Breves antecedentes do Direito Natural
Síntese e adaptação de texto contido em:
MOTA, Sílvia. Primeiras lições do direito.
Obra em fase de revisão para publicação.
 
1 JUSNATURALISMO ANTIGO E MODERNO
 
1.1 Noções conceituais
 
O Jusnaturalismo é a expressão com a qual se designam inúmeras correntes de pensamento que admitem, além do Direito Positivo (ordem jurídica estabelecida pelo Estado), a existência de uma outra ordem, superior àquela, denominada Direito Natural (expressão do justo) e que deve orientar o trabalho do legislador humano[1], constituindo-se, pois, no ordenamento ideal correspondente a uma justiça superior e suprema.
 
Há diversas maneiras de se conceber o Direito Natural. É a expressão da natureza humana; uma forma de direito que brota das tendências íntimas que impelem o homem para o fim próprio e que corresponde às exigências dominantes da natureza humana.[2]
 
O ser humano guarda dentro de si normas de comportamento superiores ao Direito positivo. São estas leis não escritas que ordenam o respeito a Deus, à liberdade, aos bens, à defesa da pátria e constituem bases permanentes e sólidas de toda a legislação. Sendo assim, o Direito Natural não é escrito, não é criado pela sociedade, nem pelo Estado. É espontâneo. É o conjunto de princípios essenciais e permanentes atribuídos à natureza (na Antiguidade greco-romana), a Deus (na Idade Média), ou à razão humana (na Época Moderna), que serviriam de fundamento e legitimação ao direito positivo, o direito criado pela vontade humana.
 
1.2 Jusnaturalismo antigo
 
Numa primeira etapa - antiga - era tido como participação da população humana na ordem racional do Universo.
 
Este item pretende, ao invés de detalhar a ideia jusnaturalista, enfocar as diversas maneiras através da quais se coloca, nas fases da evolução do pensamento humano, identificando, através dos tempos, a necessidade de fundamentação filosófica para o fim último do Direito. Portanto, o estudo dividir-se-á de acordo com as etapas culturais mais eloquentes pelas quais passou a Humanidade.
 
1.2.1 O Direito Natural no Oriente: Egito, Babilônia, China e entre os hebreus
 
Numa primeira etapa - antiga - era tido o Direito Natural como participação da população humana na ordem racional do Universo.
 
NO EGITO
 
Império Menfita: (2895 a 2540 a.C. aproximadamente) o Faraó = Porta do Céu, considerado como um deus, não detinha um poder ilimitado e sem justificações. Nomeava os escribas. Os súditos pagam tributos em espécie, mas prestam serviços compulsórios nas pirâmides e nas obras de irrigação.
 
Grande Revolução: (2360 a 2160 a.C.) Império tebano funciona como órgão supremo de coordenação e direção dos esforços de todos a serviço da coletividade. Procurava-se um acordo entre o antigo direito divino e uma associação ativa dos súditos, em prol do bem comum.
 
No Egito, respeitavam-se deveres imperativos, morais e jurídicos, recebidos diretamente do Direito Natural, tais como: direito à vida e à integridade corporal, direito de formar família, direito aos bens necessários à subsistência dos outros.
 
Acreditavam no Juízo dos Mortos: para alcançarem a imortalidade, acreditavam que, do outro lado do mundo seriam julgados responsáveis pelos atos praticados nesta vida. Essa crença atuava como forte poder de controle social e implicava obrigações sociais específicas: as pessoas deveriam tratar francamente seus concidadãos e respeitar os direitos dos membros mais fracos da sociedade.[3]
 
NA BABILÔNIA
 
A autoridade se justificava na busca do bem coletivo. Ao príncipe babilônico cabia ministrar a justiça, para que o forte não oprimisse nem lesionasse o fraco, a dirimir as contendas, podendo usar da equidade para suprir as injustiças, abrandando o rigor das leis escritas.
 
Desta época o famoso Código de Hammurabi, ditado a este rei pelo deus Schamasch, senhor da justiça. No preâmbulo deste Código escreve-se que fora o rei Hammurabi chamado a para promover o bem entre os homens, para fazer valer o direito, exterminar a perversidade e o mal. Ao soberano cabia não apenas regular a vida civil, mas conjugá-la à ordem desejada pelos deuses.
 
