suas funções, em muito contribui, se não for a principal causa para a reincidência e formação de marginais qualificados, cooptados pelas organizações criminosas, ainda no interior das unidades de atendimento socioeducativo que deveriam conduzi-los à ressocialização.

Em síntese, os pássaros representam a liberdade, porém, ainda hoje, o calendário virando as páginas do século XXI, o ser humano insiste em aprisionar pássaros em gaiolas que o mais das vezes serve de moradia pela vida toda, transformados em animais de estimação, quando na verdade deveriam estar voando. A ideia de aprisionamento de pássaros é tão absurda que paulatinamente vem sendo rejeitada em todo o mundo. A Índia, por exemplo, em decisão histórica, decidiu pela proibição do encarceramento de pássaros em gaiolas. Paradoxalmente, contudo condescende com o aprisionamento de pessoas humanas e é tolerante com a pena de morte para acusados de determinados crimes. [27]

O encarceramento é dispensado aos adolescentes em conflito com a lei, talvez por que as autoridades não acreditem que os estorninhos possam se vingar das águias, seguindo o exemplo de Os pássaros dirigido por Alfred Hitchcock. [28] Em contexto próximo à narrativa do filme baseado na obra de Daphne Du Maurier, o incompreensível ataque dos pássaros às pessoas da pacata cidade de Bodega Bay pode ser entendido como a revolução dos jovens em conflito com a lei contra o sistema opressor que os confinam em unidades de atendimento socioeducativo.

A um primeiro momento o filme passa a impressão de não ter um enredo lógico o que suscitou as mais variadas interpretações com abordagens no campo psicanalítico, filosófico e científico. Mas vem de Hitchcock, em entrevista concedida a Maurice Seveno em 1962 no Jardin des Plantes em Paris, ironicamente em frente a um viveiro de pássaros, a explicação da violência das aves contra os humanos daquela pacata cidade: “Os pássaros estão cansados de serem mortos, depenados e comidos pelos homens. Então eles decidem se vingar. Um dia se agrupam e mergulham sobre as pessoas em um pequeno vilarejo”. [29]

Perguntas relativamente singelas tornam a questão indiscutivelmente constrangedora: será que os homens que podem treinar pássaros estão à espera que os estorninhos formem ondas de aves de todas as espécies diferentes e furiosamente invistam contra as unidades de atendimento socioeducativo? Será que já não passa do tempo de revisitar os versos “Liberdade, liberdade abre asas sobre nós” e “A praça! A praça (...) É o antro onde a liberdade Cria águias em seu calor” que ainda fagulham no coração dos defensores da liberdade presente na poética condoreira?

[1] ALMEIDA, Luiz Wanderley. Baiano Burro Nasce Morto, São Paulo: Chantecler

[2] AMADO, Jorge. ABC de Castro Alves. São Paulo: Martins, 1971.

[3] GALILEI, G. Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei. In: FAVARO, Antonio (org.). Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei. 19 vols. Florença, Barbéra. VI, p. 236–237.

[4] MARICONDA, Pablo & LACEY, Hugh. A águia e os estorninhos. Galileu e a autonomia da ciência. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 13 (1): 49-65, maio de 2001.

[5] Duas das quatro classificações adotadas pelo IBGE em pesquisa que investiga a característica cor ou raça da população brasileira.

[6] Dell’Aglio, D. D., Benetti, S. P., Deretti, L., D’Incao, D. B., & Leon, J. S. (2005). Eventos estressores no desenvolvimento de meninas adolescentes cumprindo medida socio- Delinquência juvenil e uso de drogas PsicolArgum. 2016 abr./jun., 34 (85), 120-132 130 educativa. Paide ia, 15 (30), 119-129. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/paideia/v15n30/13.pdf. Acesso em: 29 Out. 2019.

[7] Martins, C. M., & Pillon, S. C. (2008). A relaça o entre a iniciação do uso de drogas e o primeiro ato infracional entre os adolescentes em conflito com a lei. Caderno de Saúde Pública, 24 (5)..

