Método dos juristas romanos
- um diretivo para a ação
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Professora Sílvia M. L. Mota

O método utilizado pelo jurista romano é casuístico, caracterizando-se por preservar a tendência empírica que valoriza o caso em concreto em todas as suas minúcias. