CAPÍTULO 11 - RELAÇÃO JURÍDICA
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Feito um breve estudo do conceito de Direito, suas fontes e seu modo de aplicação, segue-se tratar da relação jurídica e seus elementos. Com isso, abandona-se a parte mais abstrata da Ciência Jurídica para arriscar uma aproximação mais concreta, considerando o Direito como uma relação social dotada de um certo conteúdo positivo.
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1 CONCEITO DE RELAÇÃO JURÍDICA: TEORIAS
O vocábulo relação, do latim relatio, relationem, quer dizer conexão natural existente entre duas pessoas, coisas ou fatos.[1] Como se vê, o termo abrange o homem, os objetos que o rodeiam e todo acontecimento ou situação ocorrida no mundo exterior. Esse homem, na sociedade, não objetiva a fins estritamente jurídicos, mas, ao contrário, são múltiplos os seus fins. Assim, deve-se reconhecer, nem todas as relações são jurídicas, embora, às vezes, seja possível reunir duas ou mais pessoas através de vínculos estáveis e objetivos.
Como distinguir, então, quais das situações sociais devem ser consideradas como jurídicas?
A esta pergunta procura-se resposta no século XIX, quando Savigny situou, de forma cristalina, o conceito de relação jurídica: uma relação entre várias pessoas determinada por uma regra de direito. Para Jhering, a relação jurídica está para a Ciência do Direito como o alfabeto está para a palavra.
Reconhece-se, a partir deste momento, ter alcançado, a Ciência Jurídica, sua maturidade.
Relação jurídica é, portanto, simplesmente, a relação da vida social disciplinada pelo Direito, mediante a atribuição, a uma pessoa (em sentido jurídico), de um direito subjetivo e a correspondente imposição a outra pessoa, de um dever jurídico.
No estabelecimento da relação jurídica, devem-se considerar dois enfoques relevantes. De acordo com a Teoria Tradicional, abalizada num ponto de vista individualista do Direito, as relações jurídicas seriam relações sociais assentadas por si mesmas, somente reconhecidas pelo Estado, pela necessidade de tutela. Numa outra visão, a Teoria Operacional faz prevalecer a concepção operacional do Direito, não se cominando mais, nos dias de hoje, ao Estado, o simples papel de reconhecer e amparar uma situação colocada pela autonomia conferida aos interesses individuais. Opostamente, cabe ao Estado, fundamentado nas informações decorrentes do processo social, engendrar padrões jurídicos que condicionem e orientem a construção das relações jurídicas. Desta forma, tanto o fato quanto as relações sociais só possuem significado jurídico quando inseridos na estrutura normativa.
2 CONTEÚDO DA RELAÇÃO JURÍDICA
As relações jurídicas são predominantemente relações humanas, de pessoa para pessoa, de sujeito para sujeito. Segundo Hans Kelsen, as normas de uma ordem jurídica regulam a conduta humana. É certo, diz o autor, que, aparentemente, isto só se aplica às ordens sociais dos povos civilizados:
"[...] pois nas sociedades primitivas também o comportamento dos animais, das plantas e mesmo das coisas mortas é regulado da mesma maneira que o dos homens. Assim, lemos na Bíblia que um boi que matou um homem deve também ser morto - como castigo, evidentemente. Na Antiguidade havia em Atenas um tribunal especial perante o qual corria o processo contra uma pedra, uma lança ou qualquer outro objeto através do qual, presumivelmente sem intenção, havia sido morto. E ainda na Idade Média era possível pôr uma ação contra um animal - contra um touro, por exemplo, que houvesse provocado a morte de um homem, ou contra os gafanhotos que tivessem aniquilado as colheitas. O animal processado era condenado na forma legal e enforcado, precisamente como se fosse um criminoso humano."[2]
Corrente doutrinária minoritária, como a adotada por Orlando Gomes, acredita que nem todas as relações jurídicas serão necessariamente entre pessoas:
De fato, a relação social é, por definição, a que se trava entre homens, mas isso não significa que o Direito rege apenas relações sociais, nem que outras sujeições, como a de coisa ao homem, não possam ter igual qualificação no vocábulo jurídico. Não há coincidência necessária entre relação humana e relação jurídica. Outros tipos de vinculação também se classificam como autênticas relações jurídicas, ou vínculos dessa natureza.[3]
Em outro momento, chega a referir-se à existência de relações jurídicas não apenas entre duas pessoas, mas, também, entre uma pessoa e uma coisa (como no direito de propriedade), entre uma pessoa e um determinado lugar (o domicílio fiscal) e até mesmo entre duas coisas (como a que se verifica entre uma coisa principal e uma acessória).[4]
Nos dias atuais está quase ultrapassado o posicionamento do referido autor, tendo em vista a formulação da corrente personalista (Teoria dos Sujeitos). Prima a doutrina por defender ser a coisa subordinada ao homem, que a domina, e sobre a qual exerce o poder jurídico, a ser respeitado por toda coletividade de pessoas. Em verdade, deve-se a Windscheid a limitação do conceito de relação jurídica ao vínculo entre pessoas, quando esposou a ideia de que toda relação jurídica há de ter, necessariamente, sujeito passivo.[5] Dessa forma, existe relação jurídica entre pessoas, nunca entre o ser e a coisa, nem enquanto ao ser e o lugar, muito menos entre duas coisas.
