Existe um direito de procriação propriamente dito?
Texto contido em:
MOTA, Sílvia. Da bioética ao biodireito: a tutela da vida no âmbito do direito civil. 1999. 308 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil)–Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. Não publicada. [Aprovada com distinção].
Os novos fatos que, desde o nascimento da inglesinha Louise, decorrem das técnicas de procriação assistida introduzem no mundo jurídico inúmeras preocupações, que têm seu início numa fundamental questão: pode o ser humano arrogar-se o direito de procriação? Interessa, sobretudo, nesse momento volver o olhar às relações que possam opor-se com os atributos da dignidade da pessoa humana, a sua integridade física, intimidade e direito de procriação, impondo-se vasculhar no reservatório constitucional as estacas fundamentais que sustentarão a coexistência pacífica das práticas de inseminação artificial com tais normas.
Num entendimento restrito, nem a Constituição Federal brasileira de 1988, nem as Declarações e Convênios internacionais reconhecem explicitamente o direito de procriação ou reprodução como tal. O que existe é um direito à vida e à integridade corporal, donde não pode ser deduzido o direito de procriar, mas tão somente o direito de não ser privado da capacidade de reprodução, já que essa privação suporia um ataque à integridade corporal. A Carta Magna brasileira também não expressa o direito de constituir uma família, embora sua proteção pelo Estado esteja prevista no art. 226. Mas, se possível for, asseverar de algum modo o direito de fundar uma família, necessariamente terá de ser reconhecido o direito a ter descendência, a procriar, pois este se elevaria, nas palavras de Carlos María Romeo Casabona, como pressuposto imprescindível para o exercício do primeiro.[1]
A Constituição Federal brasileira tutela o casamento com plena igualdade jurídica (parágrafo 5º do art. 226), assegurando assistência à família na pessoa de cada um dos seus integrantes (parágrafo 8º); garante o direito à inviolabilidade pessoal e familiar (inc. X, do art. 5º) e, além disso, no art. 6º, no rol dos direitos sociais, protege a maternidade (inc. XVIII) e a paternidade (inc. XIX). Por outro lado, a Declaração Universal de Direitos Humanos reconhece que os homens e as mulheres, a partir da idade nubil, têm direito, sem restrição alguma por motivos de raça, nacionalidade ou religião, a casar-se e fundar uma família; e desfrutarão de iguais direitos quanto ao matrimônio, durante o matrimônio e em caso de dissolução do matrimônio. (art. 16.1). Também, em 1950, o Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, reconhece o direito de toda pessoa ao respeito de sua vida privada e familiar (art. 8.1), da mesma forma que a partir da idade núbil, o homem e a mulher têm direito a casar-se e a fundar uma família segundo as leis nacionais que regrem o exercício deste direito (art. 12).
A tentativa que aqui se faz é a de invocar desse conjunto de preceitos, o direito a fundar uma família. A proteção ao direito à vida familiar - valor essencialmente democrático, já que todos os sistemas totalitários tratam de restringi-la ou mesmo suprimi-la - sugere a garantia da liberdade de todos os cidadãos sobre a decisão de ter ou não descendência sem a interferência do poder Estatal, já que isso afetaria a esfera privada.
Uma visão ampliada do direito contido no inc. X, do art. 5º, acima referido, é possível, primeiramente, a partir do inc. III do art. 1º, onde se afirma como fundamento de um Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana e, em segundo lugar, porque as normas relativas aos direitos fundamentais e as liberdades que a Constituição brasileira reconhece não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (parágrafo 2º do art. 5º da Constituição Federal).
Por outro lado, recorre-se ao art. 12 do Convênio Europeu como referencial de fonte interpretativa dos direitos familiares e, como tal, fundamento do direito constitucional de fundar uma família e seu pressuposto, o direito de procriar.
Relevante lembrar que a Constituição Federal brasileira tutela não apenas a família fundada no casamento, mas protege a família, surgida da união estável entre o homem e a mulher (parágrafo 3º, do art. 226), estabelecendo proteção integral e irrestrita aos filhos e sua igualdade perante a lei, proibidas quaisquer discriminações relativas à filiação (parágrafo 6º do art. 227). Em conseqüência, o direito de procriar estende-se aos casais não unidos pelo matrimônio. À família assentada no fato da procriação (parágrafo 4º, do art. 226), cabe também a proteção estatal, concluindo-se que, como conseqüência do direito à intimidade familiar, a mulher ou o homem podem fundar uma família sustentados na descendência que hajam tido, em decorrência de relação passageira ou circunstancial.
Apesar do reconhecimento ao direito de procriar, impossível fugir às suas limitações, ao fato de que não é absoluto. A transmissão de doenças hereditárias impõe-se como limitação a esse direito, desde que, na atualidade, existem meios de se detectar genes defeituosos.[2] Mas a discussão que se avoluma rapidamente não pode olvidar os marcos constitucionais aqui aguçados, pouco favoráveis para inocentar limitações dessa natureza.
Entendida a existência de um direito de procriar, a utilização das técnicas de procriação assistida, como método de reprodução alternativo dirigido aos casais impedidos de ter uma prole em razão da infertilidade, adensa-se como legítima.
Texto contido em:
MOTA, Sílvia. Da bioética ao biodireito: a tutela da vida no âmbito do direito civil. 1999. 308 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil)–Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. Não publicada. [Aprovada com distinção].
