VOCÊ JÁ LEU O ARTIGO 26?

Não são poucos os causos e as estórias produzidas e repercutidas no dia a dia forense envolvendo juízes, promotores e advogados. As situações pitorescas tornam evidente o paradoxo entre a sisudez e a pompa do Judiciário e a jocosidade de determinados personagens partícipes dos episódios surgidos na busca da prestação jurisdicional.

Tais acontecimentos prestam-se o mais das vezes para criar uma auréola mitológica em torno de figuras como o inextinguível Quintino Cunha, advogado nascido no Ceará, que se notabilizou nos tribunais de muitos estados do norte e do nordeste brasileiros no início do século passado. Na função de rábula, provisionado pelas Comarcas de Manaus e Tabatinga no Amazonas, e depois atuando como advogado formado na primeira turma jurídica da Faculdade Livre de Direito, do Ceará, usou o humor cáustico e o pensamento ágil na defesa dos desvalidos e injustiçados o que lhe rendeu fama e o epíteto de Advogado dos Pobres.

Cresci ouvindo estórias fantásticas protagonizadas por Quintino Cunha. Em respeito à verdade, confesso que, a princípio, me deleitavam tão-somente as anedotas, as tiradas do Bocage cearense que a todos conquistava com alegria contagiante.

As estripulias jurídicas conquistaram meu interesse anos depois. À semelhança dos rios Negro e Solimões, conforme registrado em seu poema Encontro das águas, nossos destinos se cruzaram para formar o rio único e definitivo da felicidade do encontro pelo amor incondicional ao Direito, principalmente ao Direito Penal e ao Tribunal do Júri.

Nos idos dos anos 30, Quintino Cunha mantinha trânsito intenso entre Fortaleza, no Ceará e o Amazonas, estado setentrional onde se fixava temporariamente no distante município de Coari. A lenda de grande tribuno o precedia e não poucas vezes atuara nas pequenas comarcas paraenses e até no plenário do grande júri do Tribunal de Justiça da capital Belém.

É de lá que vem a causa ou o causo. Não se sabe ao certo, pois tudo o que envolve sua vida acha-se envolto em manto de mistério, coisas de Trancoso, parte do imaginário popular, a ele se atribuindo quaisquer acontecimentos hilários ocorrido em tribunais. [1]

Em impreciso ano da década de 30, Quintino Cunha que se encontrava em Belém de passagem, sabedor pelos jornais que um sujeito alcunhado por Cotovia precisava de defesa, correu para pedir que fosse ele nomeado advogado do acusado. À época era ainda mero rábula e a solicitação fizera-se as vésperas do julgamento, pois acusado se achava juridicamente indefeso. Nenhum advogado ou rábula local quis assumir a defesa. Tratava-se de crime de homicídio praticado contra certo adolescente que tivera a cabeça rachada por instrumento contundente, vulgarmente conhecido como banda de tijolo. O crime revoltara a cidade, por ser a vítima primogênita de influente comerciante.

Encerrada a fase do judicium accusationis saiu a pronúncia nos exatos termos da denúncia: homicídio voluntário simples de acordo com o Código Penal da época, mantida a segregação do réu. Apresentado o libelo-crime acusatório e sua contrariedade, o réu foi submetido a julgamento popular. [2]

Motivara o crime súbita e violenta reação ao apelido Cotovia que a molecada sabedora do desgosto do acusado em relação à alcunha o empregava sempre que o avistasse. Enraivecido, revidava atirando, além de impropérios, o que chegasse às mãos, paus, pedras e até os frutos caídos das frondosas mangueiras que arborizam as ruas da cidade. O desrespeito durou anos, até que em dia de triste memória, pedras e outros objetos contundentes foram arremessados contra os arruaceiros.

Um deles restou ferido na região nasal, orbitária esquerda, região labial e região frontal, ocasionando-lhe a morte por traumatismo craniano, como demonstrou o laudo cadavérico e levantamento pericial. Cotovia dera curso à reação tantas vezes prometida: “Termino acabando um feladaputa”.

