O CASO DOS EXPLORADORES DE CAVERNAS: AVALIAÇÃO À LUZ DAS TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS DE PERELMAN

1 Introdução

"O caso dos exploradores de cavernas”, de Lon L. Fuller foi publicado, inicialmente, na Harvard Law Review, em 1949. Na ficção que se passa no ano 4299, Fuller, emérito professor de jurisprudence, da Harvard Law School, apresenta suas idéias a partir do apelo revisional em segundo grau dirigido à Corte Suprema, instância judiciária superior à de Snowfield, condado de Newgarth. A corte é presidida pelo juiz Truepenny e conta com mais quatro outros magistrados: Foster, Tatting, Keen e Handy.

É perfeitamente possível entender que a Newgarth descrita tenha sido idealizada com base numa comparação com os Estados Unidos, já que o texto teve por suporte argumentos e idéias extraídos de fatos reais. A dicotomia entre o Direito Natural e o Direito Positivo foi incluída graças ao caso United States vs. Holmes (1842) no qual os advogados de defesa tentaram em vão aplicar o Direito Natural na defesa do acusado. A ficção também teve apoio fático no caso Queen vs. Dudley e Stephens (1884), entre outros.

O Direito Natural, à época, achava-se desacreditado pela maior parte dos juristas, vindo a renascer na hipotética decisão do jusnaturalista Foster. Para este juiz os réus estavam isolados em em ambiente alheio à convivência social, encontrando-se em “estado de natureza”, sendo-lhes isenta a aplicação da lei positivada.

O Positivismo, parceiro e inimigo cordial do Utilitarismo de Jeremy Bentham , foi aplicado pelo juiz Keen em cuja sentença defendeu a literalidade da lei. O fato, em sua ótica, típico e culpável, remetia à previsão legal do homicídio constante dos normativos daquela comunidade.

Embora a problemática geral do livro de Fuller se assente na dúvida sobre qual seria a aplicação mais adequada do Direito ao caso apresentado, pretende-se nesse trabalho observar as técnicas argumentativas utilizadas pelos juízes da Corte Suprema de Newgarth na prolatação das sentenças decisórias, identificando as correspectivas ideologias jurídicas de cada magistrado.

2 Contexto teórico

Para que se possa compreender as técnicas argumentativas produzidas nos argumentos usados nas decisões judiciais, torna-se necessário, pontuar algumas concepções teóricas.

É cediço que a linguagem está presente em todas as etapas do processo judicial, seja no nível estético, no qual o Direito se manifesta oralmente, seja no nível técnico, expressando-o - através da escrita - na composição dos autos e, especificamente, na prolatação da sentença. Isso ocorre por ser o Direito uma Ciência Social que prescinde da linguagem para exteriorizar-se.

E o que vem a ser sentença judicial? As sentenças, como dispõe o Código de Processo Civil, são uma espécie do gênero ato processual, caracterizando-se por ser atividade exclusiva do juiz, ao lado das decisões interlocutórias e dos despachos, como disciplina o art. 162. A definição precisa do CPC é que sentença é “o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não pelo mérito da causa”. Sentença, então, é decisão final do processo estruturada em procedimentos e padrões definidos em lei. Acórdão e súmula denominam o resultado do julgamento tomado pelo voto da maioria dos membros que integram os tribunais superiores.

A fundamentação, lastreada em argumentos, está inserta entre os procedimentos que devem ser observados pelos juízes, além do relatório e da citação do dispositivo legal.

Sendo mais claro, pode-se afirmar que argumento é o procedimento usado pelo autor do texto com vistas a direcionar o leitor para as teses defendidas pelo autor. No teor das sentenças, a argumentação deve se realizar pela via da jurisprudência, a qual determina as razões de decidir pelo provimento ou improvimento da ação. São os argumentos a base de sustentação das justificativas construídas pelos juízes da Corte Suprema de Newgarth.

