Direito e Literatura: Dom Casmurro versão zero do homem moderno

osé Erigutemberg Meneses de Lima

Direito não se presta a regular situações morais, religiosas ou sentimentais associadas ao amor, mesmo que o sentimento se subordine aos interesses financeiros. Os conflitos interiores do ser humano e as relações sociais, entrementes, podem ocasionalmente despertar o interesse jurídico. Em casos tais, as condutas devem ser repreendidas pelo direito e pela moral, incidindo sobre o agente infrator as cominações previstas em lei, buscando as necessárias correções, sob o amparo do devido processo legal, abarcando a legítima defesa e o contraditório. Pode ser que a ligação entre direito e moral leve a se pensar que estes dois campos do saber sejam as duas faces de uma mesma moeda. Se for, é preciso se ter presente que “tudo o que é jurídico é moral, mas nem tudo o que é moral é jurídico”. [1]

A desconfiança, a dissimulação, a mentira, a vaidade, a ganância e a traição às amizades presentes no manual das dissimulações, como deveria ter sido subintitulado o livro Dom Casmurro [2] que Machado de Assis fez publicar em 1899 se inserem no campo da moral, e seu estudo interessaria mais à crítica literária do que ao Direito. Dentre outras impropriedades, além das já referidas, o Direito não se presta também a desvendar mistérios do campo literário, tal a existência ou não de adultério, prática recorrente em obras do Realismo período literário seguinte ao Romantismo.

Com algum esforço inovador, porém, é possível se estabelecer pontos de contato entre a Literatura e o Direito, desde que se use as premissas de um “promissor campo interdisciplinar que oferece novas possibilidades de compreensão tanto da natureza humana e dos conflitos sociais quanto dos impasses e desafios que o direito enfrenta na contemporaneidade.” [3] É pelo prisma da interdisciplinariedade, método de interação entre o direito e a literatura, que se tomará de empréstimo o possível adultério e a violência psicológica no que tange ao sexo feminino, presentes na obra machadiana, como ponto de partida para tentar entender as origens da atual violência generalizada contra a mulher.

Antes do mais, se diga que existe uma multiplicidade de opiniões sobre a existência ou não do adultério de Capitu. Mocetona que desde a adolescência já cultivava ideias atrevidas, comportamento incomum à época, realçado ao longo dos capítulos, dando argumentos para incriminá-la ou para inocentá-la.

A sociedade patrimonialista do século XIX era permissiva ao adultério masculino, não perdoando, todavia, a nódoa no leito conjugal provocada pela traição da mulher casada. A igreja católica composta por homens que também caiam, como caem os de hoje em tentação, e também pecam e também têm vícios e quebravam os votos de castidade envolvendo-se em escândalos públicos de sedução, a exemplo de Amaro de O Crime do Padre Amaro de Eça de Queiroz, exigia o cumprimento da lei baseada nos Dez Mandamentos, escritos por Deus na pedra, e depois registrados na Bíblia no livro de Êxodo a normatizar que “Não cometa adultério e nem cobices a casa de outro homem. Não cobice a sua mulher, os seus escravos, o seu gado, os seus jumentos ou qualquer outra coisa que seja dele”

Aquele Brasil do segundo reinado mantinha o catolicismo como religião oficial tendo os laços entre estado e igreja se rompido com a promulgação da Constituição de 1891. O Dom Casmurro é de 1899 e mesmo assim o suporte legal do enredo ajusta-se ao regramento religioso e à lei moral. Desta forma, para a lei, sob o olhar leniente da igreja, o marido contava com a proteção do estado em relação ao adultério e a esposa não passava de um objeto comparado aos escravos, gado, jumentos, ou qualquer coisa que fosse dele. Consta do art. 250, da Lei de 16 de dezembro de 1830 (Código Penal) que “A mulher casada, que commetter adulterio, será punida com a pena de prisão com trabalho por um a tres annos.

A penalidade cogitada para a esposa infiel, não foi pensada para seu amante. No caso do homem casado que tiver concubina, teúda, e manteúda, será punido com as penas do artigo antecedente, dando a entender que somente a mulher comete adultério. Aos homens era permitido ter um caso passageiro, sendo defeso dar sustento à "amasia". No Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890 foi introduzido no parágrafo único art. 281 que “O perdão de qualquer dos cônjuges, ou sua reconciliação, extingue todos os effeitos da accusação e condemnação."

O adultério masculino surgiu no ordenamento jurídico com a promulgação do Código Penal de 1940, lá estando caracterizado e de forma clara que não mais seria necessário manter ou sustentar a concubina/amante bastando a simples infidelidade (Art. 240). O estatuto de 1940 vigeu até 2005, quando a Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, descriminalizou o adultério, conduta que passou a ser reprovada somente por regras morais, não mais interessando ao direito penal, mas sujeito às normas do Direito Civil, considerado ilícito civil sujeito às sanções da lei civil.

Feito a ressalva, retornando-se ao assunto central, indaga-se: afinal a senhora Maria Capitolina Santiago (Capitu, como é conhecida) é culpada de adultério ou sob suspeitas de infidelidade do marido Bento de Albuquerque Santiago, também conhecido como Bento Santiago, Bentinho ou ainda Dom Casmurro sofreu violência psicológica que hoje seria combatida pelo instituto da Lei Maria da Penha?

A controvérsia sobre o adultério permanecerá no mundo acadêmico per omnia saecula saeculorum atualíssima, como diria o agregado José Dias. Entrementes para os efeitos deste artigo, Capitu cujo nome [4] não tem origem em capitular, mas em Capitólio por ser peça central da história, com vênias pelo trocadilho, “capitulou”, cometeu adultério, tendo recebido o “perdão” do marido. Perdão ficto, ressalve-se, sem absolvição do pecado, porque o pecado não se perdoa sem se restituir o roubado (Non dimittitur peccatum nisi restituatur ablatum). [5]

Bento num perdão de meia pataca buscou para si a reparação no que a seu entender seria justiça. Ao rejeitar a ideia de suicídio, ou praticar homicídio contra esposa e filho acabara de “achar outra, tanto melhor quanto que não era definitiva, e deixava a porta aberta à reparação, se devesse havê-la. Não disse perdão, mas reparação, isto é, justiça”.

A ideia melhor era desterrar mulher e filho, isto porque era inadmissível e constrangedora a separação indispensável. Ao costume da época, o marido sujeito ao adultério da mulher para não incorrer no desprezo da sociedade e tornar-se objeto de ridicularia, pondo em jogo sua honra e masculinidade, ao invés da separação por meio judicial, optava pela separação de fato. Com efeito, Bento aplicando de mãos próprias a pena de desterro, despachou Capitu e Ezequiel para a Suíça, onde ficaram esquecidos e abandonados. A viagem fora o artifício utilizado para de esconder a separação de fato e enganar a opinião pública.

E poderia Capitu ser considerada culpada se não houve confissão? Em sua maestria Machado de Assis deixou a decisão da culpa ou de inocência para decisão do leitor. Um bom jurado não condena pessoa por andar apertada em vestido de chita, gostar de ser vista, e ver também, pois não há ver sem mostrar que se vê ou por ter os olhos de ressaca, de cigana oblíqua e dissimulada. Do mesmo modo, a condenação não viria pelo indecifrável riso de mulher que enfeitava os lábios de Capitu. Nem votaria pela culpa contra quem for dado à vaidade e à adulação ou que goste e compareça a bailes de braços à mostra a se entrelaçarem aos das casacas alheias. Nem quem seja atrevida e esteja sempre prestando atenção no que acontece à sua volta. Não, não se pode condenar Capitu por tais comportamentos. Mas embora o direito não se preste a controlar costumes sociais, como já ficou dito, o tribunal do povo exige comportamento adequado da mulher casada, talvez por isso no livro haja muitas indiretas de uns e outros, censurando o comportamento e o temperamento de Capitu. Tia Justina, por exemplo, fizera insinuações de que Capitu flertava com rapazes.

