O julgamento da imprensa por antecipação ao julgamento pelo tribunal do júri sob a perspectiva do agenda-setting

A imprensa[1] no exercício de informar sempre desempenhou papel importante na construção e manutenção da democracia, um dos pilares de sustentação do estado democrático de direito, ao lado do parlamento e da justiça. Uma imprensa aberta, livre das amarras da censura, é salutar e seu exercício pleno faz com que a sociedade participe ativamente em assuntos do interesse comunitário. Ao cidadão é devido o direito de ser informado sobre as particularidades da vida social, econômica, política e cultural de sua comunidade para que possa opinar sobre temas relevantes e questões importantes do dia a dia. Seja sobre a atuação dos governantes e dos funcionários do estado, seja sobre políticos, crimes de colarinho branco ou comuns, afetos ao judiciário.

Fora dos parâmetros constitucionais, a imprensa ingressa no mundo do Direito Penal, quando o ato de se expressar ocorre fora do contexto jurídico apropriado, transformando-se em abuso, infração ou crime, pois, como afirma José Frederico Marques, “Todo direito, como todo dever, é limitado ou regulado em sua execução. Fora dos limites traçados na lei, o que se apresenta é o abuso de direito ou excesso de poder...” [2] Depreende-se do enunciado, que em sua ânsia de informar e opinar a imprensa pode atuar em favor ou desfavor de partes em processo que tramite pela área criminal, causando prejuízos à justiça, sobretudo à parte cabível ao tribunal do júri pela influência nos ânimos dos julgadores leigos que proferirão uma sentença em julgamento que deveria ser anulado.

A questão de que se trata, girando em torno de se saber se a imprensa pode ser parcial e prejudicar um julgamento justo, vem acompanhando as preocupações de juristas e doutrinadores ao longo dos tempos. Como ensina Evandro Lins e Silva, “Não há estudioso de psicologia judiciária ou de criminologia que não tenha opinado sobre a influência do noticiário dos jornais nos julgamentos da justiça.” [3] Se antes de o réu comparecer ao Tribunal do Júri já está condenado pela opinião pública instrumentalizada pela imprensa é possível se acreditar na isenção dos jurados favorecendo ao acusado um julgamento justo?

Em absoluto e os fatos confirmam a negativa como resposta correta à indagação. Eis que no âmbito do judiciário, os penalistas não cansam de tecer comentários sobre o Caso Escola Base,[4] dando-o como um dos maiores erros judiciais, oriundo de notícia falsa publicada sobre prática supostamente ilícita dos proprietários de certa escola infantil, localizada em São Paulo. Outro caso que também dominou os quadriláteros do salão dos passos perdidos e foi considerado por Thomaz Bastos como enquadrável na situação de julgamento antecipado pela imprensa é o Caso Nardoni, [5] no qual os órgãos de imprensa no calor dos acontecimentos insinuaram a culpa do casal ainda não elevado sequer à condição de averiguado. É de se supor que os responsáveis pelas publicações soubessem que as manchetes noticiando fatos ainda não comprovados não poderiam ser classificadas como publicidade dos atos processuais, garantida pela CF/88 em seus artigos 5º, LX e 93, IX, por disporem de assessoramento jurídico qualificado.

Não se pretende atribuir juízo de valor negativo à decisão de culpabilidade do casal, mesmo porque este papel coube ao Tribunal do Júri.[6] O caso foi escolhido para alicerce do artigo por ser talvez o mais noticiado do país, dentre outros tantos que geraram o interesse de publicidade por parte da imprensa com repercussões negativas e prejuízos ao processo penal, graças à uma possível e indelével nódoa à consciência livre dos jurados.[7] Destaquem-se, além do Caso Nardoni, o Caso Bar Bodega [8], Caso Eloá [9], Caso Maníaco do Parque [10] e Caso Bruno ou Elisa Samudio.[11] Todos com trânsito em julgado, sem que se opine contra o veredicto de nenhum deles. Considera-se inadmissível, sim, a condenação prévia feita para vender jornal e se obter ganhos publicitários. E no Caso Nardoni sobram evidências de que os diários, as emissoras de rádio, canais de televisão e a mídia social de São Paulo apostaram todas as fichas em suspeitas, mal se iniciara o procedimento investigativo. Sabiam sem sombra de dúvida que a divulgação inoportuna teria força suficiente para destruir a reputação do casal, ainda mais com investigações potencialmente dirigidas a outro suspeito.[12]

