O aborto no caso de gravidez resultante de estupro
Professora Sílvia Mota
- Texto escrito em 1998 -
 

Um tipo de aborto, que atende por aborto ético, aborto humanitário ou ainda por aborto criminoso, é aquele proveniente de uma ação delitiva, fundamentalmente violação ou relações incestuosas.
 
Estupro é o nomem iuris do crime contra a liberdade sexual, que consiste em constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça, conforme indica o art. 213 do Código Penal brasileiro.
 
O aborto decorrente de estupro é justificado na legislação nativa por motivos de ordem ética e emocional mas, para alguns autores, não encontra justificativa. Em nenhuma hipótese poder-se-ia aceitar, nesse tipo de aborto, o estado de necessidade.
 
A noção de necessidade foi definida pelo jurista belga Charles de Visscher num parecer redigido em 1942, e que Paul Foriers (1999, p. 343-346) publica em anexo da sua tese. Em contraste com a coerção moral, causa de justificação prevista pelo art. 71 do Código Penal belga, Charles de Visscher escreve: “O estado de necessidade é a situação em que se encontra uma pessoa que, para salvaguardar um interesse superior, não tem outro recurso senão efetuar um ato proibido pela lei penal”. E essa definição é acompanhada por um comentário do qual se extrai a seguinte passagem: “A melhor justificação da isenção da pena deve ser buscada na própria vontade do legislador [...]; este entendeu proteger certos interesses sociais com a ameaça de uma pena; mas há situações extremas em que um interesse social não considerado perla lei só pode ser salvarguadado por um desconhecimento da lei. Em semelhante caso, é razoável admitir que o legislador não entendeu cominar pena. A lei é obra de razão; justifica-se ela por fins sociais; é fundamentada numa hierarquia de valores. Quem só contraveio a lei para salvaguardar um interesse social manifestamente superior, mormente quando agiu sem nenhum móbil pessoal, deve escapar à penalidade.”
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Depreende-se dessas palavras, que no caso de aborto por estupro ressalta o interesse individual, razão pela qual não se pode clamar pelo estado de necessidade como excludente de culpabilidade. Além disso, sustenta a jurisprudência que o estupro é difícil de ser provado e de ser essa prática abortiva, pelo médico, um ato extremamente simplificado pela sua forma sumária de execução.
 
Para o reconhecimento do estado de necessidade, decide o Tribunal de Justiça de São Paulo: “[...] exige-se prova cabal da existência da atualidade do perigo, sua inevitabilidade, a involuntariedade em sua causação e a inexibilidade do sacrifício do bem ameaçado.
[2] Como normalmente o estupro não é presenciado por terceiros, torna-se difícil obter essa prova consistente.
 
Pela legislação penal, não há necessidade de sentença condenatória por estupro para que o abortamento possa ocorrer, sendo suficiente a prova convincente da existência do delito sexual. O crime de estupro somente se procede mediante queixa, exceto se a vítima ou seus pais não podem prover as despesas do processo sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família, ou se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador, caso em que se procede mediante ação pública, nos termos do art. 225, parágrafo 1º, incisos I e II, do Código Penal. Na primeira hipótese, a ação do Ministério Público depende de representação da vítima ou de seu representante legal, conforme o caso.
 
Na prática, para evitar abusos, o médico somente deverá agir mediante prova inequívoca do alegado estupro, salvo se o conhecimento de alguma circunstância foi razoavelmente suficiente para justificar a credulidade do médico. Esse cuidado não é exagero da doutrina, pois a vida destruída não poderá ser reconquistada através de outra gravidez. É irrecuperável. Além do que, enganos e mentiras rondam os tribunais.
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As normas que permitem o aborto nos casos de gravidez proveniente de estupro encontram respaldo no fato de que a mulher não deve ficar obrigada a cuidar de um filho resultado de coito violento, não desejado. Alega-se também que, frequentemente o autor do estupro é uma pessoa degenerada, anormal, podendo ocorrer problemas ligados à hereditariedade. Mas, constitui exagero confirmar essas assertivas, por nem sempre a anormalidade ligar-se à personalidade do criminoso. É o exemplo de crueldade exposto nas situações de guerras e revoluções. As frequentes violações de religiosas durante os distúrbios do antigo Zaire no começo da década de 60 plantaram este tema dentro da moral católica. A opinião generalizada foi a de aceitar as medidas preventivas anticonceptivas, pois à Igreja não cabia aceitar o aborto dentro de suas próprias fileiras.
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A experiência vivida por Marijna, de 17 anos, nos campos de concentração sérvios ilustra o caráter de mudança de etnia liderada por Karadzic. Presa em companhia da mãe, Marijna e outras mulheres foram estupradas diariamente, durante várias semanas, por soldados sérvios. Grávida, foi posta em liberdade jurando não ter aquele filho. Contudo, uma gravidez de alto risco levou os médicos a considerarem que um aborto lhe seria fatal. No hospital onde foi internada, Marijna sofria bastante, sem saber da verdade.[5]
 
A possibilidade atual de manter, através de aparelhos, a vida de pessoas em coma, por tempo indeterminado, veicula casos dignos de reflexão e discussão no âmbito da bioética. Atualmente é possível manter a vida artificial de uma mulher grávida, com a finalidade de fazer o feto chegar a uma fase de desenvolvimento que lhe possa garantir uma vida autônoma fora do útero.
[6] Por exemplo, em janeiro de 1996, noticiou-se que uma jovem mulher de 29 anos, católica praticante como seus pais, em estado de coma há dez anos vitimado por um acidente de carro, internada numa clínica de Brighton, Rochester, Estados Unidos, foi estuprada no hospital, engravidando. Consultados especialistas, disseram que sendo os sinais vitais da paciente normais, teria condições de trazer à vida um bebê saudável. A família tomou a decisão de não interromper a gravidez motivada pela crença de que a jovem não interromperia a gravidez, se tivesse condições de expressar sua vontade e pelo desejo de ver uma parte da filha viva. A criança nasceu saudável, embora prematura, e os neurologistas afirmam que é pouco provável que a mulher tenha consciência de que estava grávida. “Ela não sabe que é mãe”, disse um especialista.[7]
 
Surgem, então, as questões éticas: estaria a paciente sendo usada como cobaia humana? Permitindo o desenvolvimento da gravidez estarão sendo levados em conta a dignidade da paciente como ser humano? E a criança? É justo ser privada do relacionamento mãe e filho já a partir da vida intrauterina?
 
Não parece condenável a decisão dos pais que, sabedores do posicionamento da filha em relação ao aborto, optam por manter-lhe a gravidez. A hipótese de que a paciente estaria sendo usada como cobaia também não procede, tendo em vista ser a opção dos próprios pais e não dos médicos que lhe mantinham a vida.
 
Quanto à violação da dignidade da paciente, acredita-se que esta deveria ter sido inquirida no momento em que se decidiu pela manutenção da vida ligada a aparelhos e não neste instante em que se coloca a necessidade de proteção a um outro bem jurídico: a vida do feto. Ademais, a vida da paciente não foi colocada em risco em razão da gravidez. O feto, por sua vez, terá a vida preservada e sua relação com a mãe será biológica, cabendo aos avós suprir-lhe quaisquer outras necessidades que não lhe poderão ser oferecidas pela mãe, inclusive as de origem emocional, o que não difere muito das situações em que uma criança é adotada por um casal estranho.
 
No Brasil, também um caso abalou a opinião pública. Uma garota de 11 anos foi estuprada, resultando gravidez do ato criminoso. Os pais da menina, após buscarem uma desnecessária autorização judicial para a consumação do aborto
[8], o que alardeou o caso publicamente, cederam às pressões contrárias, ignorando todos os riscos físicos aos quais a filha ficaria exposta. Um ágil lobby antiaborto, reforçado pelo adiantado estado da gravidez, foi vitorioso, arrancando do pediatra Leonardo Posternak a afirmação de que prevaleceu uma estranha lógica: “Para não matar o feto que está dentro do útero, optaram sacrificar a criança que tem o útero.” O cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio Salles, 77 anos, ofereceu à família, cuja renda é de R$ 120,00 por mês, auxílio para a criação do bebê. E neste ponto a Igreja suscita inúmeras críticas entre seus próprios fiéis.[9]
 
A situação especificada, difere da anteriormente relatada. Como a jovem em coma, impossibilitada de manifestar sua própria vontade, trata-se esta de uma criança, impossibilitada pelo ordenamento jurídico brasileiro de externar sua vontade. Além disso, comprovado o risco de dano físico e moral, ignorado pelos pais e por todos aqueles que os influenciaram com dotes materiais, aproveitando-se de sua carência. Muito embora a televisão e a imprensa escrita exibam atualmente as duas crianças, mãe e filho, em aparente bem-estar, advoga-se pela realização do aborto em condições semelhantes.
 