Não houve confissão, e não houve mesmo, deixe-se isso bem esclarecido. Mas no meio jurídico se sabe que embora haja depoimento confessional, a confissão não é suficiente para suprir a falta de elementos. Nessa esteira, seguindo a investigação das marcas textuais, encontram-se indícios que levam à traição de Capitu, como destacado no capitulo CXXXIX, no tópico A fotografia:

" Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: — "Mamãe! mamãe! é hora da missa!" restituiu-me à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram para a missa."

No capitulo o Regresso há outra evidência confirmando a hipótese de adultério. O filho de Capitu, Ezequiel A. de Santiago “era o filho de seu pai”, ou seja de Ezequiel de Souza Escobar, o melhor amigo de Bento no seminário. Ali consta:

"A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancesado. Expliquei-lhe que realmente pouco diferia do que era, e comecei um interrogatório para ter menos que falar e dominar assim a minha emoção. Mas isto mesmo dava animação à cara dele, e o meu colega do seminário ia ressurgindo cada vez mais do cemitério. Ei-lo aqui, diante de mim, com igual riso e maior respeito; total, o mesmo obséquio e a mesma graça. Ansiava por ver-me. A mãe falava muito em mim, louvando-me extraordinariamente, como o homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido."

E mais:

"Estendeu o copo ao vinho que eu lhe oferecia, bebeu um gole, e continuou a comer. Escobar comia assim também, com a cara metida no prato. Contou-me a vida na Europa, os estudos, particularmente os de arqueologia, que era a sua paixão. Falava da antiguidade com amor, contava o Egito e os seus milhares de séculos, sem se perder nos algarismos; tinha a cabeça aritmética do pai. Eu, posto que a ideia da paternidade do outro me estivesse já familiar, não gostava da ressurreição. Às vezes, fechava os olhos para não ver gestos nem nada, mas o diabrete falava e ria, e o defunto falava e ria por ele."

Que insistam alguns em dizer que, pelo livro trazer apenas o ponto de vista do personagem masculino, um tarimbado advogado versado em transmudar a realidade dos fatos, “cujas palavras convêm ao leitor pesar cuidadosamente”, [6] é impossível decifrar o enigma construído por Machado de Assis. Razão não assiste a estes. Primeiro porque entre as características do realismo em que o livro se enquadra os pontos principais são a investigação do comportamento humano e a denúncia dos problemas sociais, desmontando a visão idílica do casamento idealizada pelos românticos.

Nesta perspectiva, Machado de Assis aproveitou-se da passagem das trintas peças de prata pagas a Judas, o iscariotes, símbolo da traição, para aclarar o adultério realizado na tarde em que Escobar ensinara Capitu a investir na ausência de Bento que ao retornar mais cedo do teatro deparou-se com o amigo à porta do corredor... Considerando-se que as obras do realismo procuravam desmistificar o casamento, não é difícil concluir que o" investimento" pudesse se referir ao consolo de um filho que Bento não podia gerar, vindo em muito boa hora para manter acesa a chama do casamento e o verdadeiro pai ao redor do rebento protegido por eventual apadrinhamento.

E segundo, deitando mais luzes sobre a questão, tenha-se que nas obras referências do período, onde as adúlteras, alcoviteiras, prostitutas e cortesãs predominavam largamente nas tramas, as esposas corrompidas sempre tiveram os segredos da alcova explicitados nas páginas dos romances. Machado de Assis não fugira à regra, deixando claro que a Capitu da Praia da Glória era a mesma da de Mata-Cavalos. Ou seja, a menina espevitada, de ideias atrevidas, dissimulada, bajuladora, interesseira e que ficava às janelas para ser apreciada pelos peraltas da vizinhança montados a cavalo em suas roupas domingueiras, estava dentro da outra, a mocetona, adulta, casada, da mesma forma com que a fruta está dentro da casca. “E bem qualquer que seja a solução, uma coisa que fica, diria Machado de Assis dirimindo por vez a dúvida no último parágrafo da obra, “e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me...”