Em relação à análise das técnicas argumentativas, procurar-se-á identificar os argumentos e classificá-los segundo a base de estudos de Perelman que ao levantar a questão, distingue três grandes grupos:

a) os argumentos quase lógicos que são tipos que vão buscar toda a eficácia persuasiva nos princípios lógicos à semelhança dos quais são construídos. Como exemplos têm-se: argumentos baseados na contradição e na incompatibilidade, na identidade e definição, na reciprocidade, na transititividade, na inclusão, divisão e na comparação, entre outros;

b) os argumentos baseados na estrutura do real são tipos que ao contrário dos argumentos quase lógicos que procuram se beneficiar de sua proximidade com princípios lógicos-matemáticos dos quais retiram força e credibilidade esses se constroem a partir não do que o real é, no sentido ontológico, mas do que o auditório acredita que ele seja, isto é, aquilo que ele toma por fatos, verdades ou presunções. Ilustram este tipo, os argumentos de relação de sucessão, de relação de coexistência, entre outros;

c) os argumentos que fundam a estrutura do real são aqueles que operam como que por indução, estabelecendo generalizações e regularidades, propondo modelos, exemplos, ilustrações a partir de casos particulares. As variantes deste tipo são: exemplo, ilustração, modelo, analogia e metáfora, etc.

3 Contexto fático

O fictício “Caso dos exploradores de cavernas” se inicia em meados de maio de 4299, quando cinco membros de uma sociedade amadorística de exploradores penetraram em uma caverna de rocha calcária no Condado de Stowfield. Quando já se encontravam distantes da entrada um grande desmoronamento bloqueou-lhes completamente a única saída. Seus familiares apreensivos com a longa ausência e falta de notícias, avisaram à sociedade e uma equipe de socorro foi enviada ao local.

A equipe de salvamento constata que o salvamento seria mais difícil do que se imaginava. Muitas pessoas e máquinas foram deslocadas para o local. Enquanto esperam o resgate, os exploradores fazem o contato por rádio com a equipe do socorro. Esta lhes avisa que o salvamento, em virtude das péssimas condições de tempo, só poderia ser realizado em, aproximadamente, dez dias.

Os homens ao descreverem suas condições físicas à equipe de socorro perguntam se conseguirão sobreviver tal período sem a ingestão de alimentos. Os médicos dizem-lhes haver poucas chances de a sobrevivência ocorrer e que, provavelmente, morrerão em decorrência da falta de alimentos antes das saídas serem desobstruídas.

Os confinados perguntam, então, se poderiam escapar da morte, caso um membro da equipe fosse sacrificado para fornecer alimento necessário à sobrevivência dos demais. Os médicos respondem relutantemente. Os homens arguem sobre as implicações causadas pela realização de um sorteio macabro para determinar quem deveria perder a vida. Ninguém no acampamento de busca e salvamento se dispõe a responder à pergunta. As comunicações são interrompidas.

No trigésimo terceiro dia, quando se conseguiu desobstruir os escombros e libertar os encavernados, uma vida havia sido ceifada. Os quatro exploradores foram denunciados, processados e condenados à morte pelo crime de homicídio pelo júri do Tribunal do Condado de Snowfield, incursos na N.C.S.A. § 12-A “quem quer que intencionalmente prive de outrem da vida será punido com a morte”.

A sentença gerou indignação entre os diversos segmentos da sociedade e insegurança entre os próprios julgadores que impossibilitados da isenção total ao julgar, aplicaram a pena, obedecendo puramente à letra da lei. Inconformados por não haverem praticado a justiça, solidarizaram-se com os réus apelando para a clemência do chefe do poder executivo. Neste ínterim, a defesa recorre em grau de recurso à Corte Suprema de Newgarth.

4 Votos dos magistrados: argumentos e ideologia

Tratando-se de matéria pertinente ao Direito americano, cujo povo representa o auditório das argumentações elaboradas pelos juízes do caso, é prudente tecerem-se breves considerações acerca do arcabouço legal vigente naquele país. Assim, o leitor nacional abstrairá na totalidade o entendimento dos fatos, desde que o ambiente jurídico vigente em Snowfield e Newgarth, não foi objeto da obra sob análise.