3 RELAÇÃO JURÍDICA E SITUAÇÃO JURÍDICA
A incidência de normas jurídicas em fatos sociais, dá nascimento às relações jurídicas. Quando ocorre um determinado acontecimento regulado por regras de Direito (fato jurídico), instaura-se a relação jurídica.
Os elementos que a integram são os sujeitos (ativo e passivo), o objeto, o fato jurígeno e vínculo atributivo, embora alguns autores arrolem o fato jurígeno não como elemento, mas como pressuposto da existência da relação jurídica.
Entre os caracteres das relações jurídicas há a chamada alteridade (ou bilateralidade), que significa a relação de homem para homem; a correlação entre direito e dever, exprimindo-se na proposição de que ao direito de alguém corresponde o dever de outrem. Jus et obligatio sunt correlat. Desse modo, denomina-se situação jurídica ATIVA a que corresponde à posição do agente portador de direito subjetivo, isto é, aquele que tem o poder ou a faculdade de exigir a prestação de outrem, ao qual está vinculado pela relação jurídica oriunda da vontade das partes ou em razão da norma. E situação jurídica PASSIVA é a do possuidor de dever jurídico, ou seja, daquele que está obrigado a cumprir a prestação, em razão do vínculo que o liga à outra parte.
Ocorre, às vezes, que em razão da natureza do vínculo, as duas partes sejam, ao mesmo tempo, sujeitos ativos e passivos da relação jurídica, estando em situações jurídicas idênticas, mas opostas, conforme o ângulo em que se encare o direito e o dever de cada uma. No contrato de compra e venda de um imóvel, por exemplo, o vendedor é ao mesmo tempo credor (sujeito ativo) e tem o poder de exigir o pagamento do preço, mas, feito este, segundo o pactuado, torna-se devedor (sujeito passivo) da obrigação de entregar o imóvel e fazer a escritura em favor do comprador. Este, por seu turno, tem o dever ou obrigação de pagar o preço, mas tem o direito ou poder de exigir a entrega da coisa adquirida sem vícios ocultos e de receber a escritura correspondente.
Igual ocorre no casamento, exemplo típico de relação jurídica que gera instantaneamente direitos e obrigações exigíveis de uma parte em relação à outra, face à interferência do direito. Os cônjuges estão na dupla posição de sujeitos ativos e passivos na relação jurídica. Ambos têm direitos e deveres, um em relação ao outro (direito a alimentos, dever de fidelidade e de coabitação, etc.), correspondendo à situação em que se encontram.
Por último, parte é a pessoa ou conjunto de pessoas que possui uma situação jurídica ativa ou passiva numa relação jurídica, enquanto terceiros são as pessoas alheias ao vínculo jurídico.
3 ELEMENTOS DA RELAÇÃO JURÍDICA
3.1 Elementos externos da relação jurídica
Também chamada de estrutura externa das relações jurídicas, compõe-se de sujeitos, objeto e garantia.
3.1.1 Sujeitos da relação jurídica
São sujeitos da relação jurídica, o sujeito ativo e o sujeito passivo. Toda pessoa que se insere numa relação jurídica tem sempre direitos e deveres e, não, apenas, direitos ou apenas deveres (nas relações complexas). Por exemplo: se José é devedor de uma certa quantia a Luiz, em virtude de uma letra de câmbio, tem ele o dever de pagar o débito no vencimento; se Luiz, entretanto, quiser antecipar o pagamento, José tem o direito de pagar apenas na data prevista no título.