No Código de Hammurabi encontra-se um apelo aos sucessores de Hammurabi, para que administrem a justiça, suprimam as diferenças, extirpem do país os perversos e procurem a felicidade dos seus súditos. Além disso, contém maldições para quem derrogasse as suas disposições.
 
Pelo Código de Hammurabi, entre outras disposições:
 
- os escravos podiam casar-se com mulheres livres, sendo livres os filhos dessas uniões;
- a escravidão não era considerada estigma social;
- as mulheres gozavam de considerável liberdade (controlavam o dote, obtinham pensão alimentícia no caso de divórcio, etc.);
- existiam leis reguladoras da navegação e do tráfico mercantil.
 
NA CHINA
 
A China, dividida em uma série de principados, foi unificada na dinastia dos Chou (1050-246 a.C.) Com a decadência desta seguiu-se um feudalismo caracterizado por guerras e desordens que se findaram com Ch’uantg-ti (221 a.C.). Nessa época florescem as escolas filosóficas, inclusive a fundada por Kug-tu-tse, o confucionismo.
 
Confúcio, admirador da tradição moral chinesa cuida de restaurar a antiga sabedoria dos antigos reis, pregando no sentido da formação de governantes justos. Fez o filósofo muito para manter a vida familiar estável. O casamento foi alvo de atenção especial, embora fossem os arranjos feitos pelos parentes ou casamenteiros. Tolerava a poligamia e o concubinato, em função dos bens dos filhos. Manifestou-se contrário à manutenção do governo através do medo e de medidas coercitivas e foi contra a pena capital.
 
Outra escola filosófica importante da época clássica foi aquela fundada por Lao-tsé (395-303 a.C.), o taoísmo, que apoia a estrutura religiosa-moral-jurídica no Tao o significado, em última análise, de ordem, caminho e norma supremos, convertendo-se assim em ordem normativa. A comunidade humana deve ser o reflexo da ordem do universo. O ponto de encontro entre esta ordem do universo e a coletividade deve ser o imperador = filho do Céu.
 
NA ÍNDIA
 
A Índia se apresenta como um mosaico de civilizações.
 
Bramanismo: crê na existência de um princípio eterno universal, causa única de tudo existente, substância pura, única e total que é o Brahman. Essa realidade encontra-se em nossa consciência como atman (espírito ou sopro vital), que é o substrato “[...] inconsciente dos fenômenos da consciência”. Brahman e atman são os princípios espirituais que respectivamente definem o cosmo e o homem.
 
Com a ascensão do bramanismo surge o sistema de castas, sendo que cada uma possui o seu dharma = a lei sagrada que acentuou a separação das castas, estabelecendo as sanções e prescrições para cada uma delas, constituindo-se num verdadeiro código peculiar, com normas próprias relativamente ao matrimônio, à alimentação e à atividade econômica.
 
Além da força sagrada, concebe-se, também o dharma como Direito Positivo em sentido estrito, como regra de comportamento imposta por uma autoridade central por meio de sanções.
 
Budismo: Buda defendeu um sistema de pensamento apoiado na lei e na crença do poder que emana do indivíduo, sendo a vida pura encontrada na bondade, com que pode interromper a série de reencarnações e entrar no Nirvana. Combatia a ira e impedia a inimizade no mundo, sugerindo a ideia de combater o bem e o mal (ideia tomada, mais tarde, por Jesus Cristo).
 
A Lei de Manu: surgida em torno do século II a.C., além de conter preceitos de ordem religiosa e moral, possui também normas jurídicas, dirigidas a todas as castas. Justifica o poder como função repressiva, já que o homem é naturalmente mau e só se submete mediante castigo. Tem o rei a função de impedir a anarquia, mediante a coação. O castigo devia ser imposto com base na equidade, oriunda da retidão e discernimento do julgador.
 
ENTRE OS HEBREUS
 
A civilização hebraica desenvolveu-se na antiga Palestina, correspondendo a uma região cercada pela Síria, pela Fenícia e pelos desertos da Arábia. Seu território era cortado pelo rio Jordão, cujo vale constituía a área mais fértil e favorável à prática agrícola e à sedentarização de sua população. O restante da Palestina, ao contrário, era formado por colinas e montanhas, de solo pobre e seco, e ocupado por grupos nômades dedicados ao pastoreio.
 
As tribos hebraicas chegaram à Palestina antes de 2000 a.C., conhecida há muito tempo como terra de Canaã devido aos seus primeiros habitantes, os cananeus. Tanto estes como os hebreus eram de origem semita, denominação moderna dos descendentes de Sem, mencionado no Antigo Testamento como o filho primogênito de Noé, e tido como o remoto antepassado dos hebreus (hebreu também significa povo do outro lado).
 
A principal fonte da história hebraica é a Bíblia, pois em sua primeira parte, o Antigo Testamento, são apresentados não apenas elementos morais e jurídicos dos hebreus, como também seus valores religiosos e narrativas históricas, muitas delas confirmadas pelas pesquisas arqueológicas. Essa simbiose entre seu desenvolvimento histórico e religioso explica por que seus principais personagens e feitos estão sempre envoltos pelo sagrado e sobrenatural.
 
As tribos semitas, no início da história hebraica, distribuíam-se entre a Síria oriental e a Mesopotâmia, empreendendo inúmeras guerras pela conquista territorial e para obtenção de escravos e mulheres. Quando um desses grupos semitas, os hebreus, chegou à Palestina, teve início a disputa pelo domínio da região, originando prolongados conflitos contra os cananeus e os filisteus, dos quais os hebreus saíram vitoriosos.
 
Os hebreus, estabelecidos na Palestina, organizaram-se em grupos familiares patriarcais, seminômades, iniciando o desenvolvimento das atividades agrícolas e pastoris. O primeiro grande líder hebreu, segundo o Antigo Testamento, foi Abraão (2166 a.C.), mesopotâmico originário da cidade de Ur, na Caldeia, considerado o primeiro patriarca hebreu. Dirigindo-se à Palestina, Abraão anunciava uma nova cultura religiosa, monoteísta, que mais tarde cimentaria a unidade dos hebreus; estes acreditavam que Abraão recebera de Jeová (lavé, deus dos hebreus), a promessa de uma terra para eles e seus descendentes, onde haveria de correr "leite e mel".
 
Na narração bíblica, depois de Abraão, as tribos hebraicas foram lideradas pelos patriarcas Isaac e Jacó (ou Israel), sendo que este último deixou doze descendentes que deram origem às doze tribos de Israel.
 
A seguir, devido aos diversos conflitos contra vizinhos e às dificuldades econômicas, muitos hebreus acabaram abandonando a Palestina, dirigindo-se para o Egito, onde permaneceram por mais de quatrocentos anos. Ao que parece, o faraó franqueava às tribos hebraicas as regiões próximas ao delta do Nilo, ricas para as pastagens, buscando obter produção agrícola e criar uma barreira defensiva contra as tribos beduínas próximas.[4]
 
Nas palavras de Carnelutti, os hebreus constituem-se no povo mais trágico dos povos da terra, cuja tragédia consistiu em se achar mais próximo a Deus, sem saber dele se aproximar.[5] Seu pensamento social voltou-se para o lado intelectual da vida, inclinado muito mais pelos seus conflitos sociais e consequentemente pela justiça, originária do sofrimento coletivo.
 
Seu espírito era marcantemente religioso. O Decálogo tinha eficácia de Direito divino, ressoando fortemente na vida social, política e jurídica.
 
Acreditavam num Deus vivo, atuante e pessoal, criador do homem à sua imagem e semelhança. A lei positiva divina foi recebida no Monte Sinai, por Moisés, como relatada no Êxodo (20:1 a 17). São alguns de seus preceitos: “Não matarás”; “Honra teu pai e tua mãe, a fim de que tenhas uma vida dilatada sobre a terra que Senhor teu Deus te dará”; “Não cometerás adultério”; Não desejarás a mulher do próximo” etc.
 
Os hebreus não se preocuparam em fundamentar as leis humanas, já que estas estavam impressas na Lei Mosaica. A Lei de Deus não somente estava contida na Lei dada a Moisés, mas também impressa na consciência dos homens.
 
A justiça para os hebreus possuía várias conotações: justiça moral, justiça humana, justiça divina.
 
1.2.2 O Direito Natural na Grécia anterior ao século VI a.C.
 
Encontra-se na Grécia o gérmen da teoria do Direito Natural.
 
Sófocles define um dualismo da lei, entre o naturalismo e o positivismo jurídico, na tragédia de Antígona.
 
A famosa tragédia de Sófocles (494-406 a.C.) é uma das mais primeiras manifestações do Direito Natural. Ouçamos, a título de reflexão, a voz de Antígona, convertida como num símbolo do Direito Natural, em diálogo com o rei Creonte, ao defender o direito de dar sepultura digna a seu irmão Polinice:
 
Creonte: - E te atreveste a desobedecer às leis?
 
Antígona: - Mas Zeus não foi o arauto delas para mim, nem estas leis são as ditadas entre os homens pela Justiça, companheira de morada dos deuses infernais; e não me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer de onde surgiram. [6]
 
Antígona é condenada à pena de ser enterrada viva.
 
Esta passagem leva a inquirir sobre a finalidade do Direito Positivo. Uma norma jurídica, embora se apresente como válida, em virtude do Poder do qual emana, pode nascer desprovida de conteúdo ético, pois florescida do arbítrio ou de valores percebidos somente pelo legislador. Isso dá ensejo a uma das mais intrincadas questões: obedecer ou não a estas leis; em outras palavras: obedecer ou não ao que se apresenta como legal, mas não é justo.
 
Aristóteles (384-322 a.C.) no livro V da Ética a Nicômaco distingue o justo por natureza do justo legal, estabelecido por leis emanadas da autoridade pública ou por convenções das partes.[7]
 
1.2.3 O Direito Natural em Sócrates
 
Sócrates nada deixou escrito. O que se sabe de seus ensinamentos foi deixado por Platão seu mais fiel discípulo, principalmente em Górgias, A República e Apologia. Sendo assim, paira certo mistério e um grande campo para especulações em torno da personagem histórica ou inventada. Sócrates é por si só um enigma.
 
Dialético é o método socrático. Faz-se através da exortação, indagação, ironia e maiêutica (= o parto das ideias e das almas) diante do interlocutor. O método é uma espécie de medicina da alma. Nasce da indução, com o exame dos casos particulares para chegar ao universal (procedimento empregado pela medicina). Sócrates ensina a necessidade de precisão nos conceitos: o que é aquilo de que se está tratando? Pela boca do oráculo de Delfos descobre ser o mais sábio dos homens, justamente por ser o único consciente de que nada sabe.
 
Preconiza, o filósofo, que o homem deve ajustar a sua conduta a uma ordem universal objetiva, aos valores do bem, da beleza e da justiça. Reconhecia uma atitude ética transcendente à vontade humana, válida para todos os homens, promulgada por leis não escritas dos deuses. Mas, reconhecia a lei decorrente da vontade humana, fixando-se nas questões morais. As leis devem ser obedecidas ao extremo, por serem emanação da vontade da pátria. Sendo assim, são sempre justas. Por tal motivo, recusou-se a fugir da prisão que o levaria à tirânica e injusta pena de morte, sob o argumento de ser imperativo aos homens bons observarem as leis más, para os maus não aprenderem a desrespeitar as leis boas.
 
1.2.4 O Direito Natural em Platão e Aristóteles
 
A peça central do pensamento de Platão era a doutrina das ideias: da realidade das coisas temos conhecimento duvidoso, porquanto a verdadeira realidade é a das ideias. As coisas do mundo são para nós apenas sombras, imagens das ideias respectivas que se encontram no céu.
 
Para Platão, a justiça é a virtude suprema, a causa da ordem e da harmonia, no sentido de que cada um cumpra o que tem de cumprir sem se imiscuir no que compete aos demais. A lei autêntica é a que se assemelha à lei ideal e nas normas postas pelos homens somente se dará a justiça quando realizarem a justiça ideal. A ideia do Direito é que deve ser o referencial do Direito humano.
 
Aristóteles, discípulo de Platão, afasta-se das suas ideias. À concepção idealista, contrapõe a realista.
 
O estagirita é tido como o pai do Direito Natural.
 
Divide a justiça em comutativa ou corretiva e distributiva. A primeira diz respeito ao homem enquanto é outro, ou seja, como igual. A segunda, diz respeito ao homem como membro da comunidade.
 
Para Platão e Aristóteles o Direito Positivo tem como fundamento completar o Direito Natural.
 
1.2.5 O Direito Natural entre os romanos
 
Em Roma havia o jus e o fas. O jus era o conjunto de normas formuladas pelos homens, destinadas à organização da vida dos romanos em sociedade; o fas reunia as normas divinas, religiosas, dirigidas às relações entre os homens e as divindades.
 
Nos primeiros tempos do mundo romano o fas imperava, cabendo sua aplicação aos pontífices, ministros religiosos supremos, que guardavam secretamente os princípios jurídicos que ordenavam as ações humanas.
 
Maria Clara Calheiros verifica em seus estudos que os dois conceitos nunca se confundem, sendo mesmo possível encontrar referências expressas ao fas como derivado da vontade divina e o jus da vontade humana. Mas, ainda assim, corresponderiam os conceitos de jus e fas da época histórica aos seus significados originais? Responde a mesma autora que as opiniões dividem-se. Para alguns estudiosos, entre eles Göthimg, Lambert, Hervelin, Wenger, Beseler, Düll, jus e fas eram termos antagônicos, tendo o primeiro origem no vocábulo jug, palavra que traduziria a ideia de um vínculo estabelecido pela vontade humana. Uma outra posição defendida por De Francisci é a que concebe jus e fas como partes integrantes de uma mesma realidade ontológica, ambas enquanto manifestação da vontade divina. A distinção operada teria então um mero matiz histórico: fas concebia-se como regulação das relações das gentes pré-citadinas, enquanto jus era o ordenamento próprio dos cidadãos. Assim, o parecia testemunhar o parentesco entre os étimos jus e jovis (Júpiter), divindade eleita para presidir aos destinos da cidade.[8]
 
Outros autores ainda entenderão fas, nefas e jus não como substantivos, mas como meros adjetivos, exprimindo a licitude ou ilicitude dos comportamentos humanos.
 
Noutra versão, jus poderia também ter representado o fruto do acordo de vontades dos cidadãos, cuja necessidade de fazer respeitar advinda do fas.
 
A este respeito, entende Antonio Guarino que jus se concebe como manifestação do uso que os humanos fazem do fas, da sua liberdade. Conceito mais bem formulado, este persistiu. Sendo assim, pensa-se que a separação operada pelos romanos entre fas e jus não indica a irreligiosidade deste último. Ao contrário, o jus se concebe como parte do fas, conceito mais abrangente do qual emergiu.[9]
 
A eclosão do Direito Natural neste povo se deu por influência do estoicismo, escola fundada em Atenas, cerca de 300 a.C., por Zenon de Cítio, filósofo grego que aconselha a indiferença e o desprezo pelos males físicos e morais. O homem estaria obrigado a agir eticamente conforme a natureza. A virtude e a razão deveriam não só imperar sobre as paixões, mas também extirpá-las. O fundamento do estoicismo encontra-se na submissão à lei eterna do mundo, às exigências da reta razão.
 
Cícero divulgou a doutrina estóica do Direito Natural em Roma, em páginas que exerceram uma influência decisiva no pensamento cristão dos primeiros séculos, no pensamento medieval e nas primeiras doutrinas jusnaturalistas modernas. Numa célebre passagem do seu livro De Republica, Cícero defende a existência de uma lei verdadeira, imutável e eterna, que não muda com os países e com os tempos e que o homem não pode violar sem renegar a própria natureza humana.
 
Cícero consagra a expressão direito natural, ao fazer a tripartida divisão do Direito Romano:
 
- jus civile => Direito Civil => direito privativo dos cidadãos romanos;
- ius gentium => Direito das Gentes => direito extensivo aos estrangeiros, sem embargo de que cada Estado tenha o seu próprio jus civile.
 
Ambos estes direitos, entretanto, não poderiam entrar em conflito com uma terceira partição: o jus naturale => Direito Natural => princípios norteadores, localizados acima do arbítrio do homem, extraídos filosoficamente da natureza das coisas, visando solucionar ou inspirar a solução dos casos in concreto; inerente à natureza humana.
 
A época clássica do Direito romano transcorre durante os séculos II e III da era Cristã. O pensamento dos juristas quanto à procura do justo submete-se ao pensamento de Aristóteles.
 
Gayo procede à divisão dicotômica do Direito:
 
- jus civile (o que cada povo dá a si mesmo), e
- jus gentium (o usado por todas as nações).
 
Ulpiano volta à divisão tríplice do Direito alcançada por Cícero. Ao falar do jus naturale, abrange a todos os animais, pois o define como o direito que Deus ensinou a todas as criaturas, não sendo exclusivamente próprio do gênero humano. Tal conceito foi adotado nas Institutas de Justiniano.
 
Os juristas romanos não estabeleceram nenhuma distinção precisa entre o Direito e a moral, mas tinham como certo serem sujeitos de Direito tanto o cidadão romano como todo membro da sociedade humana, convertendo o homem em titular de direitos naturais, conservados inclusive no estado de escravidão. A ideia do Direito Natural, entre os romanos, era tão importante, que se considerava o legislador a ela submetido.
 
Deve-se reconhecer que em Roma já se fundava uma Ciência do Direito autônomo.[10] Não apenas os moralistas, filósofos, teólogos ou sacerdotes cultivam o direito. Surge a figura do jurisconsulto, consciente do seu objeto de estudo.
 
No rastro da afirmação de que na Antiguidade clássica o direito era um fenômeno de ordem sagrada[11], tem-se que, entre os romanos era, o direito, uma forma cultural sagrada expressa eticamente através da prudência, virtude moral da cautela, do equilíbrio e do bom senso nos atos de julgamento. A partir deste referencial, alça um patamar peculiar a prudência, sob a designação especial de Jurisprudência.
 
A Jurisprudência Romana não parece ter por finalidade suprema a defesa dos interesses privados. Não é, pois, fruto da casualidade os romanos não procederem a uma classificação dos direitos nas categorias de conjunto (direitos reais, de personalidade, etc.), sendo seu esforço direcionado à construção de uma ordem e, nesse sentido, um jus.[12]
 
A palavra jurisprudentia, utilizada pelos romanos, liga-se à fronesis, proveniente da filosofia grega, significando discernimento, e entendida pelos gregos como virtude. Fronesis era uma espécie de virtude e capacidade para julgar. Seu exercício reclamava o desenvolvimento de uma arte no trato e no confronto de opiniões, proposições e ideias que, contrapostas, permitiam uma explanação das situações.[13] Esta arte correlaciona-se à dialeta (dialética) de Aristóteles, da forma como foi proposta por Aristóteles, como arte de discorrer ou argumentar por problemas e contraposições, e que também se denomina tópica, à qual juristas contemporâneos, como Theodor Viehweg (1979) e Chaim Perelman (1996) trouxeram notáveis contribuições.
 
O método dialético pode ser considerado como filosofia da natureza, como lógica do pensamento aplicada à compreensão do processo histórico das mudanças e dos conflitos sociais e como método de investigação da realidade.[14] Toda a abordagem dialética identifica-se com o princípio da unidade e luta dos contrários, onde todos os objetos e fenômenos apresentam aspectos contraditórios, os opostos não se apresentam simplesmente lado a lado, mas num estado constante de luta entre si. A dialética é contrária a todo conhecimento rígido. Tudo é visto em constante mudança: sempre há algo que nasce e se desenvolve e algo que se desagrega e se transforma.[15]
 
O pensamento prudencial dos romanos manifestou-se como um poder de argumentar e de provar.[16] O jurista romano era respeitado, mais do que pelo seu saber, pela sua gravitas, o que indicava sua proximidade com seus antepassados. A teoria jurídica romana distanciava-se da contemplação grega, assumindo-se através de uma manifestação autoritária dos exemplos e dos feitos dos antepassados e dos costumes daí derivados. Embora vincule-se, de alguma forma, à prudência e à retórica gregas, tem individualidade. A exemplo da prudência grega, não gravita unicamente na esfera da teoria. É, antes, uma ação que confirma e fundamenta o certo e o justo.
 
