QUANDO PINS NUMBERS E OMEPRAZOL AJUDAM NO ENSINO DO DIREITO PENAL

Ao longo do período acadêmico sempre me manifestei favorável a que o mundo exterior pudesse ultrapassar os umbrais da academia, contribuindo com a formação dos aprendizes. Em seu mister, o corpo docente, extraindo fatos jurídicos relevantes noticiados pela imprensa, sujeitos à crítica do filtro intelectual, ensinaria ao acadêmico ansioso pela prática, como aplicar o direito.

Voto vencido, tornei-me autodidata, rato de bibliotecas e de sebos. Testemunhei situações em que colegas preocupados em decorar ou aplicar fórmulas esdrúxulas de como marcar os gabaritos do concurso vestibular tiveram dificuldades nas fases 1 e 2 dos Exames de Ordem. Ainda no nono semestre obtive aprovação, para mim, o método utilizado foi válido. Aprender não é decorar, nem se tornar especialista em métodos de gabaritagem de questões de múltipla escolha. Os casos reais em trânsito no âmbito forense não comportam soluções simplistas.

Não fui moldado ao feitiço da presunção e da jactância, o registro faço na intenção única de, com a experiência, estimular o acadêmico a exigir dos departamentos e do corpo docente das instituições de ensino superior uma grade curricular consentânea com suas necessidades, e que não o prive de uma educação em que a prática e a teoria se cruzem para gestar o bom profissional. Ademais, na segunda fase da OAB, presta-se exame para avaliar se os conhecimentos adquiridos permitem a análise jurídica perfunctória de um caso hipotético.

A reminiscência veio reacender-se em minha cabeça ao ter em mãos a matéria “Baseados em apelidos, grampos da Lava-Jato são nulos” onde a defesa de vários executivos de empreiteiras envolvidas na operação criminal conduzida pela Justiça Federal, ao criticarem métodos de apuração de provas e falhas na denúncia, buscam a anulação do processo.1

Das falhas apontadas pelos profissionais dos grandes escritórios dirigidos para a advocacia criminal, encontramos as seguintes mais interessantes. Os grampos autorizados que deram origem à operação ocorreram de modo “indefinido e descontrolado”, o que tornaria nula toda a origem da história. Segundo os defensores, as interceptações autorizadas pela justiça com intuito de averiguar os contatos dos primeiros investigados, ainda em 2013, se fizeram com base apenas em apelidos.

O Juízo autorizara a escuta de suspeitos cognominados Greta Garbo, Omeprazol, Primo e Matusalém, Silo, Rubens Speedfast, Fast GMX, Michelin, e o Juízo e pin numbers (números de aparelhos BlackBerry), sem determinação de quem seriam verdadeiramente os investigados.

Para eles, “A interceptação telefônica teve por objetivo identificar condutas criminosas que não estavam sendo investigada”. Com base no pressuposto, a defesa como estratégia recorre à teoria dos frutos da árvore envenenada, que considera ilícitas provas derivadas daquelas já produzidas ilicitamente, para desqualificar as provas e, por conseguinte toda a operação.”

Os advogados reclamaram, ainda, da falta de acesso à integra do material coletado, que permitiria a análise de detalhes das interceptações. Em Resposta à Acusação arguiram o “cerceamento de defesa por falta de acesso a documentos imprescindíveis para responder à acusação”. Em forma literal consta: “A exegese do enunciado supra conduz à inexorável conclusão de que todos os elementos de prova obtidos nos procedimentos investigatórios deverão estar documentados nos autos, pois somente assim o defensor poderá deles conhecer para, então, preparar a defesa”.

Não foi o que ocorreu pois (ainda é dos autos): “Iniciado o prazo para a apresentação da resposta à acusação, a defesa, com muita dificuldade, procurou conhecer todos os autos, informações e documentos mencionados na denúncia. O volume e a complexidade de dados causaram surpresa e, embora o esforço para estudar e “baixar” todos os autos mencionados, tal providência foi impossível. Isto porque não só diversos procedimentos citados na denúncia e que integram por conexão esta ação penal não estão disponíveis à defesa, como sequer os documentos indicados pelo MPF na denúncia se encontram acessíveis.”2

Por último, foi alegado que a denúncia não é clara no que respeita à época e localização de onde os clientes teriam ofertado propina para ganhar contratos. Não tem clareza também o valor pago ou a obra que originou o suposto ato de corrupção. Em suas argumentações defensivas os advogados postam-se no sentido de não bastar a afirmação de ter havido esta ou aquela conduta.