Ocorre observar que, de acordo com as regras do primeiro Código Penal da República não eram considerados criminosos pessoas com perturbação de ânimo conforme a matéria das dirimentes previstas no artigo 27 e seus parágrafos 3º, 4º e 5º e das atenuantes do art. 42, §§ 1º, 7º e 10º. Outra razão de atenuação era a matéria prevista no art. 298 do texto que sugere o sentimento de honra.

Ainda de acordo com o ordenamento jurídico da época,

“(...) os indivíduos isentos de culpabilidade em resultado de afecção mental eram entregues às suas famílias, ou recolhidos a hospitais de alienados, se o seu estado mental assim o exigisse para a segurança do público”. Dada a repercussão do caso, o acusado que não batia muito bem, na acepção da cidade inteira, achava-se preso.” [3]

A sustentar a tese defensiva, Quintino poderia ter argumentado que o animus necandi não se evidenciara. Brotara o fato criminoso da violenta emoção provocada pelo achincalhe verbal proferido contra o réu, tudo de acordo com as regras daquela edição do Código Penal. Poderia ter arguido ser réu era louco e por isso irresponsável, poderia. Ao invés, enveredou pelos caminhos da jocosidade, pela senda pouco ortodoxa que o caracterizava e extasiava a assistência.

Após a sustentação do libelo-crime e a tese acusatória, Quintino Cunha, em sua intervenção nos debates orais, limitou-se a reiterar provocativamente o vocativo:

“Excelentíssimo Senhor, Doutor Juiz Direito dessa comarca. Senhores Jurados”. Diante da insistência e já na quinta ou sexta repetição, o juiz conhecendo a verve humorística de Quintino Cunha, receou ter a autoridade atacada. Tomado de ira, vibrando violentamente o martelo sobre a bigorna e, antes ameaçando cassar a palavra e mandar processá-lo por desacato, advertiu: “Doutor Quinino, chega, dessa brincadeira estúpida, incontinente, passe à defesa de sua tese!”

A estratégia do uso do sarcasmo, da ironia representada pela repetição abusada e intencional atingira o objetivo, o Juiz-presidente do Tribunal do Júri sucumbira à provocação. Então, diante da reação exasperada do magistrado, Quintino Cunha dirigiu-se ao Conselho de Sentença:

“Senhores jurados! Viram? Dirigi ao Doutor Juiz de Direito, homem íntegro e culto, provido de alto equilíbrio emocional uma simples frase elogiosa. E durante passageiros dez minutos. E mesmo de posse de suas faculdades mentais, o Doutor Juiz esboçou esse descontrole. Notem, Senhores Jurados, foram apenas elogios! Em dez minutos!”

Assumindo gesto teatral, apontou o réu, com a ponta da toga que segurava e concluiu:

“Agora, imaginem os senhores. O réu, triste mendigo, que vagueia pelas ruas pedindo, reconhecido como portador de imbecilidade nativa, [4] ser durante dias, meses, anos a fio, acanalhado, perseguido pela molecagem que nunca lhe deu trégua. Cotovia, Cotovia, Cotovia, a plenos pulmões expeliam o apelido tão detestável. Pensem nisso, senhores jurados”.

Quintino Cunha, com certeza, se motivara para aquela defesa por ter ele próprio sofrido vexames causados por apelidos. Nomeado juiz de comarca interiorana, famosa pelo dom dos comarqueanos de distribuir apodos, apostou que ali não seria apelidado. Ocorre que decorrente da idade trazia mirrada e engelhada uma das mãos. Não demorou muito e a choldra, a ralé, passou a chamá-lo mão de gengibre. [5]

Quanto ao veredito, se foi verdade, não sei. Mas se conta que ao final do julgamento Cotovia foi absolvido pela unanimidade dos jurados e Quintino Cunha, vingado interiormente dos que o acanalharam, saiu-se mais uma de fama fortalecida pelo reconhecimento da assistência que veio abaixo entre risos e aplausos. Quintino era do naipe de advogados que às vezes tornavam-se os principais personagens do processo. Um místico, um mágico, o típico advogado de defesa, como definira Evandro Lins e Silva os bons profissionais: “Todo grande advogado tem, no bom sentido, uma pitada de ‘místico’ porque a profissão é também um sacerdócio, e uma pitada de ‘mágico’, porque tem de ter criatividade para descobrir soluções nas causas aparentemente difíceis.” [6]

