O momento da morte
para efeito de transplante
Professora Sílvia Mota
Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Nada ou ninguém talvez expresse, com mais diafaneidade, a tensão fixada na fronteira entre a vida e a morte tal esta frase elucidativa de Christian Barnard: “Minha tomada de consciência - o momento em que a enormidade daquilo tudo me deixou desnorteado - foi precisamente depois que extirpei o coração de Washkansky. Abaixei a vista e vi aquela cavidade [...] A comprovação de que diante de mim se encontrava um homem estendido, um homem sem coração, porém vivo, me parece que foi o momento que me infundiu mais pavor.”[1]
Desde então a Morte perde a conotação romântica da mitologia grega onde, juntamente com o Sono, se fazia irmã gêmea da Noite, eternizados pelas palavras de Shakespeare: “É o sono teu repouso mais doce; o invocas com frequência, e logo és bastante estúpido para tremer diante da morte, que não é nada mais."[2]
Sandro Spinsanti comenta que a era dos transplantes faz emergir questões éticas que têm dois efeitos: negativamente, indica os limites que não devem ser ultrapassados e, positivamente, aponta valores nos quais a tomada de decisões deve inspirar-se.[3] O Dr. Juro Wada, da Escola de Medicina de Sapporo, que, em agosto de 1968, realizou o primeiro transplante de coração no Japão alegou que, ao chegar à decisão de realizar o transplante, resolveu salvar a vida de um homem em vez de ser forçado a presenciar a morte de dois.[4]
Atualmente, as novas e difíceis questões ligadas aos transplantes exige uma nova revisão do conceito de morte que se faça projetar no campo jurídico, pois não cabe mais à ética ou a teologia moral refugiar-se nos velhos temas ou em soluções inoperantes, fugindo à missão que lhes foi confiada.[5] Essa nova visão libera Christian Barnard de ter cometido, como muitos afirmam, um verdadeiro homicídio quando do seu primeiro transplante de coração, na cidade do Cabo.[6]
Compreende-se, pois, a razão pela qual o corpo, mesmo sem vida, mereça cuidado todo especial e o porquê dos obstáculos criados para a sua utilização em estudos médicos, o que por muito tempo travou o avanço da Medicina. Em verdade, é necessário, afirma José Carlos Moreira Alves: “[...] a demonstração inequívoca da ocorrência da morte, que é a morte encefálica.”[7] Sem correções o posicionamento do autor, reafirmado pela ordem legal, que somente a partir da morte encefálica permite a utilização de órgãos e tecidos que devem ser retirados, em tempo diminuto, do organismo morto, para o êxito do transplante.
Qualquer dúvida na determinação da morte e de seu momento há de ser resolvido, no entendimento de Carlos María Romeo Casabona, em favor da pessoa que se encontra na referida situação, com exclusão de qualquer outro interesse, por mais importante e atendível que este pareça.[8]
Ensina Avelino Medina, a respeito do assunto, que a morte não é um momento, mas parte de um processo que, em certas circunstâncias, pode ser interrompido por não ser necessariamente terminal. A posição filosófica ante os eventos da morte varia conforme a cultura e a ideologia de determinada sociedade. O grande problema, continua o autor, é o diagnóstico seguro de morte cerebral, visto que nenhum processo tecnológico isolado se mostrou integralmente satisfatório.[9]
Se bem que pesem essas considerações, no Brasil, os critérios a serem observados para o diagnóstico da morte cerebral vêm fixados no art. 3º da Lei n° 9.434 de 1997. Deverá ser constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. No parágrafo 3º admite o artigo a presença de médico de confiança da família do falecido no ato da comprovação e atestação da morte encefálica.
[1] BARNARD, Christian apud SANTOS, Celeste Cordeiro Leite Santos. Transplante de órgãos e eutanásia: liberdade e responsabilidade. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 160.
[2] SHAKESPEARE apud MENEZES, Evandro Moniz Corrêa de. Direito de matar: eutanásia. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 45.
[3] SPINSANTI, Sandro. Ética biomédica. Tradução Benoni Lemos. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 185.
[4] WADA apud TOYNBEE, Arnold, IKEDA, Daisaku. Escolha a vida: um diálogo sobre o futuro. 2. ed. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Record, 1976, p. 92. Publicado originalmente em inglês pela Kodansha International como The Toynbee-Ikeda dialogue e pela Oxford University como Choose life.
[5] TODOLI, José. Ética dos transplantes. São Paulo: Herder, 1968, p. 1.
[6] “Não existiria questão jurídico-penal individual ou socialmente aflitiva se os transplantes cardíacos se fizessem de pessoas que faleceram, ou seja, falando em claridade castelhana, de cadáveres. Porém, a realidade, não obstante equívocos, ficções e subterfúgios que a respeito se usam para encobrir o que acontece no interior das clínicas, é que existem eloquentes indícios racionais de que os corações que se transplantam provêm de pessoas que todavia vivem e que as equipes médicas que as realizam se esforçam por criar e pôr em uso um novo conceito de morte encefalográfica que supere o conceito orgânico de vida.” HERTA, Mariano Jiménez apud SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Transplante de órgãos e eutanásia: liberdade e responsabilidade. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 161-162.
[7] ALVES, José Carlos Moreira. Os aspectos jurídicos, éticos e legais dos transplantes de órgãos. Revista de Direito Renovar, Rio de Janeiro, n. 1, p. 8, jan./abr. 1995.
[8] ROMEO CASABONA, Carlos María. Tendencias legales sobre los transplantes de órganos. In: GAFO, Javier (Ed.) Transplantes de órganos: problemas técnicos, éticos y legales. Madrid: Ediciones Gráficas Ortega, 1996, p. 111. (Dilemas Eticos de la Medicina Actual, 10).
[9] MEDINA, Avelino. Distúrbios da consciência: coma. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 1984, p. 23.