* Como se caracteriza, então, a posição dos sujeitos na relação jurídica?
É em relação à obrigação principal que se caracteriza o sujeito ativo ou o sujeito passivo da relação. Segundo seja ele credor ou devedor do objeto da relação.
Sujeito ativo. É o credor da prestação principal; o portador do direito subjetivo de poder exigir o seu cumprimento. Exemplo: num contrato de mútuo, aquele que empresta certa quantia em dinheiro e que possui o direito de ser pago no prazo e condições estipulados, é o sujeito ativo; o que não elide, que ele também tenha deveres correlatos ou não. O mesmo pode ser aplicado na ação de alimentos ou no contrato de locação.
Sujeito passivo. É aquele que integra a relação jurídica como o responsável ou devedor da prestação principal. Exemplo: com relação ao mútuo, é o mutuário ou devedor, o que não exclui também que tenha direito de exigir algo em sentido complementar.
3.1.2 Objeto
É o elemento em razão do qual a relação jurídica se constitui e sobre o qual recai tanto a exigência do credor, quanto a obrigação do devedor. É aquilo sobre que incide o direito subjetivo; sobre que incidem o poder ou poderes em que este direito recai. Não se confunde com o conteúdo dos direitos.
O objeto ao qual nos referimos, em sentido amplo, pode consistir em coisas (nas relações reais), em ações humanas (nas relações obrigacionais), e ainda na própria pessoa (nos direitos da personalidade e nos de família, através dos institutos como o pátrio poder, a tutela e a curatela), e até em direitos (como no penhor de créditos, no usufruto de direitos). Em sentido estrito, o objeto compreende as coisas e as ações humanas (prestações). A doutrina mais recente acrescenta ainda, como objeto de direito, as manifestações do espírito humano, como por exemplo, o direito autoral.
Objeto da relação jurídica é, pois, tudo o que se pode submeter ao poder dos sujeitos de direito. É a razão da relação jurídica. Por exemplo, o objeto no direito de propriedade, é a coisa apropriada; no de alimentos, a prestação alimentícia; nos direitos personalíssimos, o respeito por parte de todos à vida, à liberdade, à honra, etc... Assim, segundo a doutrina, pode o objeto da relação jurídica ser uma coisa, uma prestação ou então, a própria pessoa.
Essa última colocação desperta polêmicas doutrinárias. Para alguns autores, por exemplo, Miguel Reale, o pátrio poder é um exemplo da pessoa como objeto da relação jurídica. Para essa corrente, trata-se apenas de se considerar a palavra objeto como a razão em virtude da qual o vínculo se estabelece.[6] Outros autores advertem que a matéria é controvertida, pois juristas há que não aceitam ser a pessoa natural objeto de contrato, pois ao fazê-lo estaríamos coisificando a pessoa humana, abrindo caminho, inclusive para a experimentação em seres humanos.
3.1.3 Garantia
Para que o direito não se transforme em palavras vãs, estabelecem-se sanções, ou, mais genericamente, predispõe a ordem jurídica meios coercitivos adequados, tendentes a que tal poder (dos direitos) obtenha até onde for possível e justo, a realização efetiva. É, a garantia, o que torna o direito subjetivo exigível. É a coerção ou coação.
3.2 Elemento interno da relação jurídica
O elemento interno da relação jurídica é o vínculo de atributividade. Segundo Miguel Reale, esse é o vínculo que confere a cada um dos participantes da relação jurídica, o poder de pretender ou exigir algo determinado ou determinável, de outro ou de outros.[7] Pode ter origem na lei ou no contrato. É o que confere o título legitimador da posição dos sujeitos de direito na relação jurídica. É o centro ou núcleo da relação, é o enlace, o nexo que se estabelece entre os vários sujeitos de direito.
Exemplo: só pode considerar-se proprietário de um imóvel, aquele que tem sua pretensão agasalhada por um vínculo normativo que lhe atribua o domínio e que tem sua origem no contrato de compra e venda. É esse vínculo que lhe confere o título de proprietário e legitima os atos praticados nessa qualidade. Finalmente, o direito é comprovado através de um documento: a escritura de compra e venda.