1.2.6 O Direito Natural na patrística
 
Cristo vem ao mundo e nenhum fato foi tão significativo para a evolução das ideias como o aparecimento do cristianismo.[17] O Direito Natural submete-se, também, à influência de tão poderoso acontecimento, afirmando a existência de uma ordem normativa objetiva, imutável e derivada da natureza, acima do Direito Positivo, vinculando-o.
 
Patrística é o nome que se dá à filosofia dos Padres da Igreja dos primeiros séculos (séc. II a VI), período que vai das epístolas paulinas até Santo Agostinho.
 
A religião cristã produziu forte impacto no ordenamento jurídico romano.
 
A primeira referência feita à lei natural no pensamento cristão é dada por São Paulo, na Epístola dos Romanos, 2: 14 e 15: “Quando então os gentios não tendo Lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles, não tendo Lei, para si mesmos são Lei; eles mostram a obra da lei gravada em seus corações, dando disto testemunho sua consciência e seus pensamentos que alternadamente os acusam ou defendem.”
 
Entre os Santos padres destacam-se Tertuliano, Latâncio, Santo Ambrósio, São João Crisóstomo e Santo Agostinho.[18]
 
1.2.7 O Direito Natural na Idade Média: Teoria Jusnaturalista do Teologismo
 
Na Idade Média, prevalece a ideia de que os princípios formadores do Direito Natural exsurgiam da inteligência e da vontade divinas (o Direito Natural como expressão da Razão Divina). A influência do Cristianismo e da Igreja Católica levou a identificar o núcleo essencial do Direito Natural com os princípios da mensagem cristã.
 
É a Teoria Jusnaturalista do Teologismo. Atribuía-se esses princípios a Deus, tendo como fundamento o pensamento de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) sobre a existência de uma Lex æterna (Lei Eterna), oriunda de Deus, através da qual ordenou-se o Universo.
 
A Lei Eterna é, portanto, a própria razão divina enquanto ordena todos os seres da criação (racionais e irracionais) para o seu fim, conforme a sua natureza. Em palavras do próprio Santo (S. tb., I-II, q. 93, a.1): “lex æterna nibil aliud est quam ratio divinæ sapientiæ, secundum quod est directiva omnium actuum et motionum” (“a lei eterna não é senão a razão da divina sabedoria enquanto dirige todos os atos e movimentos”). A Lei Eterna é a lei suprema, fonte e fundamento de todas as demais leis.
 
Os jusnaturalistas, de modo geral, negam validade às leis injustas. Direito injusto não é Direito.
 
São Tomás de Aquino coloca-se de maneira lapidar frente ao problema. Apesar de considerar ilegítimas as leis injustas, reconhece validade àquelas cujo mal provocado não chegar às raias do insuportável. Desconhecer essas leis traria mais prejuízos, o que justifica estimular a tolerância daqueles que a ela estão submetidos. Mas, continua a pregar, sendo o grau de falha insuportável aos desígnios humanos, isto é, incompatíveis com a dignidade da pessoa humana, evidencia-se o direito de resistência que permite a sua inobservância, pois não se trata de Direito, o que concede à resistência à sua aplicação uma natureza jurídica.
 
1.2.8 O Direito Natural na época moderna: Teoria Jusnaturalista do Racionalismo
 
 Com o fim da Idade Média, a Escola do Direito Natural ou Jusnaturalismo, teria a sua primeira fase com a publicação da obra De jure de belli ac pacis (Sobre os Direitos da Guerra e da Paz), no ano de 1625, da lavra de Hugo Grotius [Huig de Groot].
 
