FALCÃO - MENINOS DO TRÁFICO PELA ÓTICA DA SEMIOLOGIA JURÍDICA.

RESUMO

O documentário Falcão - Meninos do Tráfico é resultado de uma pesquisa iniciada em 1997 pelo rapper MV Bill e seu produtor Celso Athayde. Durante seis anos, munidos de câmeras digitais, ousadia e coragem os dois aproveitaram o tempo disponível entre os shows e percorreram comunidades de vários estados brasileiros registrando os depoimentos de garotos que trabalham no tráfico. Trata o presente artigo da tentativa de provocar a discussão sobre tema tão atual e marcante, sob a ótica da Semiologia Jurídica.

Palavras-chaves: Semiologia. Discurso jurídico. Exclusão social.

1 INTRODUÇÃO

Com base em mais de 217 horas filmadas ao longo dos seis anos em que o rapper MV Bill e seu produtor, Celso Athayde, percorreram comunidades de todo o país, analisando o universo dos menores de idade que trabalham no tráfico, a Rede Globo veiculou no programa Fantástico, edição de 19 de março, o documentário “Falcão - Meninos do Tráfico”.

As inúmeras imagens e depoimentos chocantes do documentário impressionaram milhões de telespectadores que passaram a se condoer e questionar o dia a dia das favelas com suas populações pobres, negras e totalmente marginalizadas.

As “classes superiores” - durante longos 58 minutos de imagens editadas - permaneceram estarrecidas, diante de seus televisores plasma de 42 polegadas. Estupefatas, como se o mosaico das desigualdades sociais expressas na cartografia das cidades grandes não existisse há décadas. Indignadas, como se a rajada de realidade não resultasse de disputas e de interesses econômicos, sociais e políticos e estivesse longe do cotidiano das grandes cidades.

Ao refletir sobre o documentário em que 15 meninos entrevistados morreram e apenas um se salvou, é de se crer que a estupefação e a indignação dos telespectadores mais se angudizaram dada a forma como lhes foi apresentado. Programas deste nível não fazem parte da grade de programação das emissoras de televisão, principalmente, as de programação aberta, comercial. Não há interesse de formar consciências críticas.

O mundo televisivo prima pela idiotização, pela destruição das capacidades intelectuais, pelo enraizamento da ideologia de que o tropel de eventos do mundo de faz de contas deve-se sobrepor à crueza da realidade.

Será a televisão o mito da caverna moderno? Mito ao inverso é verdade. A caverna de hoje é o lugar confortável da sala-de-estar onde as sombras saltam do monitor e são assistidas sem grilhões e mudam rapidamente mediante o comando dos controles remotos se não chegam a ser do agrado.

Sim! Não resta dúvida de que a metáfora aqui ganha propriedade. Mas não se deve esperar que os telespectadores, mesmo diante de um programa da jaez de Falcão, que demonstra haver vida além das novelas, dos programas de auditório e dos reality show, superem o vício do ócio e após o breve curto-circuito de inteligência renunciem à falsa ilusão da realidade de seu mundo de faz de contas.

Na semana seguinte, por força de novas temporadas de novelas, filmes ou escândalos políticos, outras sombras se perfilharão diante da tela colorida. A alienação retomará seu lugar e irritados com a permanência da vida desglamurizada das favelas os telespectadores esquecerão completamente dos falcões-meninos.

Diante desta certeza, o propósito do artigo é fazer o operador do Direito pensar sobre o caso, criticamente, sob a influência da Semiologia Jurídica e agir no entendimento de que o constitucionalismo contemporâneo não basta como dirimente dos conflitos apresentados pela população que durante uma semana incomodou a opinião pública brasileira,

2 ANÁLISE CRÍTICA

Hobbes já previa sob a ótica absolutista que o objetivo último do Estado é garantir a segurança, através do elemento de coação proveniente das leis elaboradas pelo próprio Estado. [1]

O elemento de coação e legitimação permaneceu depois da ascensão da burguesia ao poder, consagrando na teoria positivista o dogma da onipotência do legislador o que na ótica liberal de Montesquieu, justificava a monopolização jurídica do Estado.

No âmbito das relações entre as pessoas envolvidas no documentário, graças à exclusão provocada pelo esquecimento do Estado, são os traficantes que representam a segurança e a proteção, cabendo à polícia o papel de difusor do medo, numa flagrante inversão de valores.

Os falcões [2], menores que, sem direito a escola, trabalho e família, trocaram a infância e a adolescência por uma carreira no mundo do crime, aparecem aos bandos no documentário. Dos mais jovens até um que acaba de fazer dezoito anos e não sabe o que fará quando tiver de sair da boca.

Em uma das cenas, sobre a polícia, vem a afirmação seca: "Se acabar o crime, acaba a polícia. Porque quem dá dinheiro pra polícia somos nós. Se acabar o tráfico de drogas eles vão ficar massacrados”. Quando o rapper MV Bill pergunta a outro, que não deve ter mais que onze anos, o que ele quer ser quando crescer, a resposta vem rápida, sem vacilação: "Quero ser bandido”. No documentário o governo é tratado com o mesmo desdouro: "Sou um cara que nem era pra tá aqui. Mas isso aí é o que o governante quer. Não liga pra nada".

O fato em si demonstra o distanciamento do discurso jurídico com a realidade social.

O documentário é a prova viva de que o discurso que enaltece a onipotência do legislador falha flagrantemente no caso dos falcões e seu habitat. A vontade do povo representado nas câmaras legislativas é desconsiderada, porque o legislador privilegia as aspirações da classe que está no poder, sendo ele próprio parte integrante e interessada na manutenção da miséria e na exclusão para manter o status quo de regalias e vantagens da casta.

O exemplo ilustra à perfeição o questionamento do fracasso ou o do esgotamento das análises críticas feitas ao sistema jurídico sem considerar as dimensões sociais nos diferentes discursos do Direito.

Discursos esses que, apoiados na dogmática jurídica tradicional, possuem fórmulas envelhecidas não atentando para o momento histórico, as circunstâncias em que se dão as ocorrências e, principalmente, pelas conseqüências sociais causadoras e geradas a partir de, observando estritamente o conteúdo pragmático da lei.

Abre-se, então, espaço para um campo que se debruce sobre o “idioma social do Direito”, ou seja: o universo de signos e significações produzidos e reproduzidos pelas forças que interagem na sociedade gerando as relações do interesse do Direito.

O instrumental dos saberes críticos ao colocar as questões jurídicas à margem dos problemas de ideologia e da história submete-se em importância à Semiologia. Mesmo esta ciência sem a especificidade do ramo “Semiologia do poder”, ao abordar os problemas significativos do Direito, sem considerar as dimensões sociais nos diferentes discursos jurídicos, iguala-se à Lingüística e gera apenas noções gerais e imprecisas.

A análise crítica do universo de “Falcões – Meninos do Tráfico” insere-se especificamente nas preocupações da Semiologia, no campo próprio da Semiologia do Poder que como disciplina contradiscursiva

se ocupa com a discussão sobre o poder social dos discursos e suas funções como fator co-determinante das con¬dições materiais da vida social.(...) Em outros termos, a se¬miologia do poder pretende analisar a significação como instrumento de controle social, como estratégia normalizadora e disciplinar dos indivíduos, como fórmula produtora do consenso, como estágio ilusório dos valores de repre¬sentação, como fetiche regulador da interação social, como poder persuasivo provocador de efeitos de verossimilhança sobre as condições materiais da vida social, como fator legitimador do monopólio da coerção e como fator de uni-ficação do contraditório exercício do poder social. [3]

O medo, reportado pelas populações da periferia do Estado, personificado por sua mão coercitiva - a Polícia, provém do fato de os discursos analisados sob a égide do dogmatismo positivista não observarem que os discursos do Direito mascaram os valores da ideologia capitalista, prestando-se como instrumento de poder perenizado das classes dominantes.

Tal fato materializa-se nos conceitos vagos e ambíguos de justiça, verdade, bem-comum, segurança, mulher honesta, justificável confiança, motivo fútil etc. que devem se adequar a todos imperativamente, mas que efetivamente só obrigam, só sujeitam as populações das periferias dos grandes centros desenvolvidos do país.

As pessoas consumidas pela pobreza e pela exclusão social evitam buscar a tutela do Estado, pois o ritual forense clássico é, por vezes, assustador para o cidadão comum. Os trajes, a linguagem e até mesmo a disposição arquitetônica das salas de audiência e dos plenários não contribuem para o diálogo com vistas à construção de consensos.

Como não tremer diante de martelos acusadores vibrando sobre o lastro de madeira à minúscula contrariedade do magistrado, impondo ordem, exigindo respeito, gesticulando às sombras de volumosas peças processuais?

É hilária a citação de Fernandino Caldeira de Andrada inserta em coletânea de fatos pitorescos na Advocacia, confirmando o fato de que o entendimento da linguagem jurídica passa, às vezes, ao largo até da interpretação de seus operadores.

Consta que “Advogado (?) houve que, num petitório, chamou o juiz de meritíssimo por extenso, o que levou o magistrado a despachar irado: "O requerente trocou o repetido tratamento vestibular por um prostibular. Volte-lhe, portanto o processo, para que nele fale com o acatamento que se deve a um Juiz e com o respeito devido à nobre profissão dos advogados". [4]

Depreende-se aqui de como deve, então, a população analfabeta sentir-se diante de uma classe que se expressa por jargão ou código cujo significado, o mais das vezes, ela própria confunde e desconhece. É bem mais fácil utilizar-se do corriqueiro vocabulário do crime e o processo excludente força uma vez mais a capitulação do povo marginal diante de seus protetores.