4 ESPÉCIES DE RELAÇÃO JURÍDICA
Miguel Reale diz que há tantos tipos de relações jurídicas “quantas possam ser as variações dos fatos sociais e de sua disciplina normativa.”[8]
Quanto à disciplina serão as relações jurídicas de ordem penal, civil, comercial, trabalhista, etc.
Quanto ao objeto serão reais (coisa); obrigacionais (prestação); pessoais (direitos da pessoa), etc.
Quanto ao sujeito serão relativas, quando uma pessoa ou um grupo de pessoas figura no pólo passivo da relação jurídica; e absolutas, quando a coletividade figura como sujeito passivo da relação jurídica.
Quanto à forma serão as relações jurídicas obrigacionais ou negociais (há liberdade de disposição); impostas ou absolutas (não há liberdade quanto à forma).
As relações jurídicas serão de Direito Público ou de subordinação quando o Estado participa da relação jurídica com seu poder de ordem (imperium). Serão de Direito Privado ou de coordenação quando integrada por particulares em plano de igualdade, podendo nela o Estado participar, desde que não investido de sua autoridade ius imperium.
5 TUTELA DAS RELAÇÕES JURÍDICAS
Toda relação jurídica goza de proteção do Estado. Genericamente, pela sanção prevista no caso de violação; concretamente, pelo fato do sujeito ter poder de invocar a prestação jurisdicional do Estado e fazer valer o seu direito (art. 5º, inciso XXXV da Constituição da República Federativa do Brasil/1988).
O poder de auto-tutela somente se dará excepcionalmente, conforme art. 188 do Código Civil e art. 23 do Código Penal, quando a pessoa, não podendo e não devendo esperar ou aguardar pelo socorro estatal ou prestação jurisdicional, está autorizada a agir por conta própria, guardando os limites da proporcionalidade entre o agravo ou ameaça e a resposta imediata. É o caso da legítima defesa, estado de necessidade.
Feito um breve estudo do conceito de Direito, suas fontes e seu modo de aplicação, segue-se tratar da relação jurídica e seus elementos. Com isso, abandona-se a parte mais abstrata da Ciência Jurídica para arriscar uma aproximação mais concreta, considerando o Direito como uma relação social dotada de um certo conteúdo positivo.
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1 CONCEITO DE RELAÇÃO JURÍDICA: TEORIAS
O vocábulo relação, do latim relatio, relationem, quer dizer conexão natural existente entre duas pessoas, coisas ou fatos.[1] Como se vê, o termo abrange o homem, os objetos que o rodeiam e todo acontecimento ou situação ocorrida no mundo exterior. Esse homem, na sociedade, não objetiva a fins estritamente jurídicos, mas, ao contrário, são múltiplos os seus fins. Assim, deve-se reconhecer, nem todas as relações são jurídicas, embora, às vezes, seja possível reunir duas ou mais pessoas através de vínculos estáveis e objetivos.
Como distinguir, então, quais das situações sociais devem ser consideradas como jurídicas?
A esta pergunta procura-se resposta no século XIX, quando Savigny situou, de forma cristalina, o conceito de relação jurídica: uma relação entre várias pessoas determinada por uma regra de direito. Para Jhering, a relação jurídica está para a Ciência do Direito como o alfabeto está para a palavra.
Reconhece-se, a partir deste momento, ter alcançado, a Ciência Jurídica, sua maturidade.
Relação jurídica é, portanto, simplesmente, a relação da vida social disciplinada pelo Direito, mediante a atribuição, a uma pessoa (em sentido jurídico), de um direito subjetivo e a correspondente imposição a outra pessoa, de um dever jurídico.
No estabelecimento da relação jurídica, devem-se considerar dois enfoques relevantes. De acordo com a Teoria Tradicional, abalizada num ponto de vista individualista do Direito, as relações jurídicas seriam relações sociais assentadas por si mesmas, somente reconhecidas pelo Estado, pela necessidade de tutela. Numa outra visão, a Teoria Operacional faz prevalecer a concepção operacional do Direito, não se cominando mais, nos dias de hoje, ao Estado, o simples papel de reconhecer e amparar uma situação colocada pela autonomia conferida aos interesses individuais. Opostamente, cabe ao Estado, fundamentado nas informações decorrentes do processo social, engendrar padrões jurídicos que condicionem e orientem a construção das relações jurídicas. Desta forma, tanto o fato quanto as relações sociais só possuem significado jurídico quando inseridos na estrutura normativa.
