Caso Carrie Buck
Professora Sílvia M. L. Mota
Este caso, ocorrido no ano de 1927, é relatado por diversos autores, como prova de cruel injustiça no campo da discriminação genética humana.
Nascimento
Carrie Elizabeth Buck nasceu em Charlottesville, Virginia, no dia 2 de julho de 1906, sendo a primogênita de Emma A. Harlow Buck. Seguiu-a a meia-irmã Doris Buck e o meio-irmão Roy Smith. Pouco se sabe sobre a sua mãe, além de que era pobre e casada com Frank W. Buck, que morreu quando Carrie era muito pequena. Lê-se também, que, em abril de 1920, o Estado da Virgínia considerou a mãe de Carrie Buck uma débil mental, termo vago, que representava menos uma descoberta médica do que um reflexo da aversão dos examinadores por seu comportamento sexual. Considerada incapaz de gerir a sua própria vida, Emma foi recolhida na Virginia State Colony for Epileptics and Feeble-Minded, em Lynchburg, onde permaneceu internada até o fim da sua vida.
Em decorrência do histórico de vida da mãe, aos três anos de idade, Carrie Buck foi retirada do convívio materno e acolhida e criada pela família do oficial de justiça de Charlottesville, J. T. Dobbs. Ao longo dos anos, Carrie nunca apresentou quaisquer sinais de deficiência e o seu desempenho escolar era considerado muito bom. Quando cursava o sexto ano escolar, os Dobbs tiraram-na da escola para que se dedicasse exclusivamente aos afazeres domésticos. Sem rebeldia, Carrie era geralmente emprestada pelos Dobbs para serviços gerais nas casas dos vizinhos. E assim, como uma boa menina, viveu no lar que a acolhera, servindo-os nas mais variadas tarefas até o verão de 1923.
Estupro e gravidez na adolescência
Aos 17 anos de idade, Carrie Buck descobriu-se grávida. Questionada sobre o ocorrido, revelou que fora obrigada ao ato sexual por um sobrinho dos Dobbs, que prometera se casar com ela. Os Dobbs fizeram ouvido mouco às explicações, convictos de que o infortúnio era uma evidência da promiscuidade, debilidade mental e comportamento incorrigível por parte da jovem. Sendo assim, através de um requerimento de internação, encaminharam-na ao juiz Shackleford, sob a alegação de que se tratava de uma débil mental epiléptica. Ao avaliar o caso, o juiz Shackleford não vacilou em condená-la. Carrie Buck foi recolhida na Virginia State Colony for Epileptics and Feeble-Minded, em Lynchburg, no dia 4 de junho de 1924 e, alguns dias depois, em 17 de junho de 1924, entrava em vigor, no Estado da Virgínia, a Lei de Esterilização.
A filha de Carrie Buck nasceu em 28 de março de 1924 e, em 4 de junho do mesmo ano, a exemplo da sua mãe, a jovem deu entrada na colônia de Lynchburg. Os Dobbs levaram a criança, oferecendo-lhe o nome de Vivian Alice Elaine Buck, talvez, constrangidos e moralmente comprometidos, em decorrência do estupro de Carrie por um dos seus familiares.