Bem a propósito, ao tecer considerações sobre a espetacularização do processo penal, o criminalista Nilo Batista comparou o Caso Nardoni a episódios idênticos, ocorridos nos Estados Unidos. Os tribunais americanos, segundo ele, já anularam sentenças por conta da indesejável influência exercida pela imprensa na opinião pública. Naqueles casos, o júri simulou uma sentença que não passavam de “averbação judicial de um veredicto já anteriormente ditado: a mídia já julgara”. O trial by the media que versada ao vernáculo se traduz para “Julgamento pela Imprensa”, à consideração do ex-ministro, é um “não julgamento” ou “uma farsa”.[13] Quiçá, o criminalista se referisse aos resultados de pesquisa realizada durante a cobertura do Caso O. J. Simpson que demonstraram que potenciais jurados expostos à massiva cobertura da imprensa admitiam previamente a presunção de culpabilidade e não a de inocência. [14]

Ora. Se o réu se assenta ao banco a ele destinado em plenário do júri já condenado pela imprensa e pela opinião pública de onde se escolhe os julgadores leigos, quer-se crer que as garantias constitucionais e os princípios fundamentais prevalecentes no Direito Penal, a exemplo da presunção de inocência, não são observados, ferindo de morte o “garantismo penal”. [15] A locução cunhada por Luigi Ferrajoli no fim do século XX serve para afirmar que o acusado não deve ser “pré-julgado”, não cabendo a condenação prévia por nenhum delito, até que se tenha comprovado em juízo natural sua culpa e que não haja mais possibilidades de recurso da decisão.

O objetivo de Ferrajoli, mediante os termos da teoria, era despertar a atenção para a necessidade de se limitar o poder punitivo estatal, reduzindo-o ao mínimo necessário. Isto por que, no Estado Democrático de Direito, o garantismo penal não pode ser ameaçado por influências geradas no sentimento popular, principalmente pelo sensacionalismo da imprensa. O espírito de garantismo penal não pode sofrer lesão, mesmo diante dos vários pilares essenciais à liberdade de imprensa aludidos no art. 220 e no inciso IV, do art. 5º, da CF/88. [16]

Reitere-se. A imprensa como veículo de comunicação social deve exercer o direito à difusão da livre manifestação do pensamento, por meio de rádio, jornal, revista, televisão, internet etc. A imprensa é livre, não podendo ser amordaçada por qualquer meio. Ocorre que, em situações não tão incomuns como se é de pensar, surgem conflitos entre as garantias dos suspeitos, investigados ou réus e as da imprensa ancorada no direito à informação e à opinião, na medida em que os meios de comunicação abusam de seus direitos, esquecida dos deveres, prejudicando brutalmente o julgamento dos acusados.

Não esquecer que a presunção de inocência, também se acha presente aos dispositivos da CF/88, especificamente no inciso LVII, do art. 5º, onde está estabelecido que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Este princípio é uma das bases do Estado de Direito e como garantia processual penal que é, tem o propósito de tutelar a liberdade pessoal. Ao lado da presunção de inocência, como critério de solução para dúvida judicial, tomem-se ainda a dúvida razoável e o princípio do in dubio pro reo, que corroboram a situação de que não se pode imputar culpa a quem o estado acusador não conseguiu vincular ao crime de autoria ainda não provada. A presunção de inocência, como proteção contra a participação e influência da imprensa nos processos acusatórios e à condenação parajurídica, evita a publicidade abusiva e a estigmatização precoce do acusado.