O país americano e os de origem anglo-saxônica adotam o sistema do common law, no qual o costume prevalece sobre o direito escrito. Ou seja: o direito norte-americano fundamenta-se mais nos usos e costumes do que no trabalho dos legisladores. A jurisprudência de seus tribunais (case law) são as principais fontes do Direito, base do surgimento das normas de conduta.

A Constituição americana e as primeiras dez emendas, formam o Bill of Right, a base dos procedimentos criminais garantidores de todos os direitos, liberdades e privilégios fundamentais do povo americano. Os estados e o governo federal possuem suas próprias normas de processo criminal, cujas normas de procedimentos são, geralmente, definidas pelos legislativos estaduais. A Constituição exige que, para declarar o réu culpado, o analisador dos fatos, seja ele o júri ou juiz, deve determinar que a acusação provou todos os elementos da defesa além de dúvidas razoáveis.

A Constituição não garante o direito de recurso a criminosos condenados, mas todas as jurisdições permitem pelo menos um recurso como direito e muitos estados possuem dois níveis de tribunais de apelações e dois níveis de recursos. Para alguns recursos de segundo nível, o tribunal tem o critério de ouvir apenas casos selecionados.

Na presunção de que os procedimentos jurídicos da nação hipotética se incluam nos parâmetros jurídicos dos Estados Unidos da América, passa-se à manifestação dos integrantes do julgamento do recurso de apelação.

4.1 O juiz Truepenny (Institucionalismo)

Em Direito não se pode abandonar o valor que têm as instituições jurídicas. Afere-se tal importância pelo dizer de Gusmão segundo o qual "as regras de direito, quando unificadas, constituindo um todo orgânico destinado a reger matéria jurídica vasta, compreendendo várias relações jurídicas, formam uma instituição jurídica. A família, o Estado, etc. são instituições."

E a instituições se sobressaem na formação e, principalmente, no cumprimento das regras de Direito, reforçando, a cidadania e a democracia, já que o indivíduo, unido a outros em instituições ou organizações, ganha força, potencializa seu poder de reivindicar, faz valer os seus direitos.

Inegavelmente, as pressões nascidas no meio social influenciam o legislador no seu trabalho de elaboração das leis. Em sendo assim, ao falar-se em institucionalismo, fala-se nas organizações, que, em maior ou menor grau, vão atuar junto aos legisladores, como lobbies, reivindicando, postulando, junto aos órgãos de poder (Judiciário, Administração Pública, Executivo, etc.) a fim de verem cumpridas as regras de direito. O que interessa aos postulantes dessa corrente é que o Direito saia do papel e se "realize" efetivamente, ou seja, que o Direito posto seja, em verdade, vivido.

Por evidenciar a preocupação de compartir a decisão com diferentes esferas do poder (primária, recursal e executiva), o Presidente Truepenny vincula-se a essa corrente, cujos membros seguidores desejam, acima de tudo, que o espírito da sociedade prevaleça praticando a justiça, “sem contudo debilitar a letra ou o espírito da nossa lei, e sem se propiciar qualquer encorajamento à sua transgressão” como previsto no ordenamento jurídico de Newgarth idealizada por Fuller.

Em sua discursividade argumentativa Truepenny ao enunciar: “o texto da nossa lei é bem conhecido: ‘Quem quer que intencionalmente prive a outrem da vida será punido com a morte’. N.C.S.A. (n.s.) § 12-A). Este dispositivo legal não permite nenhuma exceção aplicável à espécie”, pauta sua estratégia argumentativa no princípio da identidade que assim se anuncia: “A é A”, pressupondo que tal identificação lógica não está, obviamente, sujeita a discussão.

4.2 O juiz Foster (Naturalismo)

O Jusnaturalismo prega que o Direito é objeto de valoração inspirada num sistema superior de princípios ou preceitos imutáveis que se denomina Direito Natural (‘direito pressuposto’, como ensina do Ministro Eros Grau, do Supremo Tribunal Federal) .