O julgamento e a esterilização involuntária
Quando o Estado da Virginia aprovou a lei da esterilização compulsória, Carrie Buck estava com dezoito anos de idade. O Superintendente da Colônia, Dr. Albert Priddy, defensor ardoroso da esterilização eugenista e um dos colaboradores da Lei de Esterilização Estadual, submeteu-a a um teste de inteligência e, após determinar que a sua idade mental era de nove anos, catalogou-a como débil mental e delinquente moral, além de recomendar à junta diretiva que a jovem fosse esterilizada. Dessa forma, Dr. Priddy formalizou o processo contra Carrie Buck, usando-a como teste para a nova lei de esterilização do Estado. Como a intenção era levar o caso à Corte Suprema, a mesma junta se encarregou de designar como defensor de Carrie o Dr. Irving Whitehead, antigo membro da junta e íntimo amigo de Aubrey Strode, que representou a Colônia. De fato, a junta pagou os honorários de Whitehead, que se revelou um defensor incansável de Carrie Buck. Em fevereiro de 1925, o juiz Gordon autorizou a esterilização, mas Whitehead apelou e conseguiu que o caso chegasse à Corte Suprema [1], o que ocorreu em abril de 1927. No dia 2 de maio do mesmo ano, o tribunal decidiu que a Lei de Virginia era constitucional e que Buck deveria ser esterilizada para evitar o nascimento de mais indivíduos “defeituosos”. Oito dos nove jurados votaram a favor da esterilização de Carrie. [2]
Ao expressar a opinião da maioria com respeito à decisão, o magistrado Oliver Wendell Holmes, da Suprema Corte norte-americana, exarou o seguinte veredito:
“Temos visto em mais de uma ocasião que o bem-estar público pode exigir o sacrifício da vida de seus melhores cidadãos. Seria estranho que não pudesse exigir a força do Estado menores sacrifícios, percebidos com frequência como importantes pelas pessoas afetadas, a fim de evitar que a incapacidade inunde nossa existência. É melhor, para o conjunto do mundo, que em vez de ter que chegar a executar a uns descendentes degenerados devido às suas ações delitivas, ou deixá-los morrer de fome devido à sua imbecilidade, a sociedade possa impedir que aqueles que estão manifestamente incapacitados sigam propagando sua própria espécie. O princípio que apoia a vacinação obrigatória é bastante amplo para justificar a ablação das trompas de Falópio [...].” [3]
Em frase muito citada, concluiu o juiz: “[...] três gerações de imbecis são suficientes.” [4] Isso, sem o cuidado de verificar se Carrie Buck, sua mãe Emma e sua filha Vivian sofriam efetivamente de “debilidade mental” ou de qualquer outra condição hereditária. [5]
No início do processo, enquanto aguardava a decisão do juiz, Dr. Priddy morreu vitimado por um câncer no sistema linfático e o seu assistente, Dr. J. H. Bell, substituiu-o na esterilização de Carrie Buck [6], que aconteceu em 19 de outubro de 1927. Por esse motivo, o caso passou para a história como Buck v. Bell.
A esterilização de Carrie foi sucedida por cerca de 8.300 outros virginianos, incluindo-se no feito, a esterilização da sua meia-irmã mais nova. Todos foram esterilizados sob a lei do estado, entre 1927 e 1972.
Deve-se salientar que, na maioria dos estados onde foram aprovadas, as leis de esterilização focaram somente internos das instituições públicas para “débeis mentais”. Portanto, excluíram as pessoas internadas em instituições privadas. [7] As leis visavam pobres e minorias. Ao todo, oficialmente, mais de 60 mil pessoas foram esterilizadas compulsoriamente nos EUA, devido aos esforços dos eugenistas norte-americanos.
Mas, por que Carrie Buck foi escolhida?
A mãe de Carrie fora internada na mesma instituição alguns anos antes, aparentemente, em decorrência da prostituição e de outras condutas socialmente inaceitáveis; sua filha Vivian, observada por uma enfermeira com a idade de oito meses, foi diagnosticada como débil mental, porque a enfermeira considerou que a menina tinha um olhar estranho. [8] Essa evidência de transmissão genética foi a chave para ilustrar a necessidade de um estatuto de esterilização involuntária.
Comprovação da injustiça
Mais tarde, as previsões relacionadas com o caso Carrie Buck demonstraram inexatidão. Vivian, a sua filha ilegítima, considerada a terceira geração de imbecis, participou do ensino fundamental público de Charlottesville Venable por quatro mandatos, de setembro de 1930 até maio de 1932. Era de inteligência média, muito acima de debilidade mental e morreu um mês depois de completar oito anos de idade, em 3 de julho de 1932, vitimada por colite entérica, uma doença intestinal.