O humanista, jurista, epígono da escolástica, um dos fundadores do novo Jusnaturalismo (1583-1645), difundiu com grande eficácia a ideia de um direito natural, ou seja, não sobrenatural, um direito que tinha a sua fonte exclusiva de validade na sua conformidade com a razão humana. Este conceito do direito natural influiu profundamente na difusão 'da ideia da necessidade de lhe adequar o direito positivo e a constituição política dos Estados, bem como a da legitimidade da desobediência e dá resistência às leis e constituições que não se lhe adaptassem. Declara o mestre holandês que a justiça possui fundamento de razão, de maneira tão inamovível, que ela existiria mesmo que, por absurdo, Deus não existisse.[19] O poder de Deus, apesar de supremo, não seria ilimitado, pois, segundo Hugo Grotius, nem Deus poderia modificar o direito natural. Eis suas palavras: "[...] embora seja imenso o poder de Deus, podem-se, contudo, assinalar algumas coisas as quais não alcança [...] assim, pois, como nem mesmo Deus pode fazer com que dois e dois não sejam quatro, tampouco pode fazer com que o que é intrinsecamente mau não o seja [...] Por isso, até o próprio Deus se sujeita a ser julgado segundo esta norma [...]"[20] Mais tarde com Immanuel Kant (1724-1804), a nova fase assinala que os fundamentos do Direito Natural não decorriam da natureza das coisas, nem de Deus, mas, tão somente da razão humana. É a Teoria Jusnaturalista do Racionalismo.
 
continua>>>
 

REFERÊNCIAS
 
[1] BETIOLI, Antonio Bento. Introdução ao direito: lições de propedêutica jurídica. 7. ed. atual. São Paulo: Letras & Letras, 2000, p. 462.
 
[2] Ibidem, p. 397.
 
[3] BOGARDUS, Emory S. Evolução do pensamento social. Tradução Ruy Jugmann. Brasil/Portugal: Fundo de Cultura, 1965, v. I, p. 40.
 
[4] FONTE de pesquisa disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2004.
 
[5] CARNELUTTI. Arte del derecho. Buenos Aires: E.S.E.A., 1956, p. 39.
 
[6] SÓFOCLES. A triologia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 214.
 
[7] BETIOLI, Antonio Bento. Introdução ao direito: lições de propedêutica jurídica. 7. ed. atual. São Paulo: Letras & Letras, 2000, p. 462.
 
[8] CALHEIROS, Maria Clara. Ius, iustitia, derectum: prolegómenos a uma história da origem romanística dos modernos signos jurídicos linguísticos. Universidade do Minho, Portugal. Secção de Ciências Jurídicas Gerais Universidade do Minho. Disponível em: 20Calheiros.htm#_ftn3>. Acesso em: 17 abr. 2004.
 
[9] GUARINO, Antonio. L'ordinamento giuridico romano. 3. ed. Nápoles: Casa Edittrice Eugenio Jovene, 1959, p. 54 et seq.
 
[10] REALE, Miguel. Filosofia do direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 627-628.
 
[11] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 56.
 
[12] “A jurisprudência romana se desenvolveu numa ordem jurídica que, na prática, correspondia apenas a um quadro regulativo geral.” Ibidem, p. 57.
 
[13] Ibidem, p. 58.
 
[14] GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1994, p. 31.
 
[15] Ibidem,, p. 32.
 
[16] FERRAZ JR., Tercio Sampaio, op. cit., p. 60.
 
[17] GUIMARÃES, Ylves José de Miranda. Direito natural: visão metafísica & antropológica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 30.
 
[18] Ibidem, p. 32-33.
 
[19] A sociedade, na visão de Grócio, é um fato natural, oriundo do appetitus societatis, no entanto, aparece o Direito Positivo como resultado de um acordo ou de uma convenção, sendo este a expressão de um contrato, enquanto o Direito Natural que é uma expressão da Moral, não possui fundamento contratual.
 
[20] GROTIUS, Hugo. De jure de belli ac pacis: del derecho de la guerra y de la paz. Madrid: Reus, 1925, v. I, p. 54 apud ADEODATO, João Maurício. Ética, jusnaturalismo e positivismo no direito. Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito, n. 24, p. 206.
 
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 03/02/2014
Reeditado em 31/08/2016
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