Transplantes de órgãos,
tecidos e partes do corpo humano

Professora Sílvia Mota
Poeta e Escritora do Amor e da Paz

Noção conceitual de transplante
 
Dentre as poucas obras especializadas sobre o tema, que emite uma conceituação, encontra-se a monografia de Ricardo Antequera Parili ensinando ser o transplante “[...] a retirada de um órgão ou material anatômico proveniente de um corpo, vivo ou morto, e sua utilização com fins terapêuticos em um ser humano.”[1] Santos Cifuentes, em estudo jurídico, explica que transplante é o ato ou o efeito de transplantar, isto é, de mudar de um lugar para outro uma porção de tecido corporal ou órgão, para enxertar em outra parte do mesmo indivíduo ou de outro.[2] Javier Gafo Fernandez chama-o de “[...] intervenção cirúrgica mediante a qual se implanta no organismo receptor um órgão ou tecido extraído previamente de um doador.”[3] No Brasil, Daisy Gogliano exibe conceituações de alguns autores[4] e Amuramy Lopes Sampaio simplifica dizendo que, no aspecto em que nos interessa, transplante “é o enxerto de um órgão ou tecido de um ser humano vivo.”[5]
 
Como se pode observar, não existem conflitos entre os conceitos relacionados, ficando evidente que se considera transplante a retirada de um órgão, tecido ou parte do corpo humano, vivo ou morto, para enxertá-lo, com finalidade terapêutica ou científica, no mesmo indivíduo ou em outro.
 
Os transplantes no direito positivo brasileiro
 
Desenvolveu-se no Brasil uma admirável capacitação técnica para as diversas modalidades de transplante, ao lado de um inegável progresso na imunologia de rejeição de órgãos transplantados, superando-se um dos maiores entraves à utilização terapêutica dos transplantes.[6] Mas, ultrapassadas essas dificuldades, persistem ainda questões éticas e legais vinculadas à disponibilidade de órgãos, substâncias e partes transplantáveis do corpo humano.
 
O primeiro diploma legislativo que no Brasil regulou a matéria dos transplantes foi a Lei n, 4.280, de 6 de novembro de 1963 que: “Dispõe sobre a extirpação de órgão ou tecido de pessoa falecida”. Constituída por nove artigos principais, subordina a permissão para fins de transplante à autorização escrita do de cujus ou não oposição do cônjuge ou dos parentes até o segundo grau, ou de corporações religiosas ou civis responsáveis pelo destino dos despojos. Foi revogado pela Lei n. 5.479, de 10 de agosto de 1968, que: “Dispõe sobre a retirada e transplante de tecidos, órgãos e partes de cadáver para finalidade terapêutica e científica, e dá outras providências”, que regula, em quinze artigos fundamentais, não só a retirada e transplante de tecidos, órgãos e partes de cadáver, mas também a retirada em vida.[7]
 
Pela Mensagem 425, de 13 de outubro de 1982, encaminhou o Presidente da República aos membros do Congresso Nacional, acompanhado de Exposição de Motivos do Ministro de Estado da Saúde, Projeto de Lei que: “Dispõe sobre a retirada de órgãos ou partes do corpo humano para transplante ou qualquer finalidade terapêutica e dá outras providências”.[8]
 
A Constituição Federal Brasileira de 1988, no parágrafo 4º do artigo 199, estipulou que a lei disciplinará os requisitos e condições que facilitem a remoção de órgãos e tecidos humanos para transplantes, pesquisa e tratamento, vedando a comercialização. Com base nessa realidade normativo-constitucional, o Congresso Nacional revogou a Lei n. 5.479/68 e, com arrimo no projeto substitutivo apresentado pelo Deputado Geraldo Alckmin, aprovou a Lei n. 8.489, de 18 de novembro de 1992, publicada no Diário Oficial da União de 20 de novembro de 1992. Este documento, regulamentado pelo Decreto n. 87.913, de 22 de julho de 1993, teve como finalidade estimular as doações e simplificar os procedimentos para a retirada de órgãos.[9] Em seguida, a Portaria n. 96, de 28 de julho de 1993, da Secretaria de Assistência à Saúde, do Ministério da Saúde, estabeleceu as normas de credenciamento dos hospitais que realizam transplantes para o Sistema Único de Saúde.
 
Mas, ainda com a finalidade de amenizar a dificuldade da doação de órgãos, o sistema jurídico brasileiro sofreu uma verdadeira revolução ao adotar a Lei n. 9.434 de 4 de fevereiro de 1997, que “Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências”. Esta lei presume, através do seu art. 4º, autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post morten. No parágrafo único do mesmo artigo, nos moldes das legislações da França e da República Federal da Alemanha, admite uma declaração de recusa expressa onde a pessoa pode opor-se à retirada de seus órgãos, gravando a expressão não-doador de órgãos e tecidos na sua carteira de identidade ou de habilitação para dirigir. Consequentemente, como indica o art. 6º da Lei de Transplantes, não se poderá fazer a colheita ou retirada de elementos para transplante nos corpos de mortos não identificados.
 
Apresentaram-se inúmeros argumentos positivos e negativos. Eis os pontos contrários à lei: muitos acreditavam que facilitaria o comércio de órgãos; acabaria com o direito da família do doador decidir se os órgãos deveriam ou não ser extraídos, pois a família, com esperança, poderia não concordar que mesmo com o coração batendo o parente já estivesse morto[10]; os aspectos religiosos não foram considerados; o problema não seria a falta de doadores, mas de estrutura da rede pública de saúde. Os argumentos a favor diziam que, pelo contrário, a lei inibiria o tráfico ao aumentar a oferta de órgãos; a morte cerebral, pela lei brasileira, é o suficiente para determinar que o paciente está morto; o cidadão poderia, em vida, manifestar-se contrário à doação de seus órgãos; a necessidade social de órgãos para salvar vidas de pessoas que deles necessitam deve ser considerada.[11]
 
Não subsistiu intacta, contudo, a nova lei, às controvérsias. O Presidente Fernando Henrique Cardoso, que se colocava favorável aos seus dizeres[12], editou em 6 de outubro de 1998, medida provisória que praticamente acaba com a lei da doação presumida. A medida provisória assegura aos parentes da pessoa falecida - pai, mãe, filho ou cônjuge - o direito de manifestar-se contra ou a favor da remoção de tecidos, órgãos ou partes do corpo para fins de transplante e tratamento quando o paciente com morte cerebral não tiver manifestado em vida sua oposição à doação. Na exposição de motivos, a mudança na legislação é justificada pelo fato de que, na prática, a lei da doação presumida não estava sendo cumprida.[13] O Governo acredita que a alteração na lei da doação presumida deverá propiciar um crescimento progressivo no número de doadores, que vinha diminuindo em vez de aumentar, como se esperava quando da promulgação da lei.
 
As polêmicas colocar-se-ão sempre quando o assunto abordar questões que afetem a vida humana, mas não se pode olvidar que o desenvolvimento de uma tecnologia que se embasa na doação de um órgão tem obrigado o homem a revisar a imagem de si mesmo, da vida e da morte. Não existe no Brasil o compromisso social da doação altruística de órgãos. Portanto, é necessário, primeiramente, lapidar a consciência dos indivíduos, tomando em conta suas idiossincrasias, atendendo a seu âmbito cultural, ético e religioso, aspectos indissolúveis, pois se isso não for feito, ir-se-á ao fracasso.[14]
 
Toda pessoa tem a faculdade de dispor de seu futuro cadáver. Todavia, o que se percebe, é que, por parte do Poder Legislativo, força-se uma legislação para facilitar as doações ao invés de proteger os interesses da sociedade e do indivíduo. A disciplina dos transplantes deve ser feita por lei surgida do respeito aos contextos sociais e não apenas em resposta à apresentação de resultados científicos como novos fenômenos que precisam ser assimilados. O legislador pode até mesmo prescindir do consentimento do doador ou de sua família, mas não lhe será permitido falhar na observância dos aspectos constitucionais quanto à dignidade e igualdade, que deverão ser trabalhados em direção à tutela dos caracteres essenciais da pessoa humana.
 
Há décadas o antigo mundo da medicina vem sendo transformado através de verdadeira revolução. Pode-se manipular a hora da morte graças às técnicas de reanimação, pode-se viver com órgãos de outras pessoas graças aos transplantes, pode-se programar o futuro das pessoas graças à manipulação genética. A vida transformou-se em algo tecnologizado e, em decorrência, abrem-se conflitos de direitos. O homem se vê diante de uma técnica para salvar vidas que exige sejam extraídos determinados órgãos os mais sãos possíveis, quiçá de alguém ainda vivo. Plantam-se, então, as questões éticas: o que é a vida, é sagrada ou não, qual o momento da morte?
 
Observados estes pontos interrogativos, fica-se com Ricardo Antequera Parili ao demonstrar que, se um dos fins do Direito é hierarquizar os interesses em conflito, “[...] não deve prevalecer aquele que decide enterrar um corpo para sua decomposição, ou autorizar sua incineração, quando elementos desse cadáver são exigidos para preservar uma vida.”[15] Esse posicionamento não anula a afirmação de que a vontade da pessoa sobre seu cadáver deve ser respeitada, desde que se admita a manifestação da vontade.
 
[1] PARILI, Ricardo Antequera. El derecho, los transplantes y las transfusiones: com especial referencia a la legislación venezolana. Caracas: Ucolo Barquisemento, 1980, p. 22.
[2] CIFUENTES, Santos. Estudio juridico sobre transplantes de órganos humanos. El derecho, Buenos Aires, v. 76, p. 833, 3 mayo 1978.
[3] FERNANDEZ, Javier Gafo. Nuevas perspectivas en la moral médica. Madrid: Iberico Europea, 1978, p. 238.
[4] GOGLIANO, Daisy. O direito ao transplante de órgãos e tecidos humanos. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de São Paulo. Faculdade de Direito, para obtenção do Título de Mestre em Direito. São Paulo, 1986.
[5] SAMPAIO, Amuramy Lopes. Direitos da personalidade e doação de órgãos. Dissertação de Mestrado apresentada à Fundação Universidade Estadual de Londrina. Centro de Estudos Sociais Aplicadas, para obtenção do Título de Mestre em Direito das Relações Sociais. Londrina, 1987, p. 85.
[6] O desenvolvimento das ciências básicas relacionadas com a imunologia têm desempenhado um papel fundamental no progresso da área dos transplantes e tem sido muito bem combinadas com o aspecto clínico da imunossupressão até o advento da ciclosporina. Este agente terapêutico tem aberto novos horizontes no campo da imunossupressão clínica para transplantes, de tal forma que podemos falar de duas etapas dos transplantes de órgãos, antes e depois da introdução da ciclosporina. Isto se aplica muito particularmente ao transplante cardíaco, o qual foi quase abandonado a partir de 1972 por problemas relacionados com a rejeição do órgão, e ressurgiu em 1981 com o uso da ciclosporina. A. ISUNZA, José Manuel Ramírez, SORIANO, Federico García, LÓPEZ, Eduardo Bertaud. Experiencias de transplante de organos en aguascalientes. Cirugia y Cirujanos, México, v. 59, n. 4, p. 146, jul./ago. 1992.
[7] A referida lei não traçava nenhum critério sobre a caracterização da morte, nem mesmo aludia às várias espécies de morte, a par de outras disposições completamente inexequíveis, dadas às falhas apresentadas, requerendo, simplesmente, para a retirada de órgãos, a prova incontestável da morte, sem especificar, contudo, em que deveria constituir essa prova. Punia com a pena de detenção, de 1 a 3 anos, o fato de realizar-se o transplante, sem que existisse a prova incontestável a que se referia.
[8] Ver comentários de CHAVES, Antonio. Retirada de órgãos ou partes do corpo humano para transplantes. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, n. 26, p. 7-39, out./dez. 1983.
[9] Ver análise da referida lei por ALVES, José Carlos Moreira. Os aspectos jurídicos, éticos e legais dos transplantes de órgãos. Revista de Direito Renovar, Rio de Janeiro, n. 1, p. 1-14, jan./abr. 1995. Quanto à análise das disposições penais da mesma lei, ver: MARREY NETO, José Adriano. Transplante de órgãos: disposições penais. São Paulo: Saraiva, 1995, 70 p.
[10] Afirma o ex-ministro Adib Jatene: “A família tem que ser ouvida. A lei não pode ser indutora de uma mudança cultural, mas sim consolidar uma prática já adotada pela sociedade. Não sou jurista, mas sempre me rebelei contra leis que pretendam mudar comportamentos dessa forma.” PAULA, Isabel de. A família tem que ser ouvida. O Globo, Rio de Janeiro, 9 jan. 1998. O País, p. 9. Ver também: BOCCIA, Sandra. Entidade quer que família possa decidir doação. O Globo, Rio de Janeiro, 9 jan. 1998. O País, p. 9. Ver também: NÃO-DOADORES têm 14 dias para registrar opção em documento. O Globo, Rio de Janeiro, 5 mar. 1997. O País, p. 11.
[11] A SOLIDARIEDADE obrigatória: lei de doação de órgãos. Tribuna do Advogado, OAB/Rio de Janeiro, p. 13, fev. 1997.
[12] MARQUES, Hugo, MENDES, Vannildo. FH diz que lei de doação de órgãos não será alterada. O Globo, Rio de Janeiro, 6 jan. 1998. O País, p. 8.
[13] “A mudança oficializa o que na prática já acontece, uma vez que a grande maioria dos cirurgiões tem exigido a aquiescência dos parentes antes de proceder à remoção de quaisquer órgãos. Isso porque o princípio da doação presumida, sem assegurar o direito à família de se manifestar, trouxe um dilema para os médicos no que se refere à conduta ética.”
[14] BECERRA, Alejandro Treviño. Foro de transplante: problematica por analizar. Cirugia y cirujanos, México, v. 59, n. 4, p. 144, jul./ago. 1992.
[15] PARILI, Ricardo Antequera. El derecho, los transplantes y las transfusiones: com especial referencia a la legislación venezolana. Caracas: Ucolo Barquisemento, 1980, p. 225.
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 29/08/2016
Reeditado em 29/08/2016
Código do texto: T5743483
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