O Direito Natural corresponde a uma justiça maior, anterior e superior ao Estado, posto que emana do próprio equilíbrio da natureza. Remete à observância necessária da equidade, não somente como elemento de adaptação do teor abstrato da norma ao caso concreto para atenuação de seu rigor. Inspira a temperança e o equilíbrio que devem nortear as decisões judiciais no sentido da promoção dos direitos humanos fundamentais e da construção da cidadania.

Juiz de ferrenha formação naturalista, no julgamento da apelação junto à Suprema Corte de Newgarth, Foster pronunciou-se pela inocência dos réus. Seus argumentos tiveram por base as seguintes premissas:

a) a primeira se inicia na questão de os exploradores estarem submetidos ao direito natural, não cabendo a eles a aplicação das leis de Newgarth. “Afirmo que o nosso direito positivo, incluindo todas as suas disposições legisladas e todos seus precedentes, é inaplicável a este caso e que este se encontra regido pelo que os antigos escritores da Europa e da América chamavam “a lei da natureza” (direito natural)” ;

b) a segunda procede da teoria de que a finalidade da lei não seria convenientemente aplicada. Sua consciência alcançava “algo” acima do destino dos desafortunados exploradores. O julgamento que se fazia era da própria legislação da Commonwealth.

c) a última, diz que os acusados embora tenham praticado ato de violação literal da lei o fizeram sob o manto da legitimidade, por agirem amparados pelo instituto da legítima defesa. E segundo um dos mais antigos aforismos da sabedoria jurídica, pode-se infringir a letra da lei sem violar a própria lei, se o faz em legítima defesa, como o fizera os acusados do caso sub judice.

Importante é recordar que a questão judiciária levantada no texto de Fuller se dá em consonância com o sistema jurídico prevalecente na América do Norte (common law). Entre este sistema e o brasileiro pode haver figuras semelhantes, nunca, porém, idênticas. No caso presente, os acusados, se no Brasil, estariam amparados pela excludente de ilicitude prevista no inciso I do artigo 23 e artigo 24, ambos do Código Penal: o estado de necessidade. Não pelo instituto da legítima defesa.

Depois de apreciado o despacho à luz das correntes jurídicas, e estabelecidas as linhas gerais da fundamentação, resta verificar em qual estrutura argumentativa se deu a sustentação do voto prolatado.

O juiz Foster, em diversos momentos de sua interpretação, recorreu à jurisprudência, apontando casos anteriores que estabeleceram regras norteadoras das decisões futuras. Em Commonwealth vs. Staymore, o réu deixou o carro estacionado em uma rua da cidade por várias horas, violando o dispositivo legal que diz incorrer em infração penal quem se utiliza do espaço público para a guarda de veículos por período de tempo superior ao previsto.

O réu tentou mover o carro, mas foi obstruído por uma passeata da qual não tinha interesse em participar e nem pudera prever. O tribunal rejeitou a condenação, reformando a sentença embora o caso se enquadrasse no enunciado literal da norma. Em Fehler vs. Neegas, os magistrados tiveram de decidir se em um dispositivo legal a palavra “não” fora transporta da posição em que devia estar. A Corte recusou-se a aceitar a interpretação literal da lei, retificando a linguagem do dispositivo.

Ao se utilizar de casos concretos, desejando deles formular regras para aplicação posterior, o juiz Foster nada mais fez do que estruturar o despacho em função de argumentos que fundam a estrutura do real, como o argumento por analogia.

Seguindo essa linha de raciocínio, a justiça deve tratar de maneira igual situações iguais. As citações de jurisprudência são os exemplos mais claros do argumento por analogia, que é bastante útil porque quem vier a apreciar o despacho será, de algum modo, influenciado pelo resultado abstraído das situações anteriores.

4.3 O juiz Tatting (Se abstem de julgar)

Este segundo julgador inicia seu processo argumentativo contestando o raciocínio do colega Foster. A seu ver, eivado de contradições e falácias. Contesta a “lei natural” realçada por Foster. Também, nega reconhecimento à afirmação de que os réus não violaram os dispositivos legais. Chega a sugerir que os argumentos oferecidos são intelectualmente infundados e completamente abstratos.