2 CONTEÚDO DA RELAÇÃO JURÍDICA
As relações jurídicas são predominantemente relações humanas, de pessoa para pessoa, de sujeito para sujeito. Segundo Hans Kelsen, as normas de uma ordem jurídica regulam a conduta humana. É certo, diz o autor, que, aparentemente, isto só se aplica às ordens sociais dos povos civilizados:
"[...] pois nas sociedades primitivas também o comportamento dos animais, das plantas e mesmo das coisas mortas é regulado da mesma maneira que o dos homens. Assim, lemos na Bíblia que um boi que matou um homem deve também ser morto - como castigo, evidentemente. Na Antiguidade havia em Atenas um tribunal especial perante o qual corria o processo contra uma pedra, uma lança ou qualquer outro objeto através do qual, presumivelmente sem intenção, havia sido morto. E ainda na Idade Média era possível pôr uma ação contra um animal - contra um touro, por exemplo, que houvesse provocado a morte de um homem, ou contra os gafanhotos que tivessem aniquilado as colheitas. O animal processado era condenado na forma legal e enforcado, precisamente como se fosse um criminoso humano."[2]
Corrente doutrinária minoritária, como a adotada por Orlando Gomes, acredita que nem todas as relações jurídicas serão necessariamente entre pessoas:
De fato, a relação social é, por definição, a que se trava entre homens, mas isso não significa que o Direito rege apenas relações sociais, nem que outras sujeições, como a de coisa ao homem, não possam ter igual qualificação no vocábulo jurídico. Não há coincidência necessária entre relação humana e relação jurídica. Outros tipos de vinculação também se classificam como autênticas relações jurídicas, ou vínculos dessa natureza.[3]
Em outro momento, chega a referir-se à existência de relações jurídicas não apenas entre duas pessoas, mas, também, entre uma pessoa e uma coisa (como no direito de propriedade), entre uma pessoa e um determinado lugar (o domicílio fiscal) e até mesmo entre duas coisas (como a que se verifica entre uma coisa principal e uma acessória).[4]
Nos dias atuais está quase ultrapassado o posicionamento do referido autor, tendo em vista a formulação da corrente personalista (Teoria dos Sujeitos). Prima a doutrina por defender ser a coisa subordinada ao homem, que a domina, e sobre a qual exerce o poder jurídico, a ser respeitado por toda coletividade de pessoas. Em verdade, deve-se a Windscheid a limitação do conceito de relação jurídica ao vínculo entre pessoas, quando esposou a ideia de que toda relação jurídica há de ter, necessariamente, sujeito passivo.[5] Dessa forma, existe relação jurídica entre pessoas, nunca entre o ser e a coisa, nem enquanto ao ser e o lugar, muito menos entre duas coisas.
3 RELAÇÃO JURÍDICA E SITUAÇÃO JURÍDICA
A incidência de normas jurídicas em fatos sociais, dá nascimento às relações jurídicas. Quando ocorre um determinado acontecimento regulado por regras de Direito (fato jurídico), instaura-se a relação jurídica.
Os elementos que a integram são os sujeitos (ativo e passivo), o objeto, o fato jurígeno e vínculo atributivo, embora alguns autores arrolem o fato jurígeno não como elemento, mas como pressuposto da existência da relação jurídica.
Entre os caracteres das relações jurídicas há a chamada alteridade (ou bilateralidade), que significa a relação de homem para homem; a correlação entre direito e dever, exprimindo-se na proposição de que ao direito de alguém corresponde o dever de outrem. Jus et obligatio sunt correlat. Desse modo, denomina-se situação jurídica ATIVA a que corresponde à posição do agente portador de direito subjetivo, isto é, aquele que tem o poder ou a faculdade de exigir a prestação de outrem, ao qual está vinculado pela relação jurídica oriunda da vontade das partes ou em razão da norma. E situação jurídica PASSIVA é a do possuidor de dever jurídico, ou seja, daquele que está obrigado a cumprir a prestação, em razão do vínculo que o liga à outra parte.