Carrie Buck, acusada de ser a segunda geração de imbecis, foi posta em liberdade condicional depois de ser cirurgicamente esterilizada. Enviada para o povoado Bland County, para trabalhar com uma família, casou-se em 14 de maio de 1932 com William D. Eagle, um carpinteiro viúvo, que morreu em 23 de julho de 1941. Tempos depois, em 25 de abril de 1965, Carrie casou-se com Charles A. Detamore, de Front Royal. Amigos, parentes e profissionais que a conheciam reconheceram mais tarde a imprecisão do diagnóstico de retardo mental. Durante a maior parte da sua vida, Carrie Buck foi independente e útil para outras pessoas.
Morte
Carrie Buck Águia Detamore morreu em 28 de janeiro de 1983, em uma casa de repouso em Waynesboro e foi enterrada no Cemitério Oakwood, em Charlottesville. Vivian Dobbs, a filha de quem foi separada pouco depois de dar à luz, encontra-se enterrada em morro adjacente.
A prática da esterilização involuntária não cessou em instituições da Virginia até 1972 e o ato que a permitia permaneceu nos livros até abril de 1974.
Carrie Buck passou para a história como a primeira pessoa submetida à cirurgia de esterilização involuntária, ao amparo da lei Virginia Sterilization Act of 1924, que permitia impor a esterilização às pessoas diagnosticadas como incapacitadas, rotulando-as a partir da possibilidade de transmitirem à sua prole deficiências físicas, psicológicas ou sociais. Injustiça, que mancha a história.
Tradução da Lei de Integridade Racial, da Virgínia [9]
Original: 1 - 2
A Lei da Integridade Racial, de 1924, do Estado da Virgínia, Estados Unidos, exigia que a classificação racial das pessoas fosse registrada ao nascer e proibia o casamento entre pessoas brancas e não-brancas, exceto com mistura de sangue de branco e dezesseis avos ou menos de sangue de índio americano. A lei foi a mais famosa norma de proibição de miscigenação dos Estados Unidos. Foi revogada pela Suprema Corte do país, em 1967, no caso Loving versus Virgínia.
1. Que seja esta promulgada pela Assembleia Geral da Virgínia, Que o registrador do Estado de estatísticas vitais deve, logo que possível, após a produção de efeitos deste ato, preparar um formulário sobre a qual a composição racial de qualquer indivíduo, como caucasiano, negro, mongol, índio americano, indiano asiático, malaio, ou qualquer mistura dos mesmos, ou quaisquer outras estirpes não-caucasianas, e se há qualquer mistura, então, a composição racial dos pais e outros ancestrais, na medida em que determinável, de forma a mostrar em que geração tal mistura ocorreu, possa ser certificada por tal indivíduo, sendo que o formulário deve ser conhecido como um certificado de registro. O registrador do Estado pode fornecer para cada registrador local, um número suficiente de tais formulários para efeitos do presente ato; cada registrador local pode, pessoalmente ou através de representante, o mais rapidamente possível depois de receber tais formulários, fizer nele em duplicata um certificado da composição racial, conforme anteriormente mencionado, de cada pessoa residente em seu distrito, que assim o desejar, nascida antes de 14 de junho de 1912, cujo certificado deve ser feito através da assinatura da referida pessoa, ou, no caso de crianças menores de quatorze anos de idade, com a assinatura de um dos pais, tutor ou outra pessoa na posição dos pais. Um dos referidos certificados de cada pessoa assim registrada em todos os distritos deve ser encaminhado ao registrador do Estado para os seus arquivos; o outro deve ser mantido em arquivo pelo registrador local.
Cada registrador local pode, logo que possível, ter tal certificado de registro feito por ou para cada pessoa em seu distrito que assim o desejar, nascida antes de 14 de junho de 1912, para as quais ele não tenha em seu arquivo um certificado de matrícula, ou uma certidão de nascimento.
2. É um crime qualquer pessoa intencionalmente ou conscientemente fazer um certificado de matrícula falsa quanto à cor ou raça. A fabricação intencional de um registro ou uma certidão de nascimento falsa será punida por confinamento na penitenciária por um ano.