Aqui, Machado de Assis desfaz qualquer dúvida acerca da traição, não sendo, pois possível ocultar o que é obvio. Não. Não dá para negar que Capitu tenha perpetrado o adultério. E as razões, além das já referidas se consolidam no texto Heroínas de Machado de Assis, publicado edição de 20 de maio de 1939, no jornal Dom Casmurro. Nessa edição comemorativa ao seu segundo aniversário consta um paralelo entre as personagens Virgília, Capitu e Sofia. Capitu está ali destacada como pessoa de temperamento ardente e acostumada a disfarçar o caráter e que já adolescente cultivava idéias atrevidas, hábeis, sinuosas, surdas, sempre alcançando os fins a que se propusera “não de salto, mas aos saltinhos.” Para o articulista, Capitu tinha amores com o melhor amigo do marido. Mas isso não ficou explicitado por que Machado de Assis deixava o romance escapar aos poucos: “Agora é a semelhança do filho ilegítimo com o verdadeiro; quando este morre, são os olhos de ressaca, denunciadores de Capitu: “momento houve e que os olhos de Capitu fitaram o defunto quais os da viúva sem o pranto nem palavra desta, mas grandes e abertos como a vaga do mar lá fora como se quisesse tragar também o nadador da manhã”. Sendo pessoa tímida e delicada, não afeiçoada às tragédias brutais, Machado de Assis encontrou nesta maneira gota-gotas como abordar a questão do adultério, da perfídia, da quebra de fidelidade e de confiança de Capitu sem ferir suscetibilidades dos leitores. Ao invés da descrição do ato, a preferência recaiu sobre ‘estudos de sentimentos e reflexões.”[7]

Destarte, não resta dúvida de que Capitu deitara-se na cama do outro, embora alguns pensem o contrário. O que é válido, porquanto, se nem ao autor o texto pertence depois de publicado como haver uma interpretação melhor do que outra? Diante da subjetividade que impera, em A Audácia Dessa Mulher, [8] a escritora Ana Maria Machado imprimiu uma visão feminina do século XX sobre Capitu, retirando Bento da posição de pedra para colocá-lo na de vidraça.

Em sua obra ficcional, após “ir atrás dos tais parentes de Sancha no Paraná, de outras memórias da própria família Pádua, procurar documentos de antepassados, dar busca em cartórios, pesquisar em arquivos algum vestígio da atuação do bacharel dr. Santiago” [9] concluiu que Capitu fora estigmatizada, por que “o seu mundo não era como o dos outros”, [10] vivia ela além de seu tempo. Tal ponto de vista coincide com o da crítica literária inglesa Helen Caldwell que O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro [11] se opõe frontalmente à interpretação de que a traição de Capitu seja algo inquestionável.

A partir da referência direta a Shakespeare, Caldwell leu Dom Casmurro, romance imitação com invenção nova de Otelo, como as memórias de um homem ciumento, desconfiado, facilmente sugestionável, a deixar-se levar facilmente pelas emoções e pelos sentimentos. Traços realísticos que em muito pouco diferem da figura do homem do século XXI. A mesma carência afetiva, dificuldade na solução de problemas, dificuldade de comunicação, interferência no modo de vestir da companheira, hábito de controlar as relações sociais, possessividade e controle das atividades que o casal vai fazer entre outras encontrados em Bento estão presentes no avatar moderno.

O homem do século XXI que trocou a carruagem e o cocheiro de libré por carro a motor, a casaca e o chapéu por roupas de marca, o mensageiro escravo pelo celular e a correspondência epistolar por e-mails trocados via internet não passa de uma versão atualizada do protótipo machadiano. Ao redor de todos no admirável mundo digital fervilham versões 5.0 de Bento que na versão original, por mãos próprias, condenou Capitu ao exílio. Os de hoje resolvem os problema de relacionamento com a virulência contemporânea.

Repare-se que Bento e sua família pertenciam a uma classe social de posses, tendo ele formação superior, características econômico-sociais que afastam a falsa premissa de serem a pobreza e a falta de formação a origem da violência contra as mulheres. O desrespeito às mulheres, fruto da tradição e da revelação, passando pela má criação dos filhos homens que eram e são mimados, recrudesceu. Os homens ainda veem as mulheres como objetos, escravas de seus caprichos. Tanto no século XIX quanto no XXI o senhor, dono da fazenda e dos escravos, sente-se também proprietário da mulher. E se ela não o obedecer, a corrigirá como se escravo e jumento fosse.