Ocorre, às vezes, que em razão da natureza do vínculo, as duas partes sejam, ao mesmo tempo, sujeitos ativos e passivos da relação jurídica, estando em situações jurídicas idênticas, mas opostas, conforme o ângulo em que se encare o direito e o dever de cada uma. No contrato de compra e venda de um imóvel, por exemplo, o vendedor é ao mesmo tempo credor (sujeito ativo) e tem o poder de exigir o pagamento do preço, mas, feito este, segundo o pactuado, torna-se devedor (sujeito passivo) da obrigação de entregar o imóvel e fazer a escritura em favor do comprador. Este, por seu turno, tem o dever ou obrigação de pagar o preço, mas tem o direito ou poder de exigir a entrega da coisa adquirida sem vícios ocultos e de receber a escritura correspondente.
Igual ocorre no casamento, exemplo típico de relação jurídica que gera instantaneamente direitos e obrigações exigíveis de uma parte em relação à outra, face à interferência do direito. Os cônjuges estão na dupla posição de sujeitos ativos e passivos na relação jurídica. Ambos têm direitos e deveres, um em relação ao outro (direito a alimentos, dever de fidelidade e de coabitação, etc.), correspondendo à situação em que se encontram.
Por último, parte é a pessoa ou conjunto de pessoas que possui uma situação jurídica ativa ou passiva numa relação jurídica, enquanto terceiros são as pessoas alheias ao vínculo jurídico.
3 ELEMENTOS DA RELAÇÃO JURÍDICA
3.1 Elementos externos da relação jurídica
Também chamada de estrutura externa das relações jurídicas, compõe-se de sujeitos, objeto e garantia.
3.1.1 Sujeitos da relação jurídica
São sujeitos da relação jurídica, o sujeito ativo e o sujeito passivo. Toda pessoa que se insere numa relação jurídica tem sempre direitos e deveres e, não, apenas, direitos ou apenas deveres (nas relações complexas). Por exemplo: se José é devedor de uma certa quantia a Luiz, em virtude de uma letra de câmbio, tem ele o dever de pagar o débito no vencimento; se Luiz, entretanto, quiser antecipar o pagamento, José tem o direito de pagar apenas na data prevista no título.
* Como se caracteriza, então, a posição dos sujeitos na relação jurídica?
É em relação à obrigação principal que se caracteriza o sujeito ativo ou o sujeito passivo da relação. Segundo seja ele credor ou devedor do objeto da relação.
Sujeito ativo. É o credor da prestação principal; o portador do direito subjetivo de poder exigir o seu cumprimento. Exemplo: num contrato de mútuo, aquele que empresta certa quantia em dinheiro e que possui o direito de ser pago no prazo e condições estipulados, é o sujeito ativo; o que não elide, que ele também tenha deveres correlatos ou não. O mesmo pode ser aplicado na ação de alimentos ou no contrato de locação.
Sujeito passivo. É aquele que integra a relação jurídica como o responsável ou devedor da prestação principal. Exemplo: com relação ao mútuo, é o mutuário ou devedor, o que não exclui também que tenha direito de exigir algo em sentido complementar.
3.1.2 Objeto
É o elemento em razão do qual a relação jurídica se constitui e sobre o qual recai tanto a exigência do credor, quanto a obrigação do devedor. É aquilo sobre que incide o direito subjetivo; sobre que incidem o poder ou poderes em que este direito recai. Não se confunde com o conteúdo dos direitos.
O objeto ao qual nos referimos, em sentido amplo, pode consistir em coisas (nas relações reais), em ações humanas (nas relações obrigacionais), e ainda na própria pessoa (nos direitos da personalidade e nos de família, através dos institutos como o pátrio poder, a tutela e a curatela), e até em direitos (como no penhor de créditos, no usufruto de direitos). Em sentido estrito, o objeto compreende as coisas e as ações humanas (prestações). A doutrina mais recente acrescenta ainda, como objeto de direito, as manifestações do espírito humano, como por exemplo, o direito autoral.
Objeto da relação jurídica é, pois, tudo o que se pode submeter ao poder dos sujeitos de direito. É a razão da relação jurídica. Por exemplo, o objeto no direito de propriedade, é a coisa apropriada; no de alimentos, a prestação alimentícia; nos direitos personalíssimos, o respeito por parte de todos à vida, à liberdade, à honra, etc... Assim, segundo a doutrina, pode o objeto da relação jurídica ser uma coisa, uma prestação ou então, a própria pessoa.