Ao discorrer sobre a cobertura da imprensa do júri popular e a opinião pública no Caso Nardoni, o presidente da OAB do Rio de Janeiro, Wadih Damous, ressaltou a importância da garantia do direito de defesa de qualquer cidadão e lembrou que este é um princípio civilizatório comumente desrespeitado pelas tiranias. Segundo ele, “Poucas vezes se viu em nosso país tamanho desrespeito às prerrogativas da defesa, com agressões morais e físicas ao advogado encarregado de cuidar do caso do casal Nardoni”. E reforçou: “Hoje, com o caso Isabella Nardoni, presenciamos a substituição da tirania estatal pela tirania da opinião pública e da mídia”. Indo mais além. “Quem decreta a inocência ou a culpa de um acusado é o Poder Judiciário, não os jornais nem chamada opinião pública. O que estamos vendo é um inaceitável pré-julgamento, o que gera a impressão de um jogo de cartas marcadas, onde a sentença condenatória já está proferida”. [17]

É inegável que, em repiso, a liberdade de imprensa não pode ter quaisquer impedimentos, mas jamais deve ser confundida com um tribunal de exceção que condena o indivíduo implicado em crimes, baseando seu veredicto informal em boatos ou fatos sem investigação, transformando o processo penal em verdadeiro espetáculo circense que “deve ser coibido pela eficácia da presunção de inocência”.[18]

No Caso Nardoni, e no sempre lembrado Caso Escola Base, a imprensa precipitou a condenação ainda na fase investigativa, negando aos acusados o direito à preservação da intimidade. Comentando o Caso Escola Base, Marco Antônio Cardoso, em os "Monstros da Escola Base", enfatizou: “Incontestável, porém, o equívoco cometido pelos mesmos, fato este que deve servir como alerta, no sentido de se proceder com maior cautela, no momento de se selecionar, não só as notícias a serem divulgadas, como também a abordagem a ser conferida uma questão controversa. As prerrogativas constitucionais e legais, consagradas aos particulares, são de observância imperativa.” [19]

Enfim, por conta de a opinião pública ser facilmente manipulável pelos meios de comunicação o garantismo legal deve impor restrições a qualquer juízo de valor antecipado sobre fatos criminosos pela imprensa acerca das circunstâncias e personalidade dos réus. Noutros termos, o julgamento pela imprensa não deve influenciar os jurados, ameaçando direitos e garantias aos réus em processos criminais a competência do tribunal do júri.

Quem é, enfim, sua Excelência o Jurado, a quem se destina o cerco da imprensa? [20]. Em palavras de Whitaker, “jurado é o cidadão incumbido pela sociedade de declarar se os acusados submetidos a julgamento são culpados ou inocentes”.[21] E quem legalmente faz a promessa perante o juiz-presidente de "Em nome da lei, concito-vos a examinar com imparcialidade esta causa e a proferir a vossa decisão, de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça" (CPP art. 464). Tratando-se de pessoa provinda do standard social e sob o intenso bombardeio da imprensa, de familiares, de amigos do dia a dia, de colegas e de amigos do mundo interativo das redes sociais “quem negará a pressão sofrida pelo cérebro do bom jurado, lendo pela manhã em sua folha que toda compaixão será imputada à sua fraqueza; que a opinião pública exige dele implacável julgamento?” Esta inquietante indagação colheu-se de Evandro Lins e Silva que já lá pelos idos da década de 1990, alertava para o poder de persuasão da imprensa. Para ele “Os meios de divulgação hoje são muito mais eficientes, têm outro poder de penetração. Imprensa, rádio e televisão mobilizam, informam, sugestionam letrados analfabetos, elites e povo. Ninguém fica imune à sua propaganda, às manchetes do seu noticiário.”

Com o crescimento vertiginoso da informática agregada à internet que veiculam em tempo real os fatos do crime e do processo amplia-se sobremaneira a penetração do poder da imprensa sobre a população em geral, pois hoje, mais do que nunca, “Ninguém fica imune à sua propaganda, às manchetes do seu noticiário.” Com tal poder, a imprensa representa um risco significativo para um julgamento justo. Em outros dizeres, diante de crimes de grande clamor popular, a imprensa torna-se sensacionalista e agressivamente ultrapassa os limites legais, avançando sobre os direitos individuais. E um corpo de jurados selecionado dentre os cidadãos comuns poderá tender para um lado ou para outro, deixando o tribunal do júri fragilizado no critério de imparcialidade, colocando, quem sabe, um inocente a cumprir uma pena que não lhe é devido.