O advogado bem sucedido, nascido e criado no seio de família religiosa e próspera praticou violência psicológica para exemplar Capitu pela traição aos votos. Não que não tivesse passado por sua cabeça também a ideia de resolver as suspeitas de forma diferente, pois ao que se saiba, Bento não era propriamente “o homem mais puro do mundo. O mais digno de ser querido”. Jurara matá-los a ambos, ora a golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte todos os minutos da vida embalada e agoniada. Capitu devia morrer.

Se Desdêmona sucumbira sendo inocente, a Capitu culpada que era “Um travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna extinção.” Com sede de vingança, assumiria o caráter machista do fazendeiro Jesuíno Mendonça que no clássico Gabriela Cravo e Canela [12] de Jorge Amado, ao flagrar a mulher na cama com outro, sem hesitar, executou os dois a tiros. O crime passional da obra de 1958 retratando a realidade dos anos 20 da região cacaueira de Ilhéus (BA) era algo normal. O absurdo é ver que quarenta anos mais tarde, em fins do século XX , o homicídio da mulher surpreendida pelo marido com outro homem era ainda mitigado pelo relevante valor moral, como ilustra Heráclito Antônio Mossin, em Júri Crime e Processo. [13]

O assassinato de mulheres em nada era arredio ao figurino social de outrora, já que as mulheres da época eram submetidas a maus tratos e situações vexatórias aceitas pela sociedade como algo natural. As punições contra as mulheres por dá cá aquela palha eram de arrepiar. Consta dos arquivos paroquiais dos séculos XVIII e XIX casos de senhoras que apanhavam com varas cravejadas de espinhos, eram obrigadas a dormir ao relento, ficavam proibidas de comer por vários dias e até serem amarradas ao pé da cama enquanto o marido, no mesmo aposento, deitava-se com a amante. [14]

E tudo transcorria dentro da legalidade, afinal, com todas as letras, as Ordenações Filipinas asseguravam ao marido o direito de matar a mulher caso a apanhasse em adultério. Sendo lícito também matá-la por mera suspeita de traição, bastando como prova um simples boato. [15]

Em pleno século XXI, Era da informação ou Era digital em que se tem o resultado da paternidade em minutos, ainda se mata mulheres pela aparência, pela roupa com que sai às ruas, pelo traje dos bailes, pelas amizades com o sexo oposto. Se não há lesões ou outras agressões físicas, impedindo a lei o banimento para terras estrangeiras, aplica-se o desterro moral, fazendo com que a mulher se sinta acuada e insegura, sem chance de reagir.

Capitu traiu Bento. Bento idealizara traição com Sancha sem que o “instante de vertigem e de pecado” tenha culminado em adultério pela inexperiência de Bento com as saias. O ex-seminarista desenxabido era versado apenas em orgias de latim, situação que o fizera se casar virgem de mulheres, conhecendo a parte daquele lugar infinito, apenas no leito conjugal. A arte da conquista faltante a Bento sobrava em Escobar, polido, conversador, de boas maneiras e sedutor de mulheres, inclusive Capitu.

O adultério e a virgindade tão caros à sociedade do século XIX de há muito deixaram de ser tabu e hoje homens e mulheres trocam de parceiros sem temer o desprezo da sociedade e tornarem-se objeto de ridicularia. A fornicação ocorre na vigência da solteirice, do casamento, dos contratos de união estável ou de encontros fortuitos “de pouca dura” nas baladas, substitutos dos concorridos bailes de salão ou dos recitais e das óperas.