3. Para cada certificado de registro feito corretamente e devolvido para o registrador do Estado, o registrador local, que retornou o mesmo terá direito a uma taxa de vinte e cinco centavos, a ser paga pelo registrando. O pedido de registro e de transcrição podem ser feitos diretamente ao registrador do Estado, que pode manter a taxa para despesas de seu escritório.
4. Nenhuma licença de casamento deve ser concedida até o funcionário ou vice-secretário ter garantia razoável de que as declarações sobre a cor tanto do homem quanto da mulher estão corretas.
Se houver motivos razoáveis para não acreditar que os candidatos são de raça branca pura, quando esse fato é afirmado, o funcionário ou vice-secretário deverá reter a concessão da licença até prova satisfatória ser produzida de que ambos os candidatos são “pessoas brancas”, como previsto no este ato.
O funcionário ou vice-secretário deve usar o mesmo cuidado para assegurar-se de que ambos os candidatos são de cor, quando tal fato é alegado.
5. Daqui em diante será ilegal para qualquer pessoa branca neste Estado se casar com qualquer outra exceto pessoa branca, ou pessoa com nenhuma outra mistura de sangue que não de branco e índio americano. Para efeitos da presente lei, o termo “pessoa branca” aplica-se apenas à pessoa que tenha nenhum vestígio de qualquer sangue que não caucasiano; mas as pessoas que têm um dezesseis avos ou menos do sangue do índio americano e não têm outra sangue não caucasiano devem ser consideradas pessoas brancas. Todas as leis aprovadas até o presente e atualmente com efeito sobre o casamento entre pessoas brancas e de cor são aplicáveis aos casamentos proibidos por este ato.
6. Para a realização dos fins desta lei e prestar a assistência clerical necessária, postagem e outras despesas do registrador do Estado das estatísticas vitais, vinte por cento das taxas cobradas pelos registradores locais sob este ato serão pagas ao departamento de Estado de estatísticas vitais, as quais podem ser gastas pelo referido departamento para efeitos deste ato.
7. Todos os atos ou partes de atos incompatíveis com este ato estão, na medida de tal inconsistência, por este meio revogados.
Notas
[1] MOROS PEÑA, 2014, n.p.
[2] MOROS PEÑA, 2014, n.p.
[3] SMITH, 1993, p. 171-172.
[4] SMITH, 1993, p. 171-172. Também: CARRIE Buck (1906–1983), 2016.
[5] LOMBARDO, 1985, p. 30-62.
[6] MOROS PEÑA, 2014, n.p.
[7] KEVLES, 1995, p. 132.
[8] KEVLES, 2011, p. 328.
[9] LEIS..., 2016.
Referências
BUCK V. BELL, 274 U.S. 200 (1927). Justia: us Supreme Court, Mountain View, CA. Disponível em: https: /supreme.justia.com/cases/federal/us/274/200/case.html#207. Acesso em: 15 out. 2016.
CARRIE Buck (1906–1983). Encyclopedia Virginia, Ednam Drive, Charlottesville, VA. Disponível em: http://www.encyclopediavirginia.org/Buck_Carrie_Elizabeth_1906-1983. Acesso em: 18 out. 2016.
GOULD, Stephen Jay. Carrie buck’s daughter. Constitutional Commentary, v. 2, n. 2, p. 331-339, Summer 1985. University of Minnesota Law School. Retrieved from the University of Minnesota Digital Conservancy. Disponível em: https://conservancy.umn.edu/handle/11299/164572. Acesso em: 19 out. 2016.
KEVLES, Daniel J. From eugenics to patents: genetics, law, and human rights. Annals of Human Genetics, University College London, v. 75, p. 326-333, 2011. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1469-1809.2011.00648.x.... Acesso em: 20 out. 2016.
KEVLES, Daniel J. In the name of eugenics: genetics and the uses of human heredity. 4. ed. Cambridge: Harvard University Press, 1995.