Essa última colocação desperta polêmicas doutrinárias. Para alguns autores, por exemplo, Miguel Reale, o pátrio poder é um exemplo da pessoa como objeto da relação jurídica. Para essa corrente, trata-se apenas de se considerar a palavra objeto como a razão em virtude da qual o vínculo se estabelece.[6] Outros autores advertem que a matéria é controvertida, pois juristas há que não aceitam ser a pessoa natural objeto de contrato, pois ao fazê-lo estaríamos coisificando a pessoa humana, abrindo caminho, inclusive para a experimentação em seres humanos.
3.1.3 Garantia
Para que o direito não se transforme em palavras vãs, estabelecem-se sanções, ou, mais genericamente, predispõe a ordem jurídica meios coercitivos adequados, tendentes a que tal poder (dos direitos) obtenha até onde for possível e justo, a realização efetiva. É, a garantia, o que torna o direito subjetivo exigível. É a coerção ou coação.
3.2 Elemento interno da relação jurídica
O elemento interno da relação jurídica é o vínculo de atributividade. Segundo Miguel Reale, esse é o vínculo que confere a cada um dos participantes da relação jurídica, o poder de pretender ou exigir algo determinado ou determinável, de outro ou de outros.[7] Pode ter origem na lei ou no contrato. É o que confere o título legitimador da posição dos sujeitos de direito na relação jurídica. É o centro ou núcleo da relação, é o enlace, o nexo que se estabelece entre os vários sujeitos de direito.
Exemplo: só pode considerar-se proprietário de um imóvel, aquele que tem sua pretensão agasalhada por um vínculo normativo que lhe atribua o domínio e que tem sua origem no contrato de compra e venda. É esse vínculo que lhe confere o título de proprietário e legitima os atos praticados nessa qualidade. Finalmente, o direito é comprovado através de um documento: a escritura de compra e venda.
4 ESPÉCIES DE RELAÇÃO JURÍDICA
Miguel Reale diz que há tantos tipos de relações jurídicas “quantas possam ser as variações dos fatos sociais e de sua disciplina normativa.”[8]
Quanto à disciplina serão as relações jurídicas de ordem penal, civil, comercial, trabalhista, etc.
Quanto ao objeto serão reais (coisa); obrigacionais (prestação); pessoais (direitos da pessoa), etc.
Quanto ao sujeito serão relativas, quando uma pessoa ou um grupo de pessoas figura no pólo passivo da relação jurídica; e absolutas, quando a coletividade figura como sujeito passivo da relação jurídica.
Quanto à forma serão as relações jurídicas obrigacionais ou negociais (há liberdade de disposição); impostas ou absolutas (não há liberdade quanto à forma).
As relações jurídicas serão de Direito Público ou de subordinação quando o Estado participa da relação jurídica com seu poder de ordem (imperium). Serão de Direito Privado ou de coordenação quando integrada por particulares em plano de igualdade, podendo nela o Estado participar, desde que não investido de sua autoridade ius imperium.
5 TUTELA DAS RELAÇÕES JURÍDICAS
Toda relação jurídica goza de proteção do Estado. Genericamente, pela sanção prevista no caso de violação; concretamente, pelo fato do sujeito ter poder de invocar a prestação jurisdicional do Estado e fazer valer o seu direito (art. 5º, inciso XXXV da Constituição da República Federativa do Brasil/1988).
O poder de auto-tutela somente se dará excepcionalmente, conforme art. 188 do Código Civil e art. 23 do Código Penal, quando a pessoa, não podendo e não devendo esperar ou aguardar pelo socorro estatal ou prestação jurisdicional, está autorizada a agir por conta própria, guardando os limites da proporcionalidade entre o agravo ou ameaça e a resposta imediata. É o caso da legítima defesa, estado de necessidade.
[1] RELAÇÃO. In: FREIRE, Laudelino. Grande e novíssimo dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, v. V, 1957, p. 4.371.
[2] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 34. (Ensino Superior). Tradução de: Reine rechtslehre.
[3] GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 15. ed. Atualização e notas de Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 95.
[4] ibidem, p. 96.
[5] WINDSCHEID apud GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 15. ed. Atualização e notas de Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 95.
[6] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 220.
[7] Ibidem, p. 219.
[8] Ibidem, p. 223.