E nenhuma outra abordagem é mais sensacionalista [22] do que a das coberturas criminais. É corriqueira a veiculação de notícias e reportagens sobre a violência, mas se tratado de crime da competência material do Tribunal do Júri os ânimos se assanham ainda mais. A imprensa sensacionalista, na sua busca pela audiência, utiliza-se de métodos e técnicas para tornar a notícia atrativa ao grande público. E o interesse algumas vezes não é transmitir informações verídicas. A verdade não é prioritária. A imprensa sensacionalista quer sangue e para tanto expõe a desgraça alheia em programas radiofônicos, televisivos e jornais divulgando a violência, revelando bandidos e os erros de pessoas, às vezes inventados, em troca de audiência. É de se lembrar que sensacionalismo rima com “manipulação”, com “mercantilização da informação”.[23] E que a informação sensacionalista é aquela que se localiza na esfera do lazer para vender mais jornal, repetindo o modelo clássico liberal de informação eivado de técnicas de manipulação, a semelhança do agenda-setting.

A essência desta hipótese surgida na década de 1970 e que se tornou uma das teorias da Comunicação mais estudadas calca-se na elaboração de uma pauta determinada pela imprensa para a opinião pública, destacando determinados temas e preterindo, ofuscando ou ignorando outros. [24] Ou seja, os meios de comunicação agendariam os temas os quais os cidadãos passariam a incluir em suas conversas. De posse desta informação a imprensa passou a realçar ou negligenciar elementos específicos dos cenários públicos, apresentando-se como agente modificador da realidade social, ao apontar para o público receptor sobre o quê deveria ser informado. [25]

A mecânica do agenda-setting parece aproximar-se da lógica da “espiral do silêncio”, teoria utilizada pela pesquisadora alemã Noelle-Neumann, retratando a circunstância em que se encontra uma pessoa de silenciar sua opinião diante de outra considerada majoritária para não ser discriminada pela opinião contrária. A publicidade do crime dada pelos órgãos de imprensa age sobre os integrantes do conselho de sentença como monitoramento invisível ou coação fazendo com que sua decisão vá além da evidência. É como se para cada voto dado a um quesito o jurado fizesse uma declaração para a família, colegas de trabalho, comunidade e sociedade como um todo. A conclusão a se tirar é como demonstra a realidade, na maioria dos casos, o veredicto prévio da imprensa torna-se o veredicto final nos tribunais de primeira instância.

Desse modo, por meio do agenda-setting, é possível identificar os meios de comunicação priorizando as opiniões dominantes, elaborando em suas redações a agenda diária do que devem ser discutido ou pensado, pelos leitores, telespectadores ou internautas, possíveis jurados que, temendo a reação do grupo, silencia a própria opinião, ocultando eventual discordância, ajudando assim a manter o status quo. O Caso Nardoni de alto interesse público cristaliza de forma perfeita a forma de utilização do agenda-setting e do efeito espiral pela imprensa que visava a obtenção de audiência, além do objetivo de informar.

Veja-se: “Com a cobertura da morte da menina Isabella Nardoni, no dia 5 de abril, a audiência dos telejornais cresceu até 46% na primeira quinzena do mês em relação ao mesmo período de março - é também o caso do "Brasil Urgente", da Band. A informação é da coluna Outro Canal, de Daniel Castro, na Folha de São Paulo. A audiência do "Balanço Geral", da Record, cresceu 25%. Ao caso Isabella também foram atribuídas as consecutivas lideranças da Record no período matutino. No "Jornal Nacional", a cobertura chegou a ocupar 15 minutos e 20 segundos na edição da terça-feira (15/4), o equivalente a 37% do telejornal. A Globo mobilizou 18 repórteres, oito produtores e 20 cinegrafistas para cobrir o caso. Eles fizeram plantões permanentes em casas de parentes de Isabella e em delegacias. Enfim, aconteceu tudo que as duas partes, telespectadores e mídia, queriam. Cobertura repetitiva e agendamentos solicitados.[26] ). Os dados que ilustram a dimensão que os meios de comunicação podem proporcionar a um processo, podendo inclusive influenciar a sociedade para que pense do modo que os grandes detentores destes meios queiram revelam a possibilidade de criação pela imprensa de uma agenda ou realidade paralela formada à revelia da verdade facilmente apurada mediante o contraditório. E como sabido, ao noticiar um acontecimento criminoso (ou aparentemente criminoso), a imprensa não tem nenhuma preocupação em ouvir a versão do acusado sobre os fatos, o que acaba na maioria das vezes prejudicando a exposição da verdade com a reconstrução da realidade dos acontecimentos. E aqui tem pertinência a lição ensinada por Boldt, segundo a qual “A intervenção do jornalista na reconstrução da realidade ocorre já na definição da "pauta" do que deverá ser noticiado, momento em que se descartam informações cuja importância foi reduzida. O trágico desta seleção está exatamente na modificação dos critérios pertinentes à relevância dos fatos, substituída pelo mero interesse do público.” [27].