LEIS racistas: Lei da Integridade Racial (EUA, 1924). Nação Mestiça, Manaus. Disponível em: http://nacaomestica.org/blog4/?p=18128. Acesso em: 20 out. 2016.
LOMBARDO, P. A. Three generations, no imbeciles: new light on Buck v. Bell. New York University Law Review, v. 60, n. 1, p. 30-62, apr. 1985. Disponível em: Acesso em: 19 out. 2016.
MOROS PEÑA, Manuel. Los médicos de Hitler. Madrid: Ediciones Nowtilus S.L., 6 maio 2014. 400 p. [Colección: Historia Incógnita]. Disponível em: https://books.google.com.br
SMITH, J. David. Determinismo biologico y concepto de la responsabilidad social: la leccion de Carrie Buck. In: FUNDACIÓN BANCO BILBAO Vizcaya (Org. e Patroc.). FUNDACIÓN VALENCIANA DE ESTUDIOS AVANZADOS (Col.). Proyecto Genoma Humano: ética. 2. ed. Bilbao: Fundación BBV, 1993. p. 169-179.
Revisado e ampliado em 3 de janeiro de 2019
Professora Sílvia M. L. Mota
Este caso, ocorrido no ano de 1927, é relatado por diversos autores, como prova de cruel injustiça no campo da discriminação genética humana.
Nascimento
Carrie Elizabeth Buck nasceu em Charlottesville, Virginia, no dia 2 de julho de 1906, sendo a primogênita de Emma A. Harlow Buck. Seguiu-a a meia-irmã Doris Buck e o meio-irmão Roy Smith. Pouco se sabe sobre a sua mãe, além de que era pobre e casada com Frank W. Buck, que morreu quando Carrie era muito pequena. Lê-se também, que, em abril de 1920, o Estado da Virgínia considerou a mãe de Carrie Buck uma débil mental, termo vago, que representava menos uma descoberta médica do que um reflexo da aversão dos examinadores por seu comportamento sexual. Considerada incapaz de gerir a sua própria vida, Emma foi recolhida na Virginia State Colony for Epileptics and Feeble-Minded, em Lynchburg, onde permaneceu internada até o fim da sua vida.
Em decorrência do histórico de vida da mãe, aos três anos de idade, Carrie Buck foi retirada do convívio materno e acolhida e criada pela família do oficial de justiça de Charlottesville, J. T. Dobbs. Ao longo dos anos, Carrie nunca apresentou quaisquer sinais de deficiência e o seu desempenho escolar era considerado muito bom. Quando cursava o sexto ano escolar, os Dobbs tiraram-na da escola para que se dedicasse exclusivamente aos afazeres domésticos. Sem rebeldia, Carrie era geralmente emprestada pelos Dobbs para serviços gerais nas casas dos vizinhos. E assim, como uma boa menina, viveu no lar que a acolhera, servindo-os nas mais variadas tarefas até o verão de 1923.
Estupro e gravidez na adolescência
Aos 17 anos de idade, Carrie Buck descobriu-se grávida. Questionada sobre o ocorrido, revelou que fora obrigada ao ato sexual por um sobrinho dos Dobbs, que prometera se casar com ela. Os Dobbs fizeram ouvido mouco às explicações, convictos de que o infortúnio era uma evidência da promiscuidade, debilidade mental e comportamento incorrigível por parte da jovem. Sendo assim, através de um requerimento de internação, encaminharam-na ao juiz Shackleford, sob a alegação de que se tratava de uma débil mental epiléptica. Ao avaliar o caso, o juiz Shackleford não vacilou em condená-la. Carrie Buck foi recolhida na Virginia State Colony for Epileptics and Feeble-Minded, em Lynchburg, no dia 4 de junho de 1924 e, alguns dias depois, em 17 de junho de 1924, entrava em vigor, no Estado da Virgínia, a Lei de Esterilização.
A filha de Carrie Buck nasceu em 28 de março de 1924 e, em 4 de junho do mesmo ano, a exemplo da sua mãe, a jovem deu entrada na colônia de Lynchburg. Os Dobbs levaram a criança, oferecendo-lhe o nome de Vivian Alice Elaine Buck, talvez, constrangidos e moralmente comprometidos, em decorrência do estupro de Carrie por um dos seus familiares.