O ordenamento penal e processual daqueles idos, nas expressões de Alcântara Machado caracterizavam-se pela “balbúrdia, a incoerência, a falta de unidade, a incerteza” [7] e os juristas engalfinhavam-se corriqueiramente por reformas. Vivia-se tempos em que o judiciário se deparava diante do “grande desafio de “tratar desigualmente os desiguais” e não em estender a igualdade de tratamento jurídico-penal para toda a população”. Os desiguais, tanto ontem quanto hoje, definem-se como os amigos dos poderosos, detentores de privilégios, na lei ou fora da lei. A tudo que cheirasse injusto Quintino Cunha se opunha, usando o talento na tribuna em favor dos desvalidos, o que o afamou como Pai dos Pobres.

Se você já leu o artigo 26, na atual redação do Código Penal de 1940, alterado pela lei de 1984, reparou a semelhança havida entre suas disposições e as do artigo 27 de O Código Penal interpretado segundo as fontes, a doutrina e a jurisprudência e com referências aos projetos de sua revisão, Parte Especial, pelo advogado Dr. João vieira de Araújo, de 1902.

Os artigos reportam-se às condições de imputação de responsabilidade pela prática de fatos delituosos. Os atuais artigos 26, 27, 28 § 1º, 21, 20, § 1º, 22 primeira e segunda partes todos do Código Penal atual, alinham as excludentes de culpabilidade.

Os familiares da vítima de Cotovia, não fosse o processo caricato, mas composto de autos compulsáveis no plano da realidade, haveria de apelar em grau de recurso ao Tribunal de Justiça elevando a irresignação de que a decisão do conselho de sentença fora contrária à prova dos autos: antes do crime e da pessoa do criminoso julgadas foram a perspicácia, a criatividade, a fama do defensor.

O Tribunal de Justiça poderia anular o feito ou alterar o veredito popular, o que era possível, mercê da ausência de soberania do Júri popular no período de vigência da Constituição de 1937, a exemplo do famoso caso dos Irmãos Naves.

Transposto o caso para os dias de hoje, ainda seria possível a Quintino Cunha usar a técnica de convencer o conselho de sentença pela graça, teatralidade? Sim, porquanto é livre o convencimento dos jurados e o defensor durante a sustentação do debate pode exagerar na teatralidade para atrair e conquistar o aplauso dos jurados e da plateia. A oratória encenada pode invadir os umbrais do sisudo templo.

Até os grandes atuaram de modo teatral, como ilustra procedimento do notável Alberto de Carvalho. Em ocasião em que o promotor atacava o réu, retirou a beca e com ela encobriu a cabeça do acusado, para que as afrontas nele não colassem. E em brados berrava em latim: Reo res sacra est que em vernáculo significa o réu é coisa sagrada. [8]

A decisão poderia ser condenatória? A resposta cabível ao item é depende. Cotovia presumivelmente vagava entre inimputabilidade e responsabilidade diminuída. Sobre esta circunstância a estória silencia. O termo doido, para uma piada basta. Ocorre que o qualificativo doido, ontem e hoje, carrega conotação para muita loucura. O doido de pedra, o doido varrido, o borderline, o psicopata que naqueles idos não havia, arrumam-se todos dentro de único caçuá de caranguejos.

Em termos doutrinários, tome-se que o conceito de doença mental deve ser analisado em sentido ampliativo, abrangendo doenças de origem patológica e de origem toxicológica, conforme Nucci. [9] Também sobre a falta de especificidade, faz o médico Hélio Gomes o seguinte comentário:

“(...) as codificações sempre lutaram com grandes dificuldades toda vez que tiveram de fazer referências aos doentes mentais. Não há na Psiquiatria uniformidade entre os autores a respeito do sentido exato das expressões que usa e emprega. Essa falta de uniformidade entre os técnicos não poderia deixar de se refletir sobre os leigos, que são, em geral, os legisladores, a respeito das questões psiquiátricas.” [10]

Despertar o consulente para a dificuldade do enquadramento de portadores de doenças mentais às disposições do atual artigo 26 do Código Penal que trata da imputabilidade contrário senso e da inimputabilidade de modo expresso foi um dos objetivos do artigo.

