Negócios jurídicos relacionados
aos transplantes entrevivos
Professora Sílvia M L Mota
Poeta e Escritora do Amor e da Paz
A denúncia, em 1987, do médico Roosevelt de Sá Kalume, de que o hospital-escola da Faculdade de Medicina de Taubaté subvencionava a eutanásia em pacientes comatosos em hospitais do Vale do Paraíba para a aquisição de rins transplantáveis, enviados a instituições de São Paulo, a saber, o Hospital das Clínicas da USP, para pacientes que estavam na fila de espera, golpeia a classificação de res extra commercium decretada ao cadáver, generalizando o pânico entre as pessoas que passaram a temer serem as próximas vítimas ou serem obrigadas a tomar a injeção da meia noite, ao presumirem suas vidas ceifadas para a comercialização dos corpos. De quando em quando surgem notícias na mídia que levam os políticos à instalação de CPIs para investigar o possível tráfico de órgãos.[1]
A questão do mercado humano é, para Volnei Garrafa, muito antiga, tendo sido apenas aprimorada na era dos transplantes, quando avançou de questões mais amplas como a escravidão, prostituição ou exploração física do trabalho, para aspectos mais sutis, delicados e específicos de compra, venda ou aluguel de órgãos e estruturas do corpo das pessoas.[2]
É difícil calcular o valor de um órgão no mercado humano, mas os dados de que se dispõe são assustadores. Em Calcutá, por exemplo, a operação completa de transplante custa cerca de 30.000 dólares, mas o fornecedor do órgão recebe somente dez por cento, enquanto o saldo vai para a clínica, para os cirurgiões, para os intermediários.[3]
Médicos indianos, além do pioneiro C. T. Patel, contribuíram para a disseminação da idéia dos rewarded donors - doadores recompensados ou pagos. No Congresso de Ottawa, Reddy foi dramático ao justificar as razões da utilização do sistema de compra e venda para resolver seu problema de falta de órgãos: to buy or let die - comprar ou deixar morrer.[4]
O que se torna objeto de discussão é a comerciabilidade ou não das partes do corpo humano. No Brasil, a Lei n. 9.434/97, nas linhas do art. 1º, diz ser gratuita a disposição de tecidos, órgãos e partes do corpo humano.
Gert Kummerov manifesta que, se o objeto da convenção são materiais humanos restituíveis, estes podem ser objeto de relações jurídicas patrimoniais, por exemplo, um contrato de compra e venda.[5] Na mesma sintonia, H. Tristam Engelhardt Jr., um dos maiores expoentes da bioética norte-americana sustenta a moralidade da compra e venda de órgãos de pessoas vivas. Entende o autor que: “[...] certas interpretações do princípio de beneficência e certos pressupostos de fato acerca do risco de exploração de indivíduos levam a crer que a venda de órgãos dará resultados moralmente indesejáveis. Mas, as liberdades gerais de associação e de uso dos recursos particulares devem proteger tais práticas sob o aspecto moral, embora conflitantes com os postulados gerais dos costumes ocidentais” [....] “Já que vender-se livremente a outrem não implica violação do princípio de autonomia, essas trocas, baseadas em tal princípio, devem ser abrangidas pela esfera protegida da privacidade dos indivíduos livres. Além disso, se alguém se vender por preço justo e em condições adequadas, supõe-se que seja possível levar ao máximo o saldo ativo de benefícios em face dos prejuízos.[6]
Em âmbito nacional, Orlando Gomes admite os negócios jurídicos que tomem como objeto a separação de partes do corpo para o fim de disposição, mas salienta como limites ao poder de disposição o ato que importe na diminuição permanente da integridade física ou ao contrato atentatório da dignidade humana.[7] Caio Mário da Silva Pereira, igualmente, não vê impedimentos quanto à cessão, mesmo onerosa, de partes que se reconstituem naturalmente, e de outras não reconstituíveis, desde que se não comprometa a vida ou a saúde do indivíduo.[8]
O art. 69 do Código Civil brasileiro dispõe que são coisas fora do comércio as insuscetíveis de apropriação e as legalmente inalienáveis. São insuscetíveis de apropriação individual as coisas de uso inexaurível, como o ar, a luz e o mar, mas não contraria a natureza das coisas afirmar que podem essas partes serem comercializadas. Serão consideradas extracomércio quando forem indicadas expressamente nas leis como, por exemplo, já visto, ocorre no Brasil, através da Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, relativo à disposição gratuita de tecidos, órgãos ou partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou de transplantes.