O julgamento e a esterilização involuntária
Quando o Estado da Virginia aprovou a lei da esterilização compulsória, Carrie Buck estava com dezoito anos de idade. O Superintendente da Colônia, Dr. Albert Priddy, defensor ardoroso da esterilização eugenista e um dos colaboradores da Lei de Esterilização Estadual, submeteu-a a um teste de inteligência e, após determinar que a sua idade mental era de nove anos, catalogou-a como débil mental e delinquente moral, além de recomendar à junta diretiva que a jovem fosse esterilizada. Dessa forma, Dr. Priddy formalizou o processo contra Carrie Buck, usando-a como teste para a nova lei de esterilização do Estado. Como a intenção era levar o caso à Corte Suprema, a mesma junta se encarregou de designar como defensor de Carrie o Dr. Irving Whitehead, antigo membro da junta e íntimo amigo de Aubrey Strode, que representou a Colônia. De fato, a junta pagou os honorários de Whitehead, que se revelou um defensor incansável de Carrie Buck. Em fevereiro de 1925, o juiz Gordon autorizou a esterilização, mas Whitehead apelou e conseguiu que o caso chegasse à Corte Suprema [1], o que ocorreu em abril de 1927. No dia 2 de maio do mesmo ano, o tribunal decidiu que a Lei de Virginia era constitucional e que Buck deveria ser esterilizada para evitar o nascimento de mais indivíduos “defeituosos”. Oito dos nove jurados votaram a favor da esterilização de Carrie. [2]
Ao expressar a opinião da maioria com respeito à decisão, o magistrado Oliver Wendell Holmes, da Suprema Corte norte-americana, exarou o seguinte veredito:
“Temos visto em mais de uma ocasião que o bem-estar público pode exigir o sacrifício da vida de seus melhores cidadãos. Seria estranho que não pudesse exigir a força do Estado menores sacrifícios, percebidos com frequência como importantes pelas pessoas afetadas, a fim de evitar que a incapacidade inunde nossa existência. É melhor, para o conjunto do mundo, que em vez de ter que chegar a executar a uns descendentes degenerados devido às suas ações delitivas, ou deixá-los morrer de fome devido à sua imbecilidade, a sociedade possa impedir que aqueles que estão manifestamente incapacitados sigam propagando sua própria espécie. O princípio que apoia a vacinação obrigatória é bastante amplo para justificar a ablação das trompas de Falópio [...].” [3]
Em frase muito citada, concluiu o juiz: “[...] três gerações de imbecis são suficientes.” [4] Isso, sem o cuidado de verificar se Carrie Buck, sua mãe Emma e sua filha Vivian sofriam efetivamente de “debilidade mental” ou de qualquer outra condição hereditária. [5]
No início do processo, enquanto aguardava a decisão do juiz, Dr. Priddy morreu vitimado por um câncer no sistema linfático e o seu assistente, Dr. J. H. Bell, substituiu-o na esterilização de Carrie Buck [6], que aconteceu em 19 de outubro de 1927. Por esse motivo, o caso passou para a história como Buck v. Bell.
A esterilização de Carrie foi sucedida por cerca de 8.300 outros virginianos, incluindo-se no feito, a esterilização da sua meia-irmã mais nova. Todos foram esterilizados sob a lei do estado, entre 1927 e 1972.
Deve-se salientar que, na maioria dos estados onde foram aprovadas, as leis de esterilização focaram somente internos das instituições públicas para “débeis mentais”. Portanto, excluíram as pessoas internadas em instituições privadas. [7] As leis visavam pobres e minorias. Ao todo, oficialmente, mais de 60 mil pessoas foram esterilizadas compulsoriamente nos EUA, devido aos esforços dos eugenistas norte-americanos.
Mas, por que Carrie Buck foi escolhida?