Pondo em discussão a justeza ou a veracidade da condenação ou da inocência, revela-se incapaz de afastar as dúvidas que o assediam. Não participa da decisão, pois sua mente se enredara de tal forma nas malhas da dúvidas que, por imperativo da consciência, deve-se abster de participar da decisão do caso.

Ao enunciar desta forma suas conclusões, ajusta o raciocínio, como no caso anterior, ao princípio da analogia, ao fazer alusão a julgados precedentes: Commonwealth vs. Parry, Commonwealth vs. Scape, Commonwealth vs. Makeover, Commonwealth vs. Valjean, e outros.

4.4 O juiz Keen (Positivismo)

O Positivismo Jurídico, ao afastar ou mesmo ignorar o Direito Natural e separar o Direito da valoração moral (idéia de justiça) de seu conteúdo, procura reconhecer como válido e justo somente o Direito Positivo vigente em determinada sociedade, fazendo dele uma super-norma, arbitrária e ilegítima, porquanto normalmente distante da realidade; além de transformar seu aplicador num artífice frio e tecnicista, repetidor de comportamento insensível e, não raro, prepotente.

Este sistema deidificador do bacharel exorciza o pensamento aberto e libertário – mas não menos responsável – do jurista.

O juiz Kenn é o positivista da Corte. Para ele, o papel do Judiciário não é dizer ao Executivo o que fazer (contrariando Truepenny). Esta propositura é negada ao juiz, mesmo que possa emitir opiniões como cidadão comum.

Considera, ainda, não ser papel do juiz determinar se as ações dos réus foram boas ou más, ou se a lei aplicada foi politicamente justa ou injusta, cabendo-lhe unicamente aplicar a lei.

Dentre os argumentos que fundamentaram sua decisão, realça-se o da transitividade, enquadrado no grupo dos argumentos quase lógicos.

O silogismo elaborado por Peralmam, segundo o qual “a transitividade é uma propriedade formal de certas relações que permite passar da afirmação que a mesma relação que existe entre os termos ‘a’ e ‘b’, e entre os termos ‘b’ e ‘c’, à conclusão de que ela existe entre os termos ‘a’ e ‘c’”, pode ser observado nesse mesmo argumento.

A partir da premissa maior “quem quer que intencionalmente prive outrem da vida será punido com a morte”, o juiz Keen faz derivar a premissa menor: “os réus privaram outrem da vida, intencionalmente”; a conclusão lógica não poderia ser diversa: “serão punidos com a morte”.

Assim, o juiz Keen - coerente com a ideologia de que a lei escrita (Direito Positivo) deve ser seguido, interpretado e aplicado à risca, privilegiando o princípio da segurança jurídica - confirma a sentença, não vendo espaço para múltiplas possibilidades ou definições no caso apreciado.

4.5 O juiz Handy (Pragmatismo)

O pragmatismo jurídico consiste na revivescência de um movimento preponderante na esfera jurídica norte-americana do início do século XX, o Realismo Jurídico (também conhecido como Jurisprudência Sociológica), introduzindo um conceito de Direito puramente instrumental. São três as características fundamentais que definem o pragmatismo jurídico:

a) o contextualismo implica que toda e qualquer proposição seja julgada a partir de sua conformidade com as necessidades humanas e sociais;

b) o consequencialismo, por sua vez, requer que toda e qualquer proposição seja testada por meio da antecipação de suas conseqüências e resultados possíveis;

c) por fim, o anti-fundacionalismo consiste na rejeição de quaisquer espécies de entidades metafísicas, conceitos abstratos, categorias apriorísticas, princípios perpétuos, instâncias últimas, entes transcendentais e dogmas, entre outros tipos de fundações possíveis ao pensamento.

Com a afirmação de que “...sabedoria prática a ser exercida em um contexto, não de teoria abstrata, mas de realidades humanas,” o quarto julgador, juiz Handy é orientado pelo Pragmatismo.