Não pode haver exemplo maior da intervenção na reconstrução da realidade do que enxerto retirado de artigo de Laurindo Lalo Leal Filho publicado em 2005. Conta o jornalista e sociólogo que certa equipe de professores da USP que acompanhava a produção do Jornal Nacional ficou estupefata com a escolha superficial do editor-chefe do programa para as reportagens que, posteriormente iriam ao ar. Conforme o articulista, “Como se não bastasse a explícita busca pelo apelo da opinião pública e a dispensa de notícias de impacto social e político, Bonner explicou aos professores e pesquisadores o perfil do telespectador médio do Jornal Nacional: são Homers Simpsons”.

Retornando a Boldt, seu olhar crítico volta-se para o fenômeno do afrouxamento da regulação da grande imprensa bem apanhado, desta feita, por Gilles Lipovetsky, filósofo francês, que em obra referência identificou o fenômeno como a “segunda revolução individualista” característica do período de falência dos sistemas ideológicos que permitiram um “individualismo desregulado, dessincronizado, à la carte, que não cessa de favorecer a galáxia dos mass media” [28]. Para ele, a partir dos anos 60, a imprensa desregulamentada e inflada pelo sensacionalismo passou a ser vista como “caixa de ressonância dos perigos que planam sobre nossas existências, [29] agindo, “ (...) como catalisadora de reuniões efervescentes, de afetos comuns, de participações emocionais em amplas manifestações. As novas exteriorizações coletivas dos sentimentos estão ligadas, de perto ou de longe, ao impacto da mídia: inexiste emoção coletiva sem hipermidiatização dos acontecimentos. Não são mais os ritos, os costumes, as normas herdadas do passado que organizam os estados de efervescência coletiva. Estes, agora, vinculam-se aos acontecimentos do presente e à sua cobertura midiática.” [30]

A hipermidiatização dos acontecimentos observada tanto no Caso Escola Base explica-se pela possibilidade de cada um deles ser considerado O caso do ano, cuja resolução ou divulgação daria notoriedade à autoridade policial e ao jornalista que conseguisse o furo. No Caso Escola Base, o que houve foi furo nas contas bancárias dos proprietários, à vista de seguidos processos judiciais. [31]

A imprensa "deve ser criticada quando erra". E quando erra, não é possível se fazer um julgamento justo com a publicidade opressiva em cima dos acusados, como assevera Thomaz Bastos. Para ele, "Esse julgamento dos pais que mataram a menina (o caso Isabela Nardoni) é exemplo típico de um julgamento que não houve, isso foi um justiçamento". E ainda: "Acho fundamental a vigilância da imprensa... Mas, só até certo ponto. Agora, algumas vezes, ela (a mídia) erra. No caso Nardoni, por exemplo, eu acho que foi um erro terrível". [32] Em seus termos, dizia o ex-ministro que o julgamento pela imprensa é definitivamente uma interferência indevida no processo de administração da justiça.

A tendência mundial a respeito da interferência da imprensa mediante aplicação da técnica do agenda-setting e da espiral do silêncio é que a jurisprudência dos tribunais constitucionais condene a falta de garantia do acusado a um julgamento justo. Nesse passo, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já fixou jurisprudência no sentido de que coibir as atividades abusivas da imprensa, com a prevalência do garantismo legal.[33] Na apreciação do caso Worm versus Austria, a Corte Europeia dos Direitos Humanos pronunciou-se pela responsabilização da atividade jornalística. Consta dos autos que “Antes de o tribunal pronunciar seu veredicto sobre a acusação de evasão fiscal, imputada ao réu foi publicado artigo altamente crítico afirmando que o Vice-Chanceler e Ministro das Finanças (Androsch) era culpado.” A Corte concluiu que para ocorrer o julgamento midiático, basta a potencialidade do dano ao julgamento justo quando o caso ainda está sob julgamento.[34] Em Barfod versus Dinamarca, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos considerou que, mesmo depois de finalizado o processo, o exercício da liberdade de expressão pelos meios de comunicação pode afetar a confiança do público sobre a administração da justiça, referendando, inclusive, a aplicação de sanções.