A mulher do século XXI deixou de ser aquele anjo de pureza e virgindade do século XIX e nem dá mais importância à missa dominical. Ritos sociais de passagem, organizados para encontro de jovens casadoras perderam-se na poeira dos tempos, não havendo mais necessidade de as mulheres recorrerem ao código dos olhares, embora muitas mantenham os olhos de ressaca e oblíquos na conquista de seus parceiros. E os homens casmurros na idade de Bento ao descrever suas memórias, cansados das “caprichosas de pouca dura”, gastam fortuna na conquistar de belas prendas, geralmente jovens que serão substituídas tão logo se enquadrem na imagem das balzaquianas pintada pelo francês Honoré de Balzac, em A Mulher de Trinta Anos. [16] Neste ponto, os homens também figuram objetos comprados e trocados pelas senhoras das classes mais afortunadas, equilibrando a equação sexual.

Os motéis tornaram-se grandes negócios e neles algumas mulheres solteiras e casadas tem encontros casuais como os teve Emma Bovary, a insaciável personagem do romance francês, Madame Bovary de Gustave Flaubert e Luísa, a jovem romântica, inconsequente nas suas atitudes, e adúltera de O Primo Basílio, [17] obras de destaque do realismo mundial.

Enfim, analisando-se Dom Casmurro, na dimensão interdisciplinar de Direito e Literatura, evidenciou-se que a violência contra as mulheres retrocede a algumas quadras históricas, podendo ocorrer mesmo em famílias tradicionais de posses com membros de grau de instrução superior. Não sendo coisa exclusiva de pobres que vista chita, lave as mãos em água e sabão e use sapatos gastos e remendados com as próprias mãos...

Extraiu-se ainda que a violência praticada por Bento não se acendera aos olhos dos milhares de críticos da obra machadiana. Talvez por que as agressões sutis, psicológicas, não vindas à luz, passem despercebidas, se não denunciadas. A culpa de Capitu esta foi debatida à exaustão, mas jamais se reparou que o abandono de esposa e filho lançados à própria sorte em país estrangeiro, sem que sequer as cartas afetuosas e cheias de saudades recebessem atenção ou resposta constitui violência enquadrada na subespécie psicológica. No mundo do direito moderno a Lei Maria da Penha [18] regula tal conduta. E o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) [19] incrimina quem se afasta do filho por toda infância e adolescência, merecendo punição mais severa, caso tenha havido repulsa e escancarada rejeição, o que pode acarretar sérias consequências emocionais.

Não se quer diante da agressão a Capitu e a imensidade de abusos cometidos contra as mulheres nos dias de hoje que os Bentos modernos sejam jogados no xadrez com a chave lançada sobre a violenta maré do mar da Glória que causara a morte do amigo e comborço Escobar. Não, porque isso não é uma resposta, não é uma solução. O assunto merece antes da abordagem policial e jurídica ser posto sob as lentes da psicologia ou psiquiatria, uma vez que as emoções não controladas, derivadas de uma educação errada, do erotismo, da frustração nos relacionamentos e da falta de disciplina moral, talvez sejam algumas das causas da violência contra as mulheres. Por esse prisma, os agressores deveriam ser tratados ao invés de enviados à prisão.

Para deixar bastante esclarecida essa exposição doutrinária, tenha-se que a emoção exacerbada, motivadora da maioria de atos violentos contra as mulheres, não é causa psicológica que determine a exclusão da imputabilidade penal, conforme norma integrante estampada no art. 28 do Código Penal. Não se devendo, ainda invocar a legitima defesa da honra a que faz referência o art. 25 do estatuto penal. Mas não se pode descartar que os atos praticados sob estado crônico das emoções e sentimentos guardem um vinculo estreito com a psicologia ou a psiquiatria. Daí entender-se que o tratamento do estado psicológico seja mais eficaz do que a privação de liberdade para que se evite a reincidência.

Encerrada a digressão em torno do aspecto emocional no Código Penal e retomando-se a rota dantes seguida enseja-se dizer que Bento exprimiu sua agressividade contra Capitu graças às evidências de caráter, a ter no mimo sua maior expressão. Os desvios de personalidade adquiridos pela enviesada percepção familiar e social fizeram e fazem da mulher mero objeto de cama e mesa [20] com função única de servir aos maridos. Não dissera São Pedro, que tem as chaves do Céu, que"As mulheres sejam sujeitas a seus maridos”?