A mãe de Carrie fora internada na mesma instituição alguns anos antes, aparentemente, em decorrência da prostituição e de outras condutas socialmente inaceitáveis; sua filha Vivian, observada por uma enfermeira com a idade de oito meses, foi diagnosticada como débil mental, porque a enfermeira considerou que a menina tinha um olhar estranho. [8] Essa evidência de transmissão genética foi a chave para ilustrar a necessidade de um estatuto de esterilização involuntária.
Comprovação da injustiça
Mais tarde, as previsões relacionadas com o caso Carrie Buck demonstraram inexatidão. Vivian, a sua filha ilegítima, considerada a terceira geração de imbecis, participou do ensino fundamental público de Charlottesville Venable por quatro mandatos, de setembro de 1930 até maio de 1932. Era de inteligência média, muito acima de debilidade mental e morreu um mês depois de completar oito anos de idade, em 3 de julho de 1932, vitimada por colite entérica, uma doença intestinal.
Carrie Buck, acusada de ser a segunda geração de imbecis, foi posta em liberdade condicional depois de ser cirurgicamente esterilizada. Enviada para o povoado Bland County, para trabalhar com uma família, casou-se em 14 de maio de 1932 com William D. Eagle, um carpinteiro viúvo, que morreu em 23 de julho de 1941. Tempos depois, em 25 de abril de 1965, Carrie casou-se com Charles A. Detamore, de Front Royal. Amigos, parentes e profissionais que a conheciam reconheceram mais tarde a imprecisão do diagnóstico de retardo mental. Durante a maior parte da sua vida, Carrie Buck foi independente e útil para outras pessoas.
Morte
Carrie Buck Águia Detamore morreu em 28 de janeiro de 1983, em uma casa de repouso em Waynesboro e foi enterrada no Cemitério Oakwood, em Charlottesville. Vivian Dobbs, a filha de quem foi separada pouco depois de dar à luz, encontra-se enterrada em morro adjacente.
A prática da esterilização involuntária não cessou em instituições da Virginia até 1972 e o ato que a permitia permaneceu nos livros até abril de 1974.
Carrie Buck passou para a história como a primeira pessoa submetida à cirurgia de esterilização involuntária, ao amparo da lei Virginia Sterilization Act of 1924, que permitia impor a esterilização às pessoas diagnosticadas como incapacitadas, rotulando-as a partir da possibilidade de transmitirem à sua prole deficiências físicas, psicológicas ou sociais. Injustiça, que mancha a história.
Tradução da Lei de Integridade Racial, da Virgínia [9]
Original: 1 - 2
A Lei da Integridade Racial, de 1924, do Estado da Virgínia, Estados Unidos, exigia que a classificação racial das pessoas fosse registrada ao nascer e proibia o casamento entre pessoas brancas e não-brancas, exceto com mistura de sangue de branco e dezesseis avos ou menos de sangue de índio americano. A lei foi a mais famosa norma de proibição de miscigenação dos Estados Unidos. Foi revogada pela Suprema Corte do país, em 1967, no caso Loving versus Virgínia.
1. Que seja esta promulgada pela Assembleia Geral da Virgínia, Que o registrador do Estado de estatísticas vitais deve, logo que possível, após a produção de efeitos deste ato, preparar um formulário sobre a qual a composição racial de qualquer indivíduo, como caucasiano, negro, mongol, índio americano, indiano asiático, malaio, ou qualquer mistura dos mesmos, ou quaisquer outras estirpes não-caucasianas, e se há qualquer mistura, então, a composição racial dos pais e outros ancestrais, na medida em que determinável, de forma a mostrar em que geração tal mistura ocorreu, possa ser certificada por tal indivíduo, sendo que o formulário deve ser conhecido como um certificado de registro. O registrador do Estado pode fornecer para cada registrador local, um número suficiente de tais formulários para efeitos do presente ato; cada registrador local pode, pessoalmente ou através de representante, o mais rapidamente possível depois de receber tais formulários, fizer nele em duplicata um certificado da composição racial, conforme anteriormente mencionado, de cada pessoa residente em seu distrito, que assim o desejar, nascida antes de 14 de junho de 1912, cujo certificado deve ser feito através da assinatura da referida pessoa, ou, no caso de crianças menores de quatorze anos de idade, com a assinatura de um dos pais, tutor ou outra pessoa na posição dos pais. Um dos referidos certificados de cada pessoa assim registrada em todos os distritos deve ser encaminhado ao registrador do Estado para os seus arquivos; o outro deve ser mantido em arquivo pelo registrador local.