Dá-se a ocorrência, desde que em seu meio se fazem entender, o interlocutor está próximo; é conhecido e reconhecido; o entende e o satisfaz mesmo nas necessidades mais elementares. Aos operadores do Direito é difícil compreender que os desassistidos têm sua própria linguagem, e suas próprias leis. Quem realmente os quer entender, terá que se esforçar, tanto para compreender suas expressões gramaticais, quanto suas atitudes e, portanto, descer ao nível da favela.

Outro ponto a ser considerado é que a tão propalada segurança jurídica é falha com a população marginalizada. Para ela não existem imparcialidade e nem neutralidade dos julgadores. Se houvesse, não assistiríamos na mídia nacional casos semelhantes àquele dando conta de decisão judicial que manteve presa por quase quatro meses favelada acusada de furtar um pote de manteiga.

Resta sobre o caso, ainda, dizer que os mesmos que decidiram pela pena restritiva de liberdade trataram a prisioneira com escárnio, negando-lhe a liberdade, mesmo não tendo antecedentes criminais, possuir residência fixa, profissão certa e ser provedora do sustento dela e de sua genitora idosa.

Desconsiderou-se em favor da ré o Princípio da Bagatela. O crime famélico cometido afigurou-se imperdoável e hediondo para o meritíssimo. O cárcere, lixeiro de corpos, é para onde deve ir e permanecer quem rouba um simples pote de manteiga; quem teve a infelicidade de cair nas malhas da justiça para não padecer de inanição pela fome e ser julgado por juízes cheios de arrogância, inclemência e prepotência. Frente aos mais fracos, é claro, pois os engravatados que se utilizam ilicitamente de recursos públicos estão todos nababescamente livres, rendendo-lhes homenagens, presenteando-os com lands rovers e BMWs.

Para os ricos os magistrados viciam a interpretação da lei. Para os pobres a decodificação e a aplicação das normas fazem-se ao apego exacerbado e acrítico à letra legal. Sujeitos à miséria e, em conseqüência, à ignorância, os desvalidos não entendem e rejeitam o sistema jurídico. Faltam-lhes condições financeiras e sociais capazes de inseri-los na fenomenologia do mundo do Direito.

E é de se notar que essa mesma lei acha-se repleta de “significações com evocações repressivas e persuasivas que ocultam a questão dos mecanismos de produção e exercício do poder (efeito de desconhecimento).” [5]

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Afinal, que importância vem a ter a Semiologia do Poder para quem - imerso em suas próprias razões, suas angústias, suas loucuras, seus sonhos, suas maldades, suas afabilidades e suas contradições - a preocupação com a miséria do corpo é exponencialmente maior do que as inquietações com a miséria de conhecimento?

Indiretamente, importa e muito.

Se os operadores do Direito, rompendo com as idéias positivistas, fizerem da Semiótica Jurídica instrumento de análise dos conflitos, dos delitos e das penas, ousando em criatividade, extrapolando o possível dos limites da legalidade e privilegiando a justiça em detrimento da segurança, possibilitando que a aplicação e interpretação das leis façam-se de acordo com os objetivos e princípios insertos na Constituição, estarão assim legitimando, não o Estado conservador e a manutenção das regalias, mas a participação da sociedade civil na construção de um Direito que alcance até mesmo os moradores de casebres escalando os morros, situados além das fronteiras dos bairros elegantes.

As memórias dos autores do documentário “Falcão – Meninos do tráfico”, a partir daí, serão apenas lembranças de um Estado que deixou de ser divinamente legalizado e que, excluindo das relações sociais a função policial da linguagem, reduziu o fosso que separa a “comunidade” dos condomínios, integrou aos privilégios da casa grande os habitantes da senzala.

NOTAS

1 Para abordagem mais ampla vide HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil.

2 Falcão é o nome dado aos que têm a função de vigiar a favela e avisar os traficantes quando a polícia ou qualquer outro "inimigo" se aproximar.

3 Ver Luis Alberto Warat. O direito e sua linguagem.

4 Citado em Modelos de ciência jurídica, primeiro capítulo da Teoria do Campo Jurídico, elaborada como tese de doutoramento do Prof. Antônio Celso Mendes. Disponível em http://www.filosofiaparatodos.kit.net/filosofiadodireito.html. Acesso em 05 mai 2006.

5 Warat, Luis Alberto. Epistemologia e Ensino do Direito

REFERÊNCIAS

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 2ed .São Paulo. Abril Cultural, 1979.

WARAT, Luis Alberto. Epistemologia e Ensino do Direito Vol. II v.2. Florianópolis: Boiteux, 2004.

WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995.