A violência contra as mulheres no século XXI talvez se ancore em alguns motivos iguais e outros alheios às razões do tempo de Dom Casmurro. Pode ser que o empoderamento ou a exigência de igualdade de participação de ambos os gêneros tenha despertado uma reação violenta do mundo mais rígido e machista de hoje. São muitos os “pode ser”, pois na verdade, como se ainda não encontrou resposta adequada aos mistérios de Capitu, permanece nas sombras a resposta adequada à questão da violência contra as mulheres. É preciso um quadro de pesquisa amplo para localizar as verdadeiras razões de os homens ainda verem as mulheres culpadas pela violência praticada contra elas.

Para os homens e alguns grupos sociais do império até aqui são as mulheres que não apresentam comportamento adequado e, assim, não correspondendo às expectativas criadas pela sociedade patriarcal, merecem a “justa punição”. Na expectativa da masculinidade hegemônica, ser mulher é ainda ser algo inferior e mesmo em tempos de liberação sexual o adultério ou a escolha livre dos parceiros continua a estimular crimes contra a pessoa. Em outras palavras, apesar de o adultério não constituir mais crime, a punição da mulher continua sendo legitimada e naturalizada socialmente, havendo quase um consenso de ser justo o homem agredir a esposa que trai.

Para romper a secularizada tradição da moral dupla a respeito de como o adultério (causa de violência contra as mulheres) é concebido e tratado entre os gêneros, desde o segundo império, talvez o primeiro passo seja a adoção de uma política que desconstrua preconceitos e incentive a introspecção de novos valores éticos, morais e humanos na sociedade em relação às mulheres, de preferência num consultório médico, nunca entre as grades das prisões.

[1] Ver teoria dos círculos concêntricos in: REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, São Paulo: Saraiva, 1984.

[2] Obras Completas de Machado de Assis, vol. I, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

[3] KARAM, Henriete. Questões teóricas e metodológicas do direito na literatura: um percurso analítico-interpretativo a partir do conto Suje-se gordo!, de Machado de Assis .

[4] Segundo Caldwell, as alusões aferradas aos nomes em Dom Casmurro são sutis, complexas e diversas, como a natureza daqueles que os detém.

[5] VIEIRA, Pe. Antonio. Obras escolhidas. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1951/1954.

[6] CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. Trad. Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Ateliê, 2008.

[7] DOM CASMURRO. ed. 10-102, de 20, maio de 1939. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=095605&pesq=capitu Acesso em:04. set. 2019.

[8] MACHADO, A. M. A audácia dessa mulher. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999a.

[9] Idem

[10] Ver em ESPANCA, Florbela. Cartas de Florbela Espanca a Dona Julia Alves e a Guido Battelli. Gonçalves, 1931. “O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade… sei lá de quê!”

[11] CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. Trad. Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Ateliê, 2008.

[12] AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela. Alfragide: Dom Quixote, 2012.

[13] MOSSIN, Heráclito Antônio. Júri: crime e processo. São Paulo: Atlas, 1999, p. 44

[14] Ver em O inferno das mulheres. Especial. Jornal do Senado. Ano XIX, nº 3.906, 14.07.2003. Disponível em:https://www12.senado.leg.br/jornal/edicoes/especiais/2013/07/04/jornal.pdf#page=1. Acesso em: 04 set. 2019.

[15] Idem.

[16] BALZAC, Honoré de. A mulher de trinta anos. São Paulo: Editora Três, 1974. (Biblioteca Universal, 16).

[17] QUEIROZ, Eça. O primo Basílio. In: Obra completa. v.3. Rio de. Janeiro: Nova Aguilar, 1997

[18] BRASIL. Lei maria da penha. Lei N.º 11.340, de 7 de Agosto de 2006. A Lei classifica as agressões contra mulheres em cinco categorias: violência patrimonial, sexual, física, moral e psicológica.

[19] BRASIL. Estatuto da criança e adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.

[20] STUDART, Heloisa. Mulher, objeto de cama e mesa. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1986..