AUTOS DA COMPADECIDA DEFESA CRIMINAL

Livros são autos [1] no processo de aprendizagem abertos à vista da opinião pública que, sem ser órgão acusatório, não declina da competência de contraditar a tese desenvolvida pelo autor. Uns e outros, livros e processos, requerem vários níveis de leitura aos quais se deve atingir, partindo da leitura rápida até chegar ao folheio sistemático, à leitura inspecional. Em outras palavras, a tese, a hipótese desenvolvida deve ser isolada, radiografada para assim se aprender e apreender o que o autor procurou transmitir em sua mensagem.

Aproveitando o recesso forense, fiz carga - para revisão - o processo findo: O julgamento de um serial killer (O caso do Maníaco do Parque – Com a palavra, o promotor), de Edilson Mougenot Bonfim, “príncipe do Tribunal do Júri, o demolidor de sofismas”. [2]

Os estilos de livros a respeito do Tribunal do Júri foram catalogados por René Arial Dottiem em três categorias. Uma que realça o sentido técnico e a orientação científica através da interpretação dos textos legais. [3]

Outra que engloba o registro dos debates e dos pronunciamentos jurisdicionais, oferecendo uma reprise do julgamento em todos os detalhes. [4] E a última, que registra a narrativa pormenorizada da instrução e do julgamento das causas. [5]

O livro em revista “Não contem um detalhado relato do ocorrido” como afirmado pelo autor, por não reproduzir com fidelidade o registro de gravações. [6] Contudo, “é um valioso mixtum compositum dessas tendências e desses modelos, com a vantagem de somar a técnica da informação científica, a precisão dos registros dos cases e a arte da narrativa”. [7]

A narrativa do livro gira em torno dos julgamentos dos crimes da competência do tribunal do júri praticados pelo Maníaco do Parque. Em primeiro julgamento, ele foi acusado pelo homicídio de A. N., tendo oficiado na acusação o Dr. Bonfim que, ao defender em plenário a tese da imputabilidade do réu, pediu aos jurados que o julgasse como pessoa normal e o condenasse à pena máxima. Na defesa atuaram os advogados Maria Elisa Munhol [8] e Lineu Evaldo Engholm.

Em plenário o perito criminal afirmou que o réu tinha consciência de que o ato praticado era criminoso, porém não conseguia controlar o impulso de matar. O perito defendeu a semi-imputabilidade. Por esta condição, o réu não possuía total discernimento do caráter ilícito do crime.

Baseada nas informações constantes do laudo e circunstâncias presentes nos autos, a defesa pediu aos jurados que julgassem o réu semi-imputável. A acusação criticou duramente o laudo já que, nessas condições, o réu poderia ser submetido à pena normal ou ser encaminhado a um hospital psiquiátrico.

No segundo julgamento, foram julgados os crimes de homicídio, ocultação de cadáver e estelionato praticados contra I. F. Na acusação funcionou o mesmo promotor e na defesa a advogada do júri anterior. As teses de acusação e defesa basearam nos temas debatidos no primeiro julgamento. No terceiro e último julgamento, o Maníaco do Parque, foi julgado pela morte de cinco mulheres e outros crimes, como ocultação de cadáver, estupro e atentado violento ao pudor. A tese de acusação foi defendida em plenário pelo mesmo promotor dos julgamentos anteriores e a defesa teve o comando da advogada que acompanhou o constituinte desde o início. A defesa, com base em um laudo psiquiátrico, tentou provar que ele era semi-imputável, o que poderia reduzir sua pena em até dois terços e permitir o cumprimento da pena em um manicômio. Quem já assistiu a algumas sessões do tribunal do júri percebeu que a atuação da acusação pauta-se em um roteiro, um itinerário predefinido, repetindo alguns argumentos que podem ser considerados típicos de acusação. Há casos em que se tem verdadeiras falácias que não constituem argumentos. Algumas táticas, estratégias e manobras ou argumentos jurídicos como se queira, desenvolvidos em plenário, podem provocar graves danos ao réu, à justiça e à própria comunidade, razão porque devem ser conhecidas.