[8] McLennan, J. D., Bordin, I., Bennett, K., Rigato, F., Brinkerhoff, M. (2008). Trafficking among youth in conflict with the law in São Paulo, Brazil. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol, 43 (10), 816-23.

[9] SÁ, Eduardo, Um estranho no coração. Alfragido, Lua de Papel.

[10] Relações obscenas: as revelações do The intecept/BR. 1 ed. São Paulo: Tirant ló Blanch, 2019.

[11] GAVA, Rodrigo. O não direito de um estado: a sociedade brasileira refém da desordem jurídica e da desigualdade social. In: Relações obscenas: as revelações do The intecept/BR. 1 ed. São Paulo: Tirant ló Blanch, 2019.

[12] GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Rio de Janeiro: LP&M, 1999.

[13] CENSO DEMOGRÁFICO 2010. Características da população e dos domicílios: resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2011.

[14] ZAFFARONI, Eugênio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro I. Rio de janeiro: Revan, 2003. p. 573.

[15] A VIAGEM. Bonitinhas, mas condenadas. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1709199915.htm. Acesso em: 22 Out. 2019.

[16] Making merit? Birds in bags spark outrage over Buddhism business. Disponível em: https://coconuts.co/bangkok/news/making-merit-birds-bags-spark-outrage-over-buddhism-business/. Acesso em: 22 Out. 2019.

[17] Releasing Birds for Merit Making - A Short Cut to Heaven or a Ticket to Hell? Disponível em: http://www.thaibirding.com/news/releaseweavers.htm. Acesso em: 22 Out. 2019.

[18] Relatório de 1957 publicado no Jornal da Sociedade de História Natural de Bombaim (BNHS) que documentou algumas características dos pássaros tecelões tailandeses. Disponível em: https://www.snopes.com/fact-check/baya-weaver-death-video/. Acesso em: 29 Out. 2019.

[19] WIKIPEDIA. Robert Christopher Tytler. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Robert_Christopher_Tytler&oldid=914798147>. Acesso em: 29 ut. 2019.

[20] WIKIPEDIA. Edward Blyth. Disponível <https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Edward_Blyth&oldid=919216573>. Acesso em: 29 Out. 2019.

[21] WIKIPEDIA. Tecelão Baya. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Baya_weaver&oldid=918213255>. Acesso em: 29 Out. 2019.

[22] Governo do Estado de São Paulo, Fundação Casa Diretrizes Gerais. Disponível em: <http://www.fundacaocasa.sp.gov.br>. Acesso em: 29 Out. 2019.

[23] BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: Acesso em: 29 Out. 2019.

[24] FAERMANN, Lindamar Alves; NOGUEIRA, Rivanil Rubens. Unidades de Atendimento de adolescentes em conflito com a Lei: Reflexos da violação dos direitos humanos. Serv. Soc. Rev., Londrina, V. 19, N.2, P. 23-44, Jan/Jul. 2017.

[25] BITENCOURT, Cezar Roberto. Criminologia crítica e o Mito da Função Ressocializadora da Pena. In: BITTAR, Walter. A Criminologia no Século XXI. Rio de Janeiro: Lumen Juris & IBCCRIM, 2007.

[26] DIGIÁCOMO, Murilo J; DIGIÁCOMO, Ideara de Amorim. ECA: Estatuto da Criança e do Adolescente anotado e interpretado. São Paulo: FTD, 2011 (segunda edição), p. 8.

[27] Lei de Proteção de Crianças dos Delitos Sexuais para que os culpados de estupro de menores doze anos possam ser condenados à morte,

[28] Os Pássaros. Direção: Alfred Hitchcock. Roteiro: Evan Hunter baseado em conto de Daphne Du Maurier. Universal Pictures. Universal Home Vídeo. Ano: 1963.

[29] FERREIRA, Wilson Roberto Vieira. Por que as aves atacam em" Os Pássaros "? Disponível em: http://cinegnose.blogspot.com/2014/06/por-que-as-aves-atacam-em-os-passaros.html. Acesso em: 29 Out. 2019