Nos Estados Unidos, o exemplo mais famoso de episódio criminal que mostra o efeito exercido pela imprensa sobre o veredicto do tribunal encontra-se no Caso O. J. Simpson transmitido em mais de duas mil horas ao vivo somente em três canais de televisão, atingindo vinte milhões de pessoas. [35] Como a tese de defesa deste julgamento apoiou-se na questão racial, frequentemente os noticiários indagavam se era possível "um homem negro receber um julgamento justo”. E assim começaram a fabricar histórias sem o confronto com os fatos verdadeiros. A imprensa enganava o público, pois algumas pessoas sequer sabiam da existência de um processo judicial verdadeiro.

Outro caso que ganhou grande notoriedade, também nos Estados Unidos e ocupou as manchetes americanas durante anos, foi o Caso Knox, história contada entre muitos como o crime perfeito. A imprensa americana explorou ao máximo a beleza e a sensualidade da acusada julgada e condenada duas vezes por tribunais italianos, tendo obtido absolvição em grau de recurso. O juiz que presidiu o julgamento após o veredicto de absolvição, afirmou ao jornal Corriere della Sera, que, apesar de a acusada ter sido absolvida, o “pronunciamento de absolvição é o resultado da verdade que se formou no processo. Mas a verdade real pode ser distinta”. Nesses dois casos a imprensa americana, em sua ânsia de repercutir matérias sensacionalistas, caiu na armadilha do julgamento rápido.

A notícia alvissareira é que ao redor do mundo novas leis vêm surgindo para lidar com o risco de que a imprensa possa comprometer os julgamentos pelo Tribunal do Júri.[36] O Brasil está longe de tutelar e proteger os juízes togados da publicidade abusiva da imprensa, que não apenas julga os casos, mas a própria justiça estatal, com horizontes imprecisos se institucionalizando como efetivo quarto poder.[37] Por estas bandas, como não há uma legislação que salvaguarde os tribunais dos ataques midiáticos, os juízes são pressionados para seguir a cartilha do punitivismo.

O exemplo ou o mau exemplo é seguido pelos juízes leigos no Tribunal do Júri que sugestionados pela imprensa, ignoram o direito constitucional de os acusados terem um julgamento realizado por juízes imparciais, não influenciados por manchetes de jornal ou pressionados pela opinião pública. A enxurrada de alegações, insinuações, fatos mentirosos retirados da realidade virtual formada pela imprensa contra pessoas, até então investigadas pela policia ou ainda não julgadas pela justiça leva a se dar crédito ao pensamento de Malcom X, segundo o qual “A mídia é a força mais poderosa da Terra; ela torna inocentes culpados e culpados inocentes. E isso é poder, porque controla a mente das massas."

Nesse contexto, seria importante que houvesse lei que evitasse ou minimizasse a exposição pela imprensa de pessoa que julgado se revelasse perante o tribunal inocente. A interferência da imprensa patrocinando o prejulgamento poderia ser encarada como obstrução à justiça, comportamento tipificado pelo Código Penal, no art. 332. A imprensa ao julgar precipitadamente submete os acusados ao constrangimento, humilhação, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem e ridicularia. E o que diz o tipo penal obstrução de justiça? Segundo o Código Penal a obstrução de justiça que pode render, em caso de condenação, de um a quatro anos de cadeia, caracteriza-se na dicção do art. 344 do Código Penal, como “Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral”.

Dê-se um pouco de reflexão à locução usar de violência e se terá por violência psicológica o fato de a imprensa julgar precipitadamente antes do juízo natural. E violência psicológica, observada aqui pelo prisma jurídico estabelecido no texto da Lei Maria da Penha, consiste em qualquer conduta que cause danos emocionais, diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da pessoa. Ou, ainda, que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. Quanto à violência moral, ela é entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Se a imprensa ofende a dignidade da pessoa acusando-a em julgamento antecipatório ao pronunciamento da justiça julgando-a, condenando-a e veladamente ameaçando ou intimidando, obviamente que intervém no processo judicial provocando, além de danos à imagem, poderá influir no resultado do julgamento pelo tribunal do júri, antes do pronunciamento dos tribunais, o que pode perfeitamente render a imputação de obstrução à justiça.