Desta maneira, confirma suas convicções, discutindo os argumentos utilizados pelos pares que o precederam, relacionados com o Direito Positivo, o Direito Natural, a letra e o propósito da lei, as funções judiciais e executivas, etc.

Em uma das fases de raciocínio, o juiz Hardy destaca o resultado de sondagem de opinião pública (O que você pensa que a Corte Suprema deva fazer sobre os exploradores de caverna?), onde expressivo número de pessoas manifesta-se favorável à libertação dos acusados:

Pela concepção de Perelman, o argumento acima ajusta-se ao tópico divisão do grupo de argumentos quase-lógicos, segundo o qual, a relação entre um todo e as suas partes está na base de dois tipos de argumentos que se operam acentuando ora a inclusão das partes no todo, ora a divisão do todo nas partes.

Tal concepção, obviamente, está presente no caso analisando pela ótica do juiz Handy. Para conferir eficácia à sua argumentação poe em destaque partes favoráveis da amostra (a sociedade), querendo convencer os interlocutores de que este é o pensamento da totalidade da população.

5 Considerações finais

Desde a publicação em 1949, a obra do professor Fuller, escrito na forma de voto de juízes que analisam apelação para determinar o destino de réus acusados de canibalismo, vem sendo recomendada aos principiantes do estudo do Direito. O interesse pela obra, todavia, vai além, e abrange grande número de interessados em diversos níveis.

Fuller pretendeu com a obra expor as várias teorias existentes sobre a natureza da lei e do raciocínio jurídico. Cada opinião dos magistrados ilustra uma ou mais dessas teorias. Mas além de permitir a compreensão das correntes filosóficas jusnaturalismo e juspositivismo, o texto aproxima o leitor dos ensinamentos de Chaim Perelman, no que respeita à argumentação, presente nos raciocínios embasadores dos votos dos juízes.

Pode-se afirmar que a fundamentação das opiniões apresentadas pelos juízes (como faria qualquer magistrado sujeito à common law, originária nos países de origem anglo-saxônica ou à civil law, proveniente da Europa e aplicada no Brasil), visa obter a maior aprovação possível dos interlocutores. E na busca desse resultado, nem sempre as soluções podem ser explicadas através da lógica puramente formal, expressa por silogismos.

No caso em apreço, observou-se que das estratégias argumentativas utilizadas pela magistratura daquela Corte predominaram técnicas que produziam argumentos baseados na estrutura do real e/ou nos que fundam a estrutura do real.

Os magistrados, à semelhança dos pares da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, fundamentaram suas decisões no corpus iuris secundum, predominando a estratégia argumentativa de analogia, embora outras tenham sido observadas em diversas fases das sentenças. No curso do trabalho, distinguiu-se as seguintes: identidade (juiz Truepenny), analogia (juiz Foster e Tatting), transitividade (juiz Keen), divisão (juiz Handy).

No que respeita às correntes jurídicas, viu-se o Direito natural como sendo aquele composto por princípios inerentes à própria essência humana, defendido pelo juiz Foster. O modelo positivista, defendido ferrenhamente pelo juiz Keen, é visto como a doutrina a acreditar que somente as normas têm importância e devem ser aplicadas no todo ou não ser aplicadas.

Outras escolas de menos visibilidade foram apreciadas como o Pragmatismo, segundo o qual o juiz pragmatista não interpreta apenas o caráter da lei e considera na sentença decisões alternativas, como demonstra a sustentação do juiz Hardy. O Institucionalismo, na parte preambular do juiz Truepenny, movimento protagonizado no âmbito jurídico por instituições, que atuam junto aos órgãos de poder, com reflexos estendidos aos planos social, político e jurídico, privilegiando a participação efetiva no da sociedade.

É óbvio que a aplicação do Direito Natural foi descartado e a sentença condenatória mantida, fazendo prevalecer os rigores máximos da lei, conforme a dogmática positivista. Quiçá, quisesse o autor, com tal desfecho, realçar o distanciamento havido entre a lei, sua vontade, aplicabilidade e aspirações da sociedade.