Consta da Resposta à Acusação “que não é dado ao Ministério Público fatiar a acusação, fragmentando-a de modo a criar artificialmente situações de bis in idem e, pior, dificultando o exercício da defesa ao impedir a visão do todo. Ao contrário, o comando claro dirigido ao órgão estatal incumbido da acusação no processo penal é o do art. 41 do CPP: “Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.” 3

Estas questões formam um conjunto formidável de assuntos a serem discutidos em sala de aula. Os debates poderiam girar em torno de quesitos tais se é possível que condutas de pessoas identificadas apenas por apelidos e sem qualificação possam ser investigadas por meio de escutas telefônicas. Se os advogados de defesa podem ter restringido o acesso aos cadernos de informações produzidas e o que ocorre com a falta de clareza da denúncia.

Em prova do VII Exame de Ordem Unificado OAB/Exame Unificado – 2011.1, consta questão sobre interceptação telefônica sem autorização judicial. As escutas levaram à representação pela busca e apreensão a ser realizada na residência suspeita, sendo tal diligência autorizada pelo Juízo competente. A questão versava sobre a admissibilidade ou não da busca e apreensão, e justa causa para o ajuizamento da ação penal. A resposta correta era aquela a afirmar que “A realização da busca e apreensão não é admissível, pois derivou de uma interceptação telefônica ilícita, aplicando-se a teoria dos frutos da árvore envenenada, não existindo justa causa para o ajuizamento da ação penal.”

No caso hipotético, a interceptação feita sem autorização é ilegal, bem como tudo que em decorrência dela foi obtido. Em casos reais, o tema provoca certa discordância na doutrina e na jurisprudência no que respeita às provas descobertas por acaso, a partir de uma interceptação telefônica. Isto é, a autorização fora para um fato específico e no cumprimento desta surgiu prova de fato diverso. Seria este a intenção do juiz ao mencionar os apelidos, em justiça aceita-se a prática de se jogar o verde para colher maduro?

Com a discordância dos advogados de defesa alinham-se diversos outros criminalistas, mas outros há que não veem como legítima a utilização de apelidos para individualizar pessoas, mesmo que os órgãos da persecução penal não disponham da identificação/qualificação dos investigados. No caso concreto, o Ministério Público e a defesa discordam da interceptação telefônica, mesmo que as autoridades, apoiadas em razões fáticas, tenham se visto impossibilitadas de fazer menção à identificação ou qualificação dos investigados.

No mesmo certame, consta um ponto sobre o segundo questionamento. Advogado recém formado, sem portar instrumento de procuração, dirige-se ao órgão investigado. A autoridade competente, em decisão escrita, indefere o postulado. A questão de múltipla escolha relacionava entre as repostas a que assegurava que o processo sigiloso é acessível a advogado portando instrumento de mandato. É correta por que de acordo com o art. 7º, XIII, do Estatuto da OAB (EAOAB – Lei 8.906/94), é direito do advogado examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo. No caso hipotético, somente com procuração o advogado terá acesso aos autos.

O acesso aos autos é uma das prerrogativas dos advogados, estando em consonância com as disposições do artigo 7, inciso XIII, da Lei 8.906/94. É um direito inclusive sumulado, como se ver no enunciado da Súmula Vinculante nº 14/STF.