Em conclusão, a CF/88 é meridiana em não admitir interpretação diversa ao estabelecido no parágrafo 1º do art. 220, segundo o qual, "Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social". Da análise, todavia, guardou-se a percepção clara de que a imprensa reencarna-se em "tribunal público", interferindo pela técnica do agenda-setting em processos judiciais para pronunciar-se sobre a condenação, antes mesmo de os juízes leigos proferirem o veredicto. Dessa forma, os meios de comunicação atentam contra os princípios de ouro do Direito Penal que são a "presunção de inocência até prova em contrário" e a "culpa além de uma dúvida razoável". Os meios de comunicação realizando investigações paralelas, divulgando documentos e provas antes mesmo de concluído o inquérito policial, moldam a opinião pública, e por extensão os jurados que são guiados de acordo com as idiossincrasias da imprensa, visando à condenação prévia dos acusados.

[1] Apesar de as leis protegem a liberdade de imprensa ou informação jornalística, a ‘liberdade de imprensa’ não aparece em nenhum lugar da CF/88, o que torna difícil até mesmo se conceituar o que seja imprensa. O termo aqui utilizado terá significação ampla, abrangendo desde veículos da velha imprensa a exemplo de rádios, jornais e emissoras de televisão até as plataformas digitais conhecidas como mídias sociais.

[2] MARQUES, José Frederico. O Júri no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1955.

[3] SILVA, Evandro Lins e. Defesa tem a palavra. 3ª ed. Rio de Janeiro: Aide Ed., 1991. p 66.

[4] Ribeiro, Alex (1995). Caso escola base: os abusos da imprensa. São Paulo: Ática.

[5] MOREIRA, Ana Paula, SINFRÔNIO, Jacqueline Teixeira, PAULO, Wanderlei Homem. A mídia no “Caso Nardoni”. Revista Communic, Edição 1, Ago/Dez 2012. Disponível em: <http://revistacommunic.xpg.uol.com.br/edicao01/artigo03_edicao01.pdf>; Acesso em 08 ago. 2019.

[6] O GLOBO, 2011. Caso Isabella: Confira na integra sentença que condenou casal Nardoni. <http://oglobo.globo.com/brasil/caso-isabella-confira-na-integra-sentenca-que-condenou-casal-nardoni-...; Acesso 08 ago. 2019.

[7] Do universo de casos de crimes midiáticos existentes no Brasil destacam-se além do Caso Nardoni, o Caso Bar Bodega, Caso Eloá, Maníaco do Parque, Eliza Samudio.

[8] DORNELES, Carlos. Bar Bodega: um crime de imprensa. São Paulo: Globo, 2007. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/161446490/Bar-Bodega#scribd>; Acesso em 10 ago. 2019.

[9] BARROS, Bruno Melo de Côrrea, THADDEU, Helena de Rosso, PEREIRA, Marilia do Nascimento. Caso Eloá Pimentel/Sônia Abrão – A interferência da mídia nas negociações policias. Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade, Universidade Federal de Santa Maria/RS, junho de 2013. Disponível em: <http://coral.ufsm.br/congressodireito/anais/2013/3-5.pdf>; Acesso em 8 ago. 2019.

[10] ALCALDE, Luisa, SANTOS, Luis Carlos dos. Caçada ao maníaco do Parque. São Paulo: Editora Escritura, 2000.

[11] GOMES, Luis Flávio. A mídia e o julgamento do ex-goleiro Bruno. Disponível em <http://correio-forense.jusbrasil.com.br/noticias/100372932/a-midiaeo-julgamento-do-ex-goleiro-brun...; Acesso em 12 Abril 2015.

[12] Apesar de a acusação não ter dado crédito à versão, o casal Nardoni sustenta que um criminoso invadiu o apartamento deles na zona norte de São Paulo e matou a menina. AGÊNCIA ESTADO, Polícia suspeita de homicídio em queda de menor em SP. Disponível em:<http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL375064-5598,00-POLICIA+SUSPEITA+DE+HOMICIDIO+EM+QUEDA+DE+MENOR+EM+SP.html>, Acesso em 08 ago. 2019

[13] BATISTA, Nilo. Imprensa e Justiça. O Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/opiniao/imprensa-justiça-18540968>. Acesso em: 12 ago. 2019.