Cada registrador local pode, logo que possível, ter tal certificado de registro feito por ou para cada pessoa em seu distrito que assim o desejar, nascida antes de 14 de junho de 1912, para as quais ele não tenha em seu arquivo um certificado de matrícula, ou uma certidão de nascimento.
2. É um crime qualquer pessoa intencionalmente ou conscientemente fazer um certificado de matrícula falsa quanto à cor ou raça. A fabricação intencional de um registro ou uma certidão de nascimento falsa será punida por confinamento na penitenciária por um ano.
3. Para cada certificado de registro feito corretamente e devolvido para o registrador do Estado, o registrador local, que retornou o mesmo terá direito a uma taxa de vinte e cinco centavos, a ser paga pelo registrando. O pedido de registro e de transcrição podem ser feitos diretamente ao registrador do Estado, que pode manter a taxa para despesas de seu escritório.
4. Nenhuma licença de casamento deve ser concedida até o funcionário ou vice-secretário ter garantia razoável de que as declarações sobre a cor tanto do homem quanto da mulher estão corretas.
Se houver motivos razoáveis para não acreditar que os candidatos são de raça branca pura, quando esse fato é afirmado, o funcionário ou vice-secretário deverá reter a concessão da licença até prova satisfatória ser produzida de que ambos os candidatos são “pessoas brancas”, como previsto no este ato.
O funcionário ou vice-secretário deve usar o mesmo cuidado para assegurar-se de que ambos os candidatos são de cor, quando tal fato é alegado.
5. Daqui em diante será ilegal para qualquer pessoa branca neste Estado se casar com qualquer outra exceto pessoa branca, ou pessoa com nenhuma outra mistura de sangue que não de branco e índio americano. Para efeitos da presente lei, o termo “pessoa branca” aplica-se apenas à pessoa que tenha nenhum vestígio de qualquer sangue que não caucasiano; mas as pessoas que têm um dezesseis avos ou menos do sangue do índio americano e não têm outra sangue não caucasiano devem ser consideradas pessoas brancas. Todas as leis aprovadas até o presente e atualmente com efeito sobre o casamento entre pessoas brancas e de cor são aplicáveis aos casamentos proibidos por este ato.
6. Para a realização dos fins desta lei e prestar a assistência clerical necessária, postagem e outras despesas do registrador do Estado das estatísticas vitais, vinte por cento das taxas cobradas pelos registradores locais sob este ato serão pagas ao departamento de Estado de estatísticas vitais, as quais podem ser gastas pelo referido departamento para efeitos deste ato.
7. Todos os atos ou partes de atos incompatíveis com este ato estão, na medida de tal inconsistência, por este meio revogados.
Notas
[1] MOROS PEÑA, 2014, n.p.
[2] MOROS PEÑA, 2014, n.p.
[3] SMITH, 1993, p. 171-172.
[4] SMITH, 1993, p. 171-172. Também: CARRIE Buck (1906–1983), 2016.
[5] LOMBARDO, 1985, p. 30-62.
[6] MOROS PEÑA, 2014, n.p.
[7] KEVLES, 1995, p. 132.
[8] KEVLES, 2011, p. 328.
[9] LEIS..., 2016.
Referências
BUCK V. BELL, 274 U.S. 200 (1927). Justia: us Supreme Court, Mountain View, CA. Disponível em: https: /supreme.justia.com/cases/federal/us/274/200/case.html#207. Acesso em: 15 out. 2016.
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Revisado e ampliado em 3 de janeiro de 2019