A dúvida que possa haver nesse sentido, pode ser dirimida ao ler-se a frase constante do quase encerramento dessa pequena, mas notável obra: “O caso foi imaginado com o único propósito de focalizar certas posturas filosóficas divergentes a respeito do Direito e do governo. Posturas estas que são hoje ainda as mesmas que se agitavam nos dias de Platão e Aristóteles. E talvez elas continuem a apresentar-se mesmo depois que a nossa era tenha pronunciado a propósito a sua última palavra.”

Chegado a termo, reconhece-se que o resultado obtido foi apenas rala tentativa de mostrar recortes do conteúdo de obra extremamente densa. Muitas gerações de estudiosos da Ciência do Direito se debruçarão, futuramente, sobre “O caso dos exploradores de cavernas”, fazendo dele objeto de inúmeras páginas de reflexão e discussão.

NOTAS

1 O navio americano William Brown partiu do porto de Liverpool para os Estados Unidos em 13 de março de 1841, com 82 pessoas a bordo entre passageiros e tripulantes. Acerca de 250 milhas de distância da costa de Terra Nova, o navio chocou-se contra um iceberg. Tripulação e passageiros foram divididos em grupos de pessoas. Os problemas descritos no caso surgiram no último barco que muito cheio fazia água. Para evitar o perigo de afundar, 12 homens foram jogados ao mar. Holmes foi sentenciado a seis meses no confinamento na solitária, e mais trabalhos forçados e ao pagamento de multa de $20. Sobre o assunto, sugere-se consultar In Further Speluncean Thoughts, Bill Long 8/31/05, Professor D'Amato's Three Law Profs. Disponível em < www.drbilllong.com/Jurisprudence/FurtherSpel.html>. Acesso em 04 mai 2006

2 Queen v. Dudley. Caso real de canibalismo ocorrido após o naufrágio do navio Mignonette do qual Thomas Dudley era capitão, também em 1884. In Further Speluncean Thoughts, Bill Long 8/31/05, Professor D'Amato's Three Law Profs. Disponível em < www.drbilllong.com/Jurisprudence/FurtherSpel.html>. Acesso em 04 mai 2006

3 O Utilitarismo é tipo de ética normativa, calcada nas obras dos filósofos e economistas ingleses do século XVIII e XIX Jeremy Bentham e John Stuart Mill, segundo a qual uma ação é moralmente correta se tende a promover a felicidade e condenável se produz a infelicidade, considerada não apenas a felicidade do agente da ação, mas também a de todos afetados por ela.

4 Sobre o tema vide CUNHA, Tito Cardoso e. A nova retórica de Perelmann. Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/cunha-tito-Nova-Retorica-Perelman.pdf>. Disponível em 05 mai 2006.

5 Quanto ao direito americano, vide JACOBS, James B. “Evolução da legislação criminal dos Estados Unidos. Disponível em < http://usinfo.state.gov/journals/itdhr/0701/ijdp/ie070102.htm>. Acesso em 05 mai 2006.

6 Gusmão, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 36.

7 Neste sentido vide GRAUS, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros Editores, 1996

8 FULLER. Lon L. O Caso dos Exploradores de Cavernas. p. 75.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília/DF. 31 dez 1940. Disponível em <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 05 mai 2006.

_________, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília/DF. 11 jan 1973. Disponível em <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 05 mai 2006.

CUNHA, Tito Cardoso e. A nova retórica de Perelman. Disponível em <http://www.bocc.ubi.pt/pag/cunha-tito-Nova-Retorica-Perelman.pdf>. Acesso em 05 mai 2006.

FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. 10 imp. Tradução do original em inglês e introdução por Plauto Faraco de Azevedo. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999.

GRAUS, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros Editores, 1996.

GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

JACOBS. James B. Evolução da legislação criminal dos Estados Unidos. Disponível em <http://usinfo.state.gov/journals/itdhr/0701/ijdp/ie070102.htm.>. Acesso em 05 mai 2006.

PERELMAN, Chaïm. Tratado da argumentação: A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

SOARES, Guido Fernando Silva. Para um panorama geral da common law. In Common law: introdução ao direito dos eua. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.