Com efeito, em muitas decisões o Supremo Tribunal Federal tem se manifestado sobre o assunto, como citado em sede de Resposta à acusação. “Não é à toa que ‘para implemento da defesa prévia, tem-se como indispensável possibilitar ao acusado a visão do conjunto de elementos até então levantados, contrários e favoráveis, sob pena de ela ficar, tal como contemplada na Lei n. 8.038/90, inviabilizada’. 4

No mesmo sentido, “(...) o presente caso põe em evidência, uma vez mais, situação impregnada de alto relevo jurídico-constitucional, consideradas as graves implicações que resultam de injustas restrições impostas ao exercício, em plenitude, do direito de defesa e à prática, pelo Advogado, das prerrogativas profissionais que lhe são inerentes (Lei 8.906/94, art. 7º, incisos XIII e XIV). (...) O que não se revela constitucionalmente lícito, segundo entendo, é impedir que o indiciado tenha pleno acesso aos dados probatórios, que, já documentados nos autos (porque a estes formalmente incorporados), veiculam informações que possam revelar-se úteis ao conhecimento da verdade real e à condução da defesa da pessoa investigada (como no caso) ou processada pelo Estado, ainda que o procedimento de persecução penal esteja submetido a regime de sigilo. Sendo assim, em face das razões expostas, e considerando, ainda, os fundamentos que venho de mencionar, defiro o pedido de medida liminar, em ordem a garantir, ao ora reclamante, por intermédio de seu Advogado regularmente constituído (...) o direito de acesso aos autos de inquérito policial no qual figura como investigado (...)." 5

No Exame de Ordem OAB/FGV 2010.2, há uma questão que trata de denúncia, explicitada na situação em que uma pessoa fora acusada pela prática do crime de furto (CP, art. 155). Pela narrativa dos fatos, ele subtraíra joias da vítima. Segundo a Banca, no curso da instrução processual uma testemunha relata fato não narrado na denúncia.

A resposta para esta questão suscitou discussão entre os especialistas, pois se alegou que além da assertiva apontada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) como correta (absolver o acusado), a assertiva que admite “anular a sentença” também estaria correta. Não se vai aqui atribuir valor à questão. Dela nos servimos para comprovar o interesse da banca no tópico sob exame.

Isso posto, diga-se que a denúncia é a peça com a qual se inicia a ação penal pública, condicionada ou incondicionada. A denúncia traz em seu bojo a imputação do fato, permitindo que o réu dele se defenda. Deve ser clara, porquanto uma denúncia mal formulada prejudicará a tramitação do feito e poderá levantar inúmeras nulidades, dificultando que a persecução penal chegue a um bom termo. O réu jamais poderá ser condenado por um fato que estiver fora da denúncia.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já afirmou que a “perfeita descrição do comportamento irrogado na denúncia é pressuposto para o exercício da ampla defesa. Do contrário, a peça lacônica causa perplexidade, prejudicando tanto o posicionamento pessoal do réu em juízo como a atuação do defensor técnico”. 6

Pontuadas as estranhezas apontadas na matéria jornalística, há de se dizer por fim que quando a imprensa noticia ação penal com “várias situações de marcante ilegalidade, onde o insólito virou uma espécie de marca registrada”, perdem os professores excelente oportunidade de levar o debate para dentro das arcadas da academia provocando a reflexão dos acadêmicos com aspectos materiais, processuais do direito penal e com as estratégias adotadas pela acusação e pela defesa que vão além dos currículos regulares.

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. LUCHETE, Felipe. Omeprazol e Matusalém. Baseados em apelidos, grampos da “lava jato” são nulos, dizem executivos. Revista Consultor Jurídico, 29 jan. 2015. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2015-jan-29/baseados-apelidos-grampos-lava-jato-sao-nulos-defesa. Acesso em 30 jan.2015.

2. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/defesa-toron-ricardo-ribeiro-pessoa-utc.pdf. Acesso em: 30 jan. 2015.

3. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/defesa-vilardi-camargo-correa.pdf. Acesso em: 30 jan. 2015.

4. Voto do Min. MARCO AURÉLIO no HC nº 91.207.

5. Rcl 8.225-MC, rel. min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 26-5-2009, DJE de 1-6-2009.) No mesmo sentido: Rcl 12.793-MC, rel. min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 20-10-2011, DJE de 25-10-2011; Rcl 8.770-MC, rel. min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 16-9-2011, DJE de 23-9-2011; Rcl 8.368-MC, rel. min. Ricardo Lewandowski, decisão monocrática, julgamento em 9-6-2009, DJE de 16-6-2009

6. STJ, HC 164.248/RR, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 01/12/2011, DJe 14/12/2011.