Os novos fatos que, desde o nascimento da inglesinha Louise, decorrem das técnicas de procriação assistida introduzem no mundo jurídico inúmeras preocupações, que têm seu início numa fundamental questão: pode o ser humano arrogar-se o direito de procriação? Interessa, sobretudo, nesse momento volver o olhar às relações que possam opor-se com os atributos da dignidade da pessoa humana, a sua integridade física, intimidade e direito de procriação, impondo-se vasculhar no reservatório constitucional as estacas fundamentais que sustentarão a coexistência pacífica das práticas de inseminação artificial com tais normas.
Num entendimento restrito, nem a Constituição Federal brasileira de 1988, nem as Declarações e Convênios internacionais reconhecem explicitamente o direito de procriação ou reprodução como tal. O que existe é um direito à vida e à integridade corporal, donde não pode ser deduzido o direito de procriar, mas tão somente o direito de não ser privado da capacidade de reprodução, já que essa privação suporia um ataque à integridade corporal. A Carta Magna brasileira também não expressa o direito de constituir uma família, embora sua proteção pelo Estado esteja prevista no art. 226. Mas, se possível for, asseverar de algum modo o direito de fundar uma família, necessariamente terá de ser reconhecido o direito a ter descendência, a procriar, pois este se elevaria, nas palavras de Carlos María Romeo Casabona, como pressuposto imprescindível para o exercício do primeiro.[1]
A Constituição Federal brasileira tutela o casamento com plena igualdade jurídica (parágrafo 5º do art. 226), assegurando assistência à família na pessoa de cada um dos seus integrantes (parágrafo 8º); garante o direito à inviolabilidade pessoal e familiar (inc. X, do art. 5º) e, além disso, no art. 6º, no rol dos direitos sociais, protege a maternidade (inc. XVIII) e a paternidade (inc. XIX). Por outro lado, a Declaração Universal de Direitos Humanos reconhece que os homens e as mulheres, a partir da idade nubil, têm direito, sem restrição alguma por motivos de raça, nacionalidade ou religião, a casar-se e fundar uma família; e desfrutarão de iguais direitos quanto ao matrimônio, durante o matrimônio e em caso de dissolução do matrimônio. (art. 16.1). Também, em 1950, o Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, reconhece o direito de toda pessoa ao respeito de sua vida privada e familiar (art. 8.1), da mesma forma que a partir da idade núbil, o homem e a mulher têm direito a casar-se e a fundar uma família segundo as leis nacionais que regrem o exercício deste direito (art. 12).
A tentativa que aqui se faz é a de invocar desse conjunto de preceitos, o direito a fundar uma família. A proteção ao direito à vida familiar - valor essencialmente democrático, já que todos os sistemas totalitários tratam de restringi-la ou mesmo suprimi-la - sugere a garantia da liberdade de todos os cidadãos sobre a decisão de ter ou não descendência sem a interferência do poder Estatal, já que isso afetaria a esfera privada.
Uma visão ampliada do direito contido no inc. X, do art. 5º, acima referido, é possível, primeiramente, a partir do inc. III do art. 1º, onde se afirma como fundamento de um Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana e, em segundo lugar, porque as normas relativas aos direitos fundamentais e as liberdades que a Constituição brasileira reconhece não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (parágrafo 2º do art. 5º da Constituição Federal).
Por outro lado, recorre-se ao art. 12 do Convênio Europeu como referencial de fonte interpretativa dos direitos familiares e, como tal, fundamento do direito constitucional de fundar uma família e seu pressuposto, o direito de procriar.
Relevante lembrar que a Constituição Federal brasileira tutela não apenas a família fundada no casamento, mas protege a família, surgida da união estável entre o homem e a mulher (parágrafo 3º, do art. 226), estabelecendo proteção integral e irrestrita aos filhos e sua igualdade perante a lei, proibidas quaisquer discriminações relativas à filiação (parágrafo 6º do art. 227). Em conseqüência, o direito de procriar estende-se aos casais não unidos pelo matrimônio. À família assentada no fato da procriação (parágrafo 4º, do art. 226), cabe também a proteção estatal, concluindo-se que, como conseqüência do direito à intimidade familiar, a mulher ou o homem podem fundar uma família sustentados na descendência que hajam tido, em decorrência de relação passageira ou circunstancial.
Apesar do reconhecimento ao direito de procriar, impossível fugir às suas limitações, ao fato de que não é absoluto. A transmissão de doenças hereditárias impõe-se como limitação a esse direito, desde que, na atualidade, existem meios de se detectar genes defeituosos.[2] Mas a discussão que se avoluma rapidamente não pode olvidar os marcos constitucionais aqui aguçados, pouco favoráveis para inocentar limitações dessa natureza.
Entendida a existência de um direito de procriar, a utilização das técnicas de procriação assistida, como método de reprodução alternativo dirigido aos casais impedidos de ter uma prole em razão da infertilidade, adensa-se como legítima.
[1] ROMEO CASABONA, Carlos María. El derecho y la bioética ante los límites de la vida humana. Madrid : Centro de Estudios Ramón Areces, 1994, p. 119.
[2] Sérgio Ferraz nega a existência de um direito à procriação, principalmente nesses casos. Para o autor, os princípios constitucionais tutelares da criança apontam, nitidamente, para a necessidade de ser o nascimento precedido de cuidados assecuratórios de uma infância sadia e feliz. Acima de tudo, na procriação, o que vale não é simples e eventual direito à vida, mas sim a uma vida saudável. O que importa, precipuamente, é o interesse da criança a gerar, e não, a satisfação dos pais, em porem alguém no mundo. FERRAZ, Sérgio. Manipulações biológicas e princípios constitucionais : uma introdução. Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 45.