UM TEXTO EM FORMAÇÃO OU DUAS PALAVRAS SOBRE HERMENÊUTICA FENOMENOLÓGICA

Se no meio do caminho tinha uma pedra ou se havia uma norma no meio do caminho, o bom senso recomenda não esfolar o dedão do pé nas ranhuras agudas das pedras ou danificar a área de Wernicke [1] nas possibilidades pontiagudas de interpretação da norma.

A cautela ainda recomenda não andar sempre de cabeça baixa temendo tropeçar em pedras ou deparar-se com argumentação insidiosa de más interpretações da norma. Para o bom entendedor, meia palavra basta, diz o velho ditado popular. Mas a recomendação e a meia palavra bastariam, caso o ouvinte fosse um bom entendedor dos silêncios que guardam as palavras e meias palavras.

Jamais se saberá se o bom entendedor retirou do silêncio das palavras completas ou lascadas o que realmente se quis efetivamente transmitir. Ou seja, ninguém pode garantir que o ouvinte ou o intérprete tenham efetivamente compreendido o que o texto da norma (a palavra escrita na constituição) quer transmitir, mudando-se o contexto social em que foi criado.

Haverá sempre o desafio de uma redescoberta do que a norma construída por palavras ou no silencio do que a palavra encobre quis traduzir.

Assim, a constituição estará sempre aberta à leitura do não dito, guardando-se a atualidade do texto nas entrelinhas intraduzíveis. Ou seja, ler o que não está escrito, compreender o texto (as linhas) e os espaços em branco (entre as linhas do texto), ou, ainda, as palavras ou meias-palavras não ditas é o sagrado ou o segredo que a hermenêutica fenomenológica quer que seja desvelado pelo bom interprete, bom entendedor.

O já sabido é apenas o mapa que levará ao sentido do que ficou encoberto no silêncio das palavras expressas no texto constitucional. E não será esse o exato sentido que Lênio Streck quis que se entendesse do texto em que discorreu sobre o processo de se fazer hermenêutica?

Dessa forma, fazer hermenêutica é realizar um processo de compreensão do Direito. Fazer hermenêutica é desconfiar do mundo e de suas certezas, é olhar o texto de soslaio, rompendo-se tanto com (um)a hermenêutica jurídica tradicional-objetivante como de um subjetivismo advindo do (idealista) paradigma epistemológico da filosofia da consciência Com (essa)a (nova)compreensão hermenêutica do Direito recupera-se o sentido-possivel-de-um-determinado-texto, e não a re-construção do texto advindo de um significante-primordial-fundante; Assim, por exemplo,m não já um dispositivo constitucional que sejam, em si e pó si mesmo, de eficácia contida,de eficácia limitada ou de eficácia plena. A eficácia do texto do dispositivo advirá de um trabalho de adjudicação de sentido, que será feito pelo hermeneuta/interprete (evidentemente, a partir de sua inserção no mundo através da inter-subjetividade, isto é, “interprete”, aqui “não significa solipsismo).[2 ]

A fusão da consciência histórica com a intersubjetividade leva ao processo hermenêutico da compreensão. O bom entendedor (o consulente oracular de Hermes no STF), do ponto de partida da meia palavra, compreende e interpreta que a constituição sempre será a palavra e a meia palavra, mas nunca a única palavra), dirigida ao bom entendedor que é o intérprete e aos jurisdicionados que usufruirão dos direitos implícitos na norma.

O intérprete (compreendendo a explicitude ou o silêncio das palavras e meias palavras), assimila a norma constitucional com base em sua consciência histórica e em seus critérios humanos, produzindo a partir da interpretação a compreensão a ser aplicada ao direito.

Se não sobram palavras em algumas normas constitucionais, não se pode afirmar que não faltem em outras. O mundo é a linguagem, logo sendo o direito essencialmente linguagem ele é o mundo, mas não se concebe um mundo sem a compreensão-interpretação do bom entendedor-intérprete.

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Área de Wernicke é uma região do cérebro humano responsável pelo conhecimento, interpretação e associação das informações, mais especificamente a compreensão da linguagem. Graves danos na área de Wernicke podem fazer com que uma pessoa que escuta perfeitamente e reconhece bem as palavras, seja incapaz de agrupar estas palavras para formar um pensamento coerente, caracterizando doença conhecida como Afasia de Wernicke.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 11 ed. Ref., atual. E ampl. PortoA legre: Liv. do Advogado, 2014, p. 325.