No que diz respeito às mulheres que possam manifestar livremente sua vontade tem-se a dizer que manter um feto concebido através da violência é um ato de amor ao próximo, excelente por natureza, mas injusto se for tornado obrigatório, em decorrência das características especiais da sua origem, que não se coadunam com os princípios da moral.
 
[1] FORIERS, P. De l’état de nécessité en droit penal. Bruxelas:Bruylant, 1951, p. 343-346 apud PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 453.
 
[2] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Catanduva. Segunda Câmara Criminal. Recurso Criminal n. 82.378/78-3. Julgado em 10 de setembro de 1990. Jurídica. Disponível em: http://www.jol.com.br.
 
[3] Pode-se relembrar o famoso caso de Jane Roe, cujo nome real era Norma McCorvey, decidido em 1973 pela Corte Suprema dos Estados Unidos. Texana à época com 25 anos de idade, solteira, alegava a jovem Jane Roe ter engravidado em razão de estupro. Na época, a Corte deliberou, contra apenas dois votos, que entre as liberdades fundamentais do cidadão está o direito à privacidade, entre os quais se inseria o direito a interromper uma gravidez. Contudo a lentidão judiciária deu margem ao nascimento da criança, que foi entregue a uma entidade que lhe providenciou pais adotivos. Em 1988, Norma McCorvey veio a público confessando que o estupro jamais ocorrera, dando início, desde então, à procura da filha, corroída que estava pelo remorso de tê-la abandonado. FERRAZ, Sergio. Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma introdução. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 49-50.
 
[4] GAFO FERNÁNDEZ, Javier. 10 palabras clave en bioética. 3. ed. atual. Navarra: Verbo Divino, 1997, p. 81.
 
[5] CAMPOS de concentração sérvios. Isto É, São Paulo, n. 1.195, p. 58, 6 ago. 1992.
 
[6] SPAGNOLO, A. G. Morte cerebrale in donna gravida: è lecito il prolungamento artificiale della vitta? Medicina e Morale, 1988, 6, p. 985-987.
 
[7] AMERICANA em coma há dez anos dá à luz um bebê. O Globo, Rio de Janeiro, 20 mar. 1996. O Mundo/Ciência e Vida, p. 34. Ver também: PESSINI, Léo, BARCHINFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. 3. ed. rev ampl. São Paulo: Loyola, 1996, p 277.
 
[8] A autorização para cirurgia nos casos de aborto por estupro e risco de vida para a gestante é legal, está no Código Penal desde 1940 e não precisaria do novo Projeto de autoria da deputada Sandra Starling (PT-MG), que desperta inúmeras polêmicas ao pretender regulamentar o aborto decorrente da gravidez nas referidas condições. CONSULTOR do ministério da saúde diz que lei sobre o aborto é auto-aplicável. O Globo, Rio de Janeiro, 26 ago. 1997. O País, p. 10. Teoricamente, todos os hospitais da rede pública de São Paulo poderiam desenvolver programas de aborto legal, pois foram autorizados por portaria estadual desde 1989. Contudo, apenas o Hospital do Jabaquara e o Hospital Pérola Bygton, na Bela Vista, no Centro, dispõem de meios para atendimento de mulheres. Desde 1989, a unidade prestou atendimento a cento e oito vítimas de estupro, além de oito casos de má formação fetal e quatro por risco materno. Desse grupo, 60% são menores de 14 anos. TAVES, Rodrigo França, BOCCIA, Sandra. Ministro pedirá a FH que vete aborto. O Globo, Rio de Janeiro, 22 ago. 1997. O País, p. 3. No Rio de Janeiro, em dez anos de vigência da lei que obriga a rede pública municipal a prestar o atendimento, foram registrados apenas vinte casos dos chamados abortos legais. Em 1997, entretanto, a situação parece mudar: foram realizados, neste ano, três abortos por risco materno e cinco por estupro. EM dez anos, apenas 20 abortos legais realizados. O Globo, Rio de Janeiro, 19 out. 1997. Rio, p. 26.
 
[9] CÔRTES, Celina, TRINDADE, Eliane. Em nome do feto. Isto É, São Paulo, 24 dez. 1997.
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 01/09/2016
Código do texto: T5746613
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