Na esteira, o propósito do artigo é verificar a presença desses argumentos reconhecidos como típicos de acusação, no discurso do “mestre do júri”, do “maior expoente do Júri brasileiro”.

O primeiro argumento que se busca identificar no discurso acusatório é o da desqualificação ou desconstrução da defesa, mediante o uso de linguagem sarcástica, desdenhosa, deselegante, com frases compostas por insinuações e termos impróprios na dialética do Tribunal do Júri. De parte oral da acusação extrai-se:

“Essa voz calma, meiga, bem colocada da Douta Defensora esconde - mas revela! – uma profissional de extrema habilidade; foi ela a advogada – e aqui vai um elogio profissional – do Caso da Escola Base... Que não virou processo porque o MP pediu o arquivamento, portanto não houve uma defesa efetiva, mas ela acompanhava os suspeitos... Foi também a advogada (dirigindo-se à Defensora) de qual outro caso famoso? (Advogada) Fui junto com os primeiros do Bar Bodega... Mas isso ai é uma coisa que... (Dr. Mougenot Bonfim interrompendo) Caso do Bar Bodega... Então Sua Excelência é uma advogada, como se diz das “altas prateleiras”. Entra em casos de repercussão. Eu até observava e assistia as declarações de Sua Excelência na mídia e via o talento de suas manifestações. A revista Veja de São Paulo. De circulação nacional, coloca uma reportagem aqui (exibindo aos jurados) com o seguinte título e com uma foto da doutora defensora: O Desejo de Aparecer”. [9]

As palavras e frases destacadas afiançam a presença do argumento de desqualificação no discurso da acusação. [10] A escolha vocabular fez-se na intenção de provocar a instabilidade psíquica da defensora que, sensível ao golpe, poderia perder o ritmo da atuação. Tal artimanha poderia ter sido contida prontamente pelo juiz-presidente da sessão. O que não ocorreu. [10]

Em pequeno aparte, diga-se que a insinuação feita à defesa de “querer aparecer”, [11] ofertando serviços a criminosos envolvidos em casos de repercussão nacional, ganhou forma na forja da Folha de São Paulo que noticiou suposta disputa entre advogados para assumir o caso do maníaco:

“Quatro advogados disputavam ontem o direito de defender o acusado Francisco de Assis Pereira. Dois deles, Ubiratan Cássio de Alencar e Maria Elisa Munhol -os mesmos que atuaram como advogados de defesa nos polêmicos casos do bar Bodega e da Escola Base-, ganharam a queda de braços e passaram a defender Pereira desde ontem. Eles afirmam que assumiram o caso a pedido da família de Pereira.” [12]

Concessa máxima vênia, para outro aparte, esclarece-se que a possível significação dos termos grifados, abandonando o caráter implícito, passam para o explicito, quando jogada é sobre o costado dos defensores a suspeita de que tenha havido oferecimento de defesa gratuita com o simples propósito de “aparecer”.

Sabe bem a acusação que a locução “querer aparecer” é pejorativa, sinônimo de ostentação, falta de refinamento, expressões utilizáveis quando se deseja denegrir as práticas de alguém. [13] Para confirmar o sentido pejorativo do termo, veja-se:

“O marketing pessoal contempla várias ações que possibilitam a uma pessoa caminhar rumo ao sucesso. E escolas de sucesso são formadas por pessoas de sucesso. Utiliza-se de estratégias e ferramentas para obter o reconhecimento – e ser reconhecido é um enorme desejo humano. Entretanto, cabe esclarecer o que não caracteriza uma boa prática de marketing pessoal: falar bem de si mesmo, bajular o chefe querer aparecer, criar uma imagem falsa mascarando uma limitação ou maquinando uma qualidade.” [14].

Ainda. No caso do Bar Bodega frequentado pela elite paulistana a advogada não ocupou “as altas prateleiras”, defendendo os privilegiados economicamente. Defendeu com denodo a liberdade de um menor que, pela condição de marginal, foi acusado por crimes não cometidos. [15]

Ao verbalizar “Ninguém com a voz lavada em gargarejos líricos”, [16] a acusação prossegue na desconstrução gradativa da defesa. Na frase esconde-se – mas releva - velada ofensa, desta feita não mais à capacidade profissional, mas à condição de mulher.

A manobra frasal desejaria demonstrar que a advogada pelo fato de ser mulher deveria mudar o tom de voz ao patrocinar defesas no tribunal ou numa audiência que requeira sustentação oral? O som melífluo da voz feminina não se adequa ao sisudo ambiente do plenário do júri porque, sedutor qual canto de sereia, poderia aliciar juízes e acusadores? Pela condição de gênero, as advogadas não seriam bem vindas (ou bem vistas) ao salão dos passos perdidos?

A acusação segue sua aula nessa argumentação expondo-a em várias outras passagens da fala. Com mais virulência, até, ela se materializa no tópico ‘Brilho’, uma questão de polimento. De início, culpa a defesa por deslealdade processual ou por desconhecimento das regras processuais. Ao tirocínio da acusação, a defesa infiltrara assistente técnico na banca psiquiátrica. Adiante, na mesma trilha, expõe a advogada ao ridículo, com a leitura e repasse aos jurados de reportagem denunciando o anseio da advogada em querer aparecer, “querer brilhar”. [17]

Ora, aqui a acusação poderia esquivar-se, oferecendo em sua defesa, o fato de simplesmente transcrever trechos do que foi publicado pela mídia, evitando, o “chá morno de discursos adocicados”, “colocando pimenta na camomila.” [18] Talvez não cole a desculpa. Embora o assunto passe ao largo do que interesse ao processo, e muito menos à defesa esteja em julgamento, o tópico retorna adiante e até com grau maior de agressividade: “tem gente mais velha que se vangloria de estar brilhando!” O réu era moço, tinha pouco mais de vinte anos. A advogada, mais de cinquenta... A quem com a provocação pretendia atingir com o adjetivo velha e o verbo vangloriar?

Não se pode negar - e provar o óbvio é burrice - a acusação investiu diretamente contra a defesa representada pela mulher. Com qual sentido estaria a acusação desejosa de deslustrar, tirar o lustre, o brilho, da defesa diante dos jurados, impondo-lhe o interesse de querer brilhar?

O termo estaria na mesma acepção de brilho, o fulgor proveniente de Deus que de tão intenso ofuscava a luz proveniente do Sol e da Lua. A acusação reconhecia na defesa propensão à santidade, eis que o versículo em questão termina afirmando que os santos reinarão para todo o sempre e que a advogada pura em sua atuação se encastelaria num reino onde só os santos reinarão?

A acusação insinuava que a mulher advogada movia-se pelo brilho das trivialidades do cotidiano e que preenchia o grande buraco negro da vida com símbolos de status e poder que se obtém com exposição na mídia?

O julgamento do maníaco ocupou manchetes dos jornais do país inteiro e foi divulgado até no exterior. Assim o brilho referido realçaria a participação do profissional no júri que é “propício aos espetáculos da publicidade”, a exemplo do julgamento de Doca Street, homicida passional que foi defendido por Evandro Lins e Silva que em livro conta sobre o sensacionalismo inexplicável e inconcebível que recai sobre os julgamentos famosos: “Depois do julgamento, o advogado era identificado nas ruas, era cumprimentado, era reconhecido, façanha da televisão, com a divulgação e sua imagem”. [19]

Ou mais cáustica teria sido a acusação ao pretender que o brilho buscado pela advogada assemelhava-se ao brilho de Verônica Franco, cortesã herege dos fins do século XVI, brilho que representava uma das sete virtudes responsáveis pelo sucesso de várias cortesãs que se tornaram famosas? [20]

O sentido exato com que a acusação ensejou impressionar os jurados e o que o conselho de sentença entendeu com as palavras soltas ao vento, jamais se saberá...

Mas, diante dos fatos... A acusação contrariou as expressões do CPC, que em seu art. 15 dispõe ser defeso às partes e seus advogados expressões injuriosas? [20] Descobrindo-se a denotação do legislador para a locução expressões injuriosas, é que se pode chegar à conclusão pretendida. Para tanto, socorre-nos a jurisprudência baseada nas normas do processo civil:

“A locução ’expressões injuriosas’ a que se reporta o art. 15 do CPC não tem, apenas, o sentido que lhes dispensa a legislação penal, abrangendo, também, aquelas em que são denotativas de violação à urbanidade, ao tom elegante e cordial que deve predominar o debate forense, como no caso. II - Caracterizada a hipótese do referido art. 15 do CPC, cabe ao juiz, de ofício ou a requerimento do ofendido, mandar riscar as expressões injuriosas, afigurando-se incabível, contudo, a ordem de desentranhamento da petição em que foram lançadas.” [21]

Decerto não haverá acordo, mas com base na jurisprudência lida, houve sim, violação da urbanidade, ao tom elegante e cordial que deve predominar no debate forense.

Do argumento de passar aos jurados a imagem de imparcialidade do promotor de justiça, frise-se, e não de acusação, encontra-se evidência. Tome-se:

“Como a consciência precisa estar em paz e andar em dia com a verdade, é muito difícil que alguém diga “só a minha consciência me paga”. Cada um é movido por um interesse. O meu é claro, sou Promotor de Justiça, pago pelos cofres do Estado com o imposto, com o dinheiro que vem do recolhimento dos tributos dos cidadãos, sou compelido obrigado, e não convidado a aqui estar. Tenho, portanto, interesse em trabalhar, e não o faço gratuitamente. Sou pago, insisto, embora o queira fazer da melhor forma.” [22]

A argumentação consistente em indispor a defesa contra os jurados fez-se presente, também. O núcleo dessa estratégia é induzir os jurados na certeza de ser a acusação sempre parcial por defender os interesses de quem puder pagar. Ela aparece num tópico de muita criatividade.

Usando o artifício da indeterminação do sujeito, a acusação indaga como se partisse do povo a pergunta:

“Mas quem é que paga os advogados do réu?” Eu falei, “Eu não sei”. Alguém poderá dizer: “a minha consciência me paga”... Eu acho pouco porque é muito difícil alguém chegar aqui, dizer de consciência tranquila e voz lavada em gargarejos líricos que aquele homem é inocente ou der que se acredita que ele seja um louco, ou de que se tenha um carimbo chancelatório e definitivo dizendo: “a verdade é esta”. [23]

A estratégia que se apoia no argumento de autoridade, da autolegitimação, também assinou a folha de presença das táticas usuais da acusação. Nesta, a acusação realça a experiência acumulada e as qualidades que detém, opondo-se à inexperiência e aos pecadilhos da defesa. Claramente o intuito da acusação é passar a mensagem aos jurados: "Exerço a profissão há muitos anos, tenho experiência e qualidades de sobra e a defesa, o que tem?” Veja a digital:

“Minha história jurados, responde a esta maquinação armada. Se estuei, se me preparei, foi porque honro esta beca que um dia vesti, jurando exercer a defesa da sociedade. Não me tornei promotor para este caso, nem me improvisei como promotor do caso: é o repositório de anos de dedicação constante, de quem recusou inúmeros convites para se afastar do Júri – e até do Ministério Público -, mas daqui não saiu porque sabe que o dinheiro, o prestigio e o poder não podem valer mais do que a consciência honesta da prestação de um serviço social.” [24]

A acusação na sustentação aos jurados reforça ainda sua estratégia:

“Quando aceitei o encargo, eu não era um neófito na matéria de medicina legal e psiquiatria forense. Eu sou hoje o promotor de Justiça com exercício efetivo aqui, que mais tempo trabalha no Tribunal do Júri sem que tivesse me ausentado. Esta matéria não é minha desconhecida, modestamente eu fui um bom aluno de medicina legal nos meus tempos de faculdade e aprimorei-a na pratica e em novos estudos, nesses já longos anos de minha carreira profissional.” [25]

Também o recurso consistente em alternar situações que provoquem susto e tranquilidade no conselho de sentença perfilhou junto à tropa dos já apresentados. O propósito deste é levar os jurados à falsa crença de que a absolvição colocará em risco não só eles como a sociedade inteira. Havendo complacência, erro na marcação dos quesitos, o réu sairá pela mesma porta que os jurados, indo desfrutar a vida em perigosa convivência com os jurados e suas famílias.

O uso deste expediente aparece de forma sutil no tópico A piedade “irresponsável”, uma questão de interpretação da lei.

Neste caso, por exemplo, ainda que mereça muitos reparos, o fato é que temos uma lei que possibilita que o réu seja julgado normal, seminormal e anormal A mesma lei, bastando que o jurado decida – que é esta sua missão constitucional -, podendo faze-lo bem, ou enviesadamente. Se o jurado quiser dar um voto pela impunidade, o dará. Se o jurado quiser dar um irresponsável voto de confiança ao delinquente, o fará.

No que concerne ao uso do argumento falacioso de fazer com que os jurados acreditem ser responsáveis pela segurança pública e pela impunidade e que devem condenar o acusado no máximo da pena para dar exemplo à sociedade percebe-se claramente em enxerto extraído do tópico A falência do estado. A criminalidade.

Aquela segurança insegura, como a do Rio de Janeiro noticiada nesses dias pela televisão... O cidadão pode ligar para a casa de uma pessoa e dizer o seguinte: “Olhe, abandone a casa. Fuja com tudo, até com o papagaio se quiser, porque tenho um míssil antiaéreo apontado para sua casa” O Estado está falindo no combate à criminalidade. O júri é uma das resistências morais em que quem faz a lei para o caso concreto, quem baliza o julgamento, é o jurado. [26]

Nesse fragmento, verifica-se uma tentativa de enganar os jurados, pois o verdadeiro culpado pela falência do estado é o próprio estado, cujas autoridades que o compõe e administram até mesmo o acusador, integrante senão de um poder de um órgão assemelhado a poder, são incompetentes ou desidiosos na resolução das demandas da comunidade. Entre estas a contenção da criminalidade.

Expediente percebido também foi o usar o apelo à razão e à emoção como forma de convencimento dos jurados. Esse recurso em regra consiste em destacar o sofrimento dos familiares da vítima, sensibilizando os jurados que, compadecidos, dão-lhes o conforto da "resposta esperada” pela acusação. Esta estratégia estampa-se em trecho referente à defesa da vítima profanada:

“(...) a defesa enveredou pela técnica de questionar o comportamento da desditosa vitima perguntando por sua conduta, ao aceitar um convite de um estranho para ir ao Parque do Estado, Houve a natural e pronta interferência de Claudio F em candente protesto, gritando sua indignação da assistência, insistindo que sua filha, moça instruída, somente a força poderia ter sido levado para a floresta e a morte. Sai de minha tribuna e fiquei em pé ao seu lado, cruzei os braços e gritei: “Não basta matá-la, vai se querer também desonra-la? Não na minha presença, aqui tem promotor!”. Não abandonei, como não abandono, como não abandonarei jamais, a família vitimada.” [27]

Em outro momento a acusação recorreu à saudade e à presença da ausência, confirmando a adoção da estratégia:

“A dona Maria e sua família aguardam a decisão, o veredicto. Não é uma cobrança, não é uma exigência, é uma esperança, para que elas possam ter o direito de encerrar esta etapa em suas vidas. Eu via faz alguns anos algo escrito sobre a tristeza. E outro sobre a saudade. Saudade, a “presença da ausência”. [28]

Uma presença constante no nosso pensamento de quem não mais está entre nos. Houve quem escrevesse que “tristeza mesmo sente a mãe que arruma o quarto do filho que já morre”. Eu tenho certeza de que essa mãe sabe o que é tristeza ao arrumar a cama de sua filha, sabe a data do seu aniversário e se recorda todos os anos dele, e é capaz de reproduzir os gostos da garota... Uma garota que havia ido morar com a sua velha avó para fazer-lhe companhia, porque esta era viúva.

Do bornal de discurso de acusação, a acusação retirou também a estratégia de afirmar que o réu ou a defesa, na impossibilidade de negar a autoria, invariavelmente inventam desculpas. A acusação também sacou a estratégia da flacidez do modelo penal e do carcerário. Fez alusão à progressão de regime. Sugeriu privilégios do réu no sistema prisional, onde terá cama e comida grátis, pagas pela sociedade e assim pelos próprios familiares das vítimas. Que se a cadeia é ruim, não se compara ao cemitério, etc., etc., etc.

Claro que não se pode deixar de afirmar que também se percebeu ter a acusação explorada a prova dos autos. Fez, destacando as divergências existentes nos depoimentos e interrogatórios, sempre em busca de construir uma imagem negativa do réu e da defesa.

Em conclusão e de tudo quanto lido, fica que a acusação aplicou-se no jogo estratégico padronizado para ser jogado no plenário do júri. Jogo agressivo que, o mais das vezes, resvalou na falta de urbanidade, tangenciou a ética.

Ultrapassada a questão principal, resta, tão somente, acudir à periférica, que o leitor atento já deve ter percebido, desde o início. Para o título “Autos da compadecida defesa criminal” tomou-se de empréstimo o latinismo “auto”, na concepção teatral, [27] que nomeia a belíssima alegoria Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. [28]

Não à toa. É pertinente o empréstimo, por haver na representação alegórica, implicitamente questão ligada ao processo civil, baseado no Mercador de Veneza [29] e, bem explicitado, um processo penal. No salão dos passos perdidos, destacam-se Manoel, Compadecida e o Encourado, representando figuras togadas que atuam nos tribunais modernos.

Em um dos diálogos da peça, cabe à Compadecida a seguinte fala: “Isso dá certo lá no sertão, João! Aqui se passa tudo de outro jeito! Que é isso? Não confia mais na sua advogada?” Nessa passagem, descortina-se o papel de advogada, dado à Compadecida, “mulher em que tudo se mete”. Noutro, em que Manoel dirige-se ao Encourado tem-se: “Faça a acusação do bispo”. A denúncia surge de um grande livro que o Encourado vai lendo.

Dos enxertos depreende-se facilmente com quem os personagens do mundo ficcional se parecem no mundo real dos tribunais.

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Combinação dos sentidos de autos de um processo judicial e de auto, palavra que define uma peça teatral em forma poética, de origem medieval. A Compadecida é a própria Nossa Senhora que, bondosa e cândida, intercede por todos no Julgamento.

[2] Waldir Troncoso Peres, em discurso proferido em homenagem ao autor, por ocasião do lançamento da obra em 2000.

[3] Tome-se como exemplo: O júri e a Constituição de 1946 de Ary Franco; O júri de Hermínio Alberto Marques Porto; Teoria e prática do júri: doutrina, jurisprudência, questionários, roteiros práticos de Adriano Marrey, Alberto Silva Franco e Rui Stoco e Tribunal do júri: contradições e soluções de James Tubenchlak.

[4] Obra representativa do gênero: Os grandes processos do júri de Carlos Araújo Lima.

[5] Tem-se: Evaristo de Moraes e Mello Mattos, Os crimes passionais perante o júry; Roberto Lyra, Polícia e justiça para o amor; Romeiro Neto, Defesas penais; Evandro Lins e Silva, A defesa tem a palavra, entre outros.

[6] BONFIM, Edilson Mougenot. O julgamento de um serial killer (O caso do maníaco do parque). 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 109

[7] René Ariel Dotti. Disponível em: http://emougenot.com

/index.php/component/content/article/12-livros/15-juri-do-inquerito-ao-plenario. Acesso em: 04 jan.2015.

[8] Idem.

[9] O falecimento da advogada e professora Maria Elisa Munhol passou despercebido pela imprensa. O fato está noticiado em Morre Maria Elisa Munhol Disponível em: http://www.oabsp.org.br/noticias

/2010/11/07/6556. Acesso: 05 jan.2015.

[10] HEGENBERG, Leonidas. Argumentar; Flávio E.Novaes Hengenberg. Rio de Janeiro: E-papers, 2009.

[11] BONFIM, Edilson Mougenot. Op. cit.

[12] LAMBERT, Priscila. Maníaco do Parque. Assumiram o caso profissionais que cuidaram de casos como o da Escola Base e o do bar Bodega. Advogados disputam defesa de acusado. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff06089815.htm. Acesso em: 05 nov. 2015.

[13] MATTOSO, Cecilia Lima de Queiroz. Me empresta seu nome? Um estudo sobre os consumidores pobres e seus problemas financeiros. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. p. 54.

[14] Marketing educacional em ação [recurso eletrônico]: estratégias e ferramentas. Sonia Simões Colombo [et al.] Dados eletrônicos. Porto Alegre: Bookman. Artmed. 2008.

[15] BONFIM, Edilson Mougenot. Op. cit. p 200.

[16] BONFIM, Edilson Mougenot. Op. cit. p. 196.

[17] BONFIM. Edilson Mougenot. Op. cit. p. 200.

[18] BONFIM. Edilson Mougenot. Op. cit. p. 61.

[19] SILVA, Evandro Lima e. Defesa tem a palavra. 3. ed. Rio de Janeiro: Aide Ed. 1991. p. 297.

[20] GRIFF, Susan. Livro das cortesãs: um catálogo das suas virtudes. Editora Rocco, 2003.

[21] BRASIL. Lei n° 5869/73. Institui o Código de Processo Civil. Brasília, DF, jan. 1973. Art. 15. É defeso às partes e seus advogados empregar expressões injuriosas nos escritos apresentados no processo, cabendo ao juiz, de ofício ou a requerimento do ofendido, mandar riscá-las.Parágrafo único. Quando as expressões injuriosas forem proferidas em defesa oral, o juiz advertirá o advogado que não as use, sob pena de Ihe ser cassada a palavra.

[22] TRF-1 - AG: 18586 BA 2007.01.00.018586-2, Relator: Desembargador Federal Souza Prudente. Data de Julgamento: 31.03.2008. Sexta Turma. Data de Publicação: 28.04.2008 e-DJF1 p.145.

[23] BONFIM. Edilson Mougenot. Passim.

[24] BONFIM. Edilson Mougenot. Op. cit. p. 196.

[25] BONFIM, Edilson Mougenot. Op. cit. Passim.

[26] BONFIM, Edilson Mougenot. Op. cit. p. 197.

[27] BONFIM. Edilson Mougenot. Op. cit. p. 217.

[28] Composição dramática originária da idade média, com personagens geralmente alegóricas. Ver em: FERREIRA. Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed. Curitiba: 2004.

[29] SUASSUNA, Ariano, Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Pocket Ouro, 2001.

[30] SHAKESPEARE, William. O Mercador de Veneza. Trad. F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2007.

Texto inaugural do livro AUTOS DA COMPADECIDA DEFESA CRIMINAL: Reflexões de um advogado de água doce, aprendendo a pescar. Edição impressa e digital disponível em:

https://clubedeautores.com.br/livro/autos-da-compadecida-defesa-criminal#.XL98DDBKjIU