[14] John W. Wright II e Susan Dente Ross (1997) Julgamento pela mídia? Confiança da mídia, conhecimento do crime e percepção de réus criminais, Lei de Comunicação e Política, 2: 4, 397. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/10811689709368632>. Acesso em: 8 ago. 2019.

[15] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 7.

[16] BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituição/Constituição.htm>. Acesso em: 09 ago. 2019.

[17] Princípio civilizatório. População não respeita defesa dos Nardoni, diz OAB. Revista Consultor Jurídico, 25 de março de 2010. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2010-mar-25/defesa-nardoni-desrespeitada-opiniao-pública-oab-rio>. Acesso em: 08 ago. 2019.

[18] JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 8 ed. V 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

[19] SOUZA, Marcos Antônio Cardoso de. “Os Monstros da Escola Base: Responsabilidade da Imprensa”. Disponível na internet: www.ibccrim.com.br. Acessoem 08 ago. 2019.

[20] SIMANTOB, Fábio Tofic. Sua Excelência, o jurado Estado de S. Paulo. Disponível em: <https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,sua-excelenciaojurado,528955>. Acesso em: 09 ago. 2019.

[21] ROGRON, Código de Processo. Cap. V, seção 1ª apud WHITAKER, Firmino. Júri (Estado de São Paulo). 4. ed. 1923, p. 19. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/bibliotecadigital/Ministros/37113/pdf/37113.pdf>; Acesso em: 07 ago. 2019.

[22] Considera-se sensacionalismo estilo jornalístico caracterizado pela exagerada importância dada a um acontecimento com o intuito de emocionar ou escandalizar o público.

[23] AMARAL, Márcia Franz. Jornalismo Popular. São Paulo: Contexto, 2006, p. 20.

[24] FORMIGA, F. O. N. A evolução da hipótese de Agenda-setting. 2006. 93 f. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

[25] SHAW, E. apud WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. 6. ed. Lisboa: Editorial Presença Ltda, 2001, p. 144.

[26] GALVÃO, Luiz. Agenda-Setting e espiral do silencio. Disponível em: <http://luizgalvaomidia.blogspot.com.br/2008/07/agenda-settingeespiral-do-silncio.html>; Acesso em: 09 ago. 2019.

[27] BOLDT, Raphael. Criminologia midiática: Do discurso punitivo à corrosão simbólica do Garantismo. Curitiba: Juruá, 2013. p. 67.

[28] LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien. Os Tempos Hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.

[29] Id., 2004, p. 72.

[30] Id., 2004. p. 80.

[31] STJ condena SBT a pagar indenização no caso Escola Base. O Globo, 20-2-2014, Disponível em: http://noblat.oglobo.globo.com/noticias/noticia/2014/02/stj-condena-sbt-pagar-indenizacao-no-caso-es.... Acesso em: 09 ago.2019.

[32]HOLANDA, Tarcísio. Bastos acusa a imprensa. Disponível em:<http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/nacional/coluna/tarcisio-holanda-1.183/mata-ria-.... Acesso em: 09 ago. 2019.

[33] FIGUEIREDO, Herivelton Rezende. Publicidade da Mídia nos Julgamentos Criminais e o Sigilo Judicial. Disponível em: <http://www.lex.com.br/doutrina_26052222_A_PUBLICIDADE_DA_MIDIA_NOS_JULGAMENTOS_CRIMINAIS\nO_SIGILO_...; Acesso em: 10 ago. 2019.

[34] WORM v. AUSTRIA. Criminal conviction of journalist who wrote and published article during pending criminal proceeding. Disponível em: <https://www.ucpi.org.uk/wp-content/uploads/2018/03/WormvAustria-Application-No.-2271493-1998-25-E....; Acesso em 08 ago.2019;

[35] ANITUA, Gabriel Ignacio. Justicia penal pública: un estudio a partir del principio de publicidad de los juicios penales. 1ª ed. Buenos Aires: Editora Del Puerto, 2003.