Por outro lado, há certas partes que, separadas do corpo humano, podem constituir inquestionavelmente objeto de comércio jurídico. É o que ocorre no parágrafo único do art. 1º da mesma lei quando não compreende a transfusão de sangue[9], a doação de esperma e a manipulação de óvulos.
Essa disposição invalida a peremptória afirmação de Clovis Bevilaqua de que na classe das coisas excluídas do comércio está o corpo do indivíduo, pois o homem, por motivos de ordem moral, não pode ser autorizado a dispor do seu cadáver, nem de parte de seu corpo.[10]
Aceita a comercialização de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante, deve ser reconhecida a revogabilidade dos atos de disposição. O arrependimento poderá ser manifestado a qualquer instante, sem que se possa invocar uma indenização por parte do doador arrependido, eis que se está diante de um ato de mera liberalidade, de caráter unilateral. O pagamento de indenização não poderá se constituir, sob nenhuma hipótese, num meio coativo para forçar a entrega. Nos casos de disposição do próprio corpo, a voluntariedade da decisão é o princípio máximo.
As divergências apresentadas não são apenas fruto do pensamento arbitrário do indivíduo. Na realidade, desde que foi abolida a escravidão, em todos os países e nos diplomas internacionais, o corpo não é mais assimilado às coisas que se podem comprar e vender. Delinear as diferenças entre sujeito e objeto fixou-se como um dos pilares da cultura jurídica dos tempos modernos.
Portanto, aceitar indiscriminadamente qualquer tipo de negócio que envolva o corpo humano ou suas partes é como se se estivesse a retroceder no tempo. Em resposta a essas inquietações torna-se necessário dilatar os orbes dos direitos e liberdades, promovendo um estatuto do corpo que leve em consideração os fantásticos avanços da área biomédica contra o estabelecimento de uma futura corrupção biológica.
[1] QUADRILHA é suspeita de tráfico de órgãos. O Globo, Rio de Janeiro, 22 fev. 1997. O País, p. 10.
[2] GARRAFA, Volnei. O mercado de estruturas humanas. Bioética, Brasília, v. 1, n. 2, p. 115, 1993. Simpósio: Pacientes Terminais.
[3] BERLINGUER, Giovanni. Corpo humano: mercadoria ou valor? Estudos Avançados, São Paulo, v. 7, n. 19, p. 174, 1993.
[4] GARRAFA, Volnei. O mercado de estruturas humanas. Bioética, Brasília, v. 1, n. 2, p. 118, 1993. Simpósio: Pacientes Terminais.
[5] KUMMEROV, Gert. Perfiles juridicos de los transplantes. Mérida: Universidad de los Andes, 1969, p. 23.
[6] ENGELHARDT JR., H. Tristam. Manuale di bioetica. Milano: Il Saggiatore, 1991, p. 417-418.
[7] GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 1, 1998, p. 156.
[8] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil: teoria geral de direito civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 1, 1997, p. 159.
[9] O sangue humano, como produto extraído do organismo, tem sua doação estimulada por uma política que disciplina a atividade homoterápica no Brasil, através da Lei n. 7.649, de 25 de novembro de 1988, e organiza um sistema de coleta, processamento, armazenamento e transfusão (art. 199, parágrafo 4º da C.F./88), sendo proibida a sua comercialização. As técnicas para esse fim são disciplinadas pela Portaria 1.376, de 19 de novembro de 1993, do Ministério da Saúde.
[10] BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil: comentado. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, v. 1, 1921, p. 296. Comentários ao art. 69.