O cadáver e a sua natureza jurídica
 Professora Sílvia M L Mota
Poeta e Escritora do Amor e da Paz


 
Quando o corpo humano, obedecendo a um fenômeno natural, extingue toda a sua atividade vital, fenece, transformando-se em cadáver. Passa a ser um corpo inanimado, sem vida. Pessoa morta.
 
Com referência ao ser humano, a definição de Cabanellas Torres (1983, p. 77) indica que cadáver são os restos que perderam a vida, o corpo do homem ou da mulher que morreram. De Cupis (1961, p. 93) advoga que o corpo humano após a morte torna-se coisa, classificando-se entre as coisas extra-commercium. Sendo assim, por cadáver entende-se os despojos inanimados de um ser humano. Consideram-se os restos de um natimorto, mas, não o feto. Não é necessário que os referidos despojos estejam íntegros; todavia, não se podem resumir em partes isoladas de um corpo humano, assim como os órgãos, tecidos ou partes mantidas para fins de pesquisa científica. Da mesma forma, não é procedente enlear na significação os restos mortais, que, pela sua antiguidade, conquistaram o jaez arqueológico ou histórico das múmias ou relíquias.
 
Com a morte cessa, irreversivelmente, a capacidade corporal da consciência, arrancando do Código Civil brasileiro que se extingue, nesse momento, a personalidade, a qualidade do ente considerado pessoa.
 
O cadáver está indubitavelmente compreendido na categoria das coisas, por ser coisa tudo o que carece de personalidade. Respeita-se, entretanto, o corpo inanimado como extensão da personalidade daquele que um dia foi pessoa, o que o faz ser considerado pelo ordenamento jurídico. Além da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, apresenta-se no direito positivo brasileiro a Lei nº 8.501, de 30 de novembro de 1992, que dispõe sobre a utilização de cadáver não reclamado para fins de estudos ou pesquisas científicas.

Interessante a posição de Pereira (1977, p. 417): “Depois da morte [...] o cadáver é uma coisa, da mesma forma que são coisas as partes destacadas do corpo sem vida, como os ossos, as peças anatômicas p+reparadas, as quais, por isso mesmo, podem ser objeto de alguma relação jurídica, ou ser objeto de negócios jurídicos restritos.“ Veja-se que o autor considera viável que ocorram negócios jurídicos envolvendo a pessoa morta.

Em tempos passados, na falta de disposições legais, a jurisprudência necessitou fixar uma orientação exclusivamente fundada nos princípios gerais de direito deduzidos de casos análogos e até nos princípios de direito natural. É bem conhecida uma sentença portuguesa de 31 de agosto de 1847, na qual, discutindo-se a propriedade do cadáver da mulher de Vieira de Castro, considerou-se que: “[...] os restos mortais de qualquer indivíduo juridicamente não podem ter-se como coisas para as tornar suscetíveis de apropriação e propriedade, nos termos dos artigos 366º, 479º e 2167º do Código Civil (então vigente), mas sim como pessoa, embora destituída de vida e quando menos, relíquias dela [...]. Eis a Ementa: “O cadáver da mulher assassinada pelo marido pertence aos parentes dela, e não ao marido ou parentes dele” (MARTINS, 1986, nota 21, p. 34-39).
 
No Brasil da década de 40, Fonseca (1940, p. 142), em comentário a um acórdão da Terceira Câmara do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, reconheceu, apoiado em Ferrara, que a natureza familiar do direito sobre o cadáver não passa de um direito-dever concedido para permitir aos membros da família o dever de tributarem as últimas homenagens ao finado, provarem sobre o seu sepultamento e cerimônias fúnebres, se ele próprio não houver disposto a respeito, devendo-se assim atender aos liames de sangue e de matrimônio para fixar que o pode exercer, sem que, com isso, deixe o cadáver de ser res extra commercium, só objeto de outros direitos privados, excepcionalmente, quando a lei ou a vontade do defunto hajam permitido um uso lícito, como os estudos anatômicos.
 
Na literatura jurídica, é lição apresentada por De Cupis (1961, p. 93) que, não obstante a extinção da personalidade jurídica, o direito tutela o corpo humano inanimado. Depois da morte, o corpo humano torna-se uma coisa submetida à disciplina jurídica, coisa, no entanto, que não podendo ser objeto de direitos privados patrimoniais, deve classificar-se entre as coisas extra commercium. Explica que não sendo a pessoa, enquanto viva, objeto de direitos patrimoniais, não o será também o cadáver, o qual, apesar da mudança de substância e função, conserva o cunho e o resíduo da pessoa viva. A comerciabilidade estaria, pois, em nítido contraste com tal essência do cadáver, o que, adverte, ofenderia a dignidade humana.
 
Advoga Messineo (1952, p. 18), que com a morte o corpo cessa de ser pessoa e torna-se objeto, podendo ser comercializado em vida pela própria pessoa para fins científico ou didático, com efeitos futuros e de acordo com a legislação sanitária. Em decorrência, salienta que não é bem que constitua herança. Sampaio (1987, p. 214) bate ao mesmo refrão: “O cadáver não é visto como bem que possa ser transmissível por herança. Essas colocações são fundamentais, pois reafirmam que a vontade da pessoa é soberana quanto à destinação de seu corpo, após a morte, como o é em relação a seus bens. A ninguém, nem aos familiares, nem ao Estado, é permitido contrariar essa vontade.”
 
Percebe-se que o direito sobre o corpo longe está de se limitar à duração da vida. Em geral, reduzem os autores o problema da natureza jurídica do cadáver à questão de saber se deve ser qualificado como coisa e, na hipótese afirmativa, qual a categoria de coisas em que se pode enquadrá-lo. Cunha Gonçalves, no entanto, opina que o cadáver não é coisa, porquanto, se pela morte: “[...] a personalidade fica extinta, o cadáver, como resíduo ou invólucro dela, é ainda objeto de respeito, sendo punido quem o desacatar; e certo é que uma simples coisa não tem de ser respeitada.”
 
Se a polêmica persiste, para enriquecer o desenvolvimento de um pensamento crítico a respeito do tema, cito neste momento o  disposto no artigo 82 do Código Civil nacional, de 2002: “São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”. Sendo assim, trata-se o cadáver de um bem móvel sui generis, extra-commercium
e indivisível.
 

 
Referências
 
DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Tradução por Adriano Vera Jardim e Antonio Miguel Caeiro. Lisboa: Morais Editora, 1961. [Tradução de: I diritti della personalitá].
 
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Cadáver: disposição. In: FRANÇA, Rubens Limongi (Coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 417.
 
MARTINS, António Carvalho. A colheita de órgãos e tecidos nos cadáveres. Coimbra: Coimbra, 1986.
 
FONSECA, Arnoldo Medeiros da. [Comentários a um acórdão do Rio Grande do Sul]. Revista de Critica Judiciaria, Rio de Janeiro, v. 31, n. 4, p. 142, abr. 1940.
 
MESSINEO, Francesco. Manuale di diritto civile e comerciale: codice e norme complementari: parte prima. Milão: Giuffrè, 1952. v. 2.
 
SAMPAIO, Amuramy Lopes. Direitos da personalidade e doação de órgãos. Dissertação de Mestrado apresentada à Fundação Universidade Estadual de Londrina. Centro de Estudos Sociais Aplicadas, para obtenção do Título de Mestre em Direito das Relações Sociais. Londrina, 1987.

 
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 24/08/2016
Reeditado em 21/05/2021
Código do texto: T5738966
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.