A partir de uma boutade, pretendeu-se aguçar a curiosidade para a caducidade do dispositivo, diante do surgimento de novos padrões tecnológicos, a exemplo dos avanços das neurociências aplicadas ao direito penal que consegue ampliar o entendimento de eventuais danos cerebrais que possam afetar o discernimento do agente.

Envelhece o artigo 26 do Código Penal, logo ele, a chiave di volta, a pietra d'angolo a pedra angular que no centro equilibra a abóbada sobre as colunas do Código Penal.

O segundo alvo, não menos importante, foi prestar um tributo, reverenciar a memória do grande causídico Quintino Cunha, que durante muitos anos teve o nome associado somente às tiradas soltas aos ventos urbanos da Fortaleza antiga. No plenário do júri sua atuação sempre foi vista como anárquica. Era advogado cujo comportamento serviu, não à fama do profissional brilhante, mas ao aferrolhamento das portas do sucesso financeiro.

Você já leu o artigo 26? Não? Lembre-se: a ignorância é indigesta pro freguês...

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Esta história sem a identificação do advogado Quintino Cunha consta dos relatos de Evandro Lins e Silva nos seguintes termos: “Contava-se na época, até como pilhéria, o caso de um cidadão que tinha um apelido depreciativo. Ele passava, e um sujeito o chamava pelo apelido. Foi fazendo isso, até que um dia o cidadão perdeu a cabeça e reagiu. No julgamento do júri, o advogado teria usado um estratagema, que foi o de ir repetindo: - "Senhor promotor, senhor promotor, senhor promotor.", até haver uma reação, que afinal veio: - "Que diabo!" Aí o advogado aproveitou: - Está vendo? O homem tinha toda razão: - sofreu uma agressão moral diária, até que um dia não resistiu e repeliu o que era ofensivo à sua dignidade. Por muito menos o meu ilustre adversário não conteve a sua ira." Ver em SILVA, Evandro Lins. Salão dos Passos Perdidos: - depoimento ao CPDOC. Entrevistas e notas, Marly Motta, Verena Aiberti; edição de texto, Dora Rocha - Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Ed. FGV, 1997.

[2] O libelo crime acusatório e sua contrariedade desapareceram com o advento da Lei n.º 11.689/2008.

[3] ARAÚJO, João Vieira de. O código penal interpretado. Prefácio de Vicente Cernicchiaro. Ed. Fac-similar. Brasília: Senado Federal: Superior Tribunal de Justiça, 2004.

[4] O Código Penal em seu art. 277, enumera taxativamente todas as causas que dirimem da responsabilidade penal: (...) c — imbecilidade nativa. O Código Penal da Republica ampliou mais duas dirimentes que as estabelecidas pelo Código Criminal do Império, em seu artigo 10, que são: a imbecilidade nativa e a surdo-mudez, fechando assim uma grande lacuna que existia no antigo direito criminal brasileiro, visto não se poder enquadrar a imbecilidade nativa e a surdo-mudez, na expressão genérica, loucos de todo o gênero. Cf. VASCONCELOS, Vasco Smith de. As dirimentes do Código Penal. São Paulo: 1923.

[5] JÚLIO, Silvio. Terra e povo do Ceará. Revista Continente Editorial, 1978.

[6] SILVA, Evandro Lins. Defesa tem a palavra. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Aidé Ed., 1991. p.55

[7] MACHADO, Alcântara. Discurso proferido na sessão de instalação. Arquivos da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia, v. I, fasc. 1, p.13-17, fevereiro. Disponível em: http://www.nevusp.org/downloads

/down113.pdf Acesso em: 15 jan. 2015.

[8] SILVA, Evandro Lins e. Op. cit.

[9] NUCCI, Guilherme. Manual de Direito Penal: Parte Geral e Especial. 3. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

[10] GOMES, Hélio. Medicina Legal. 32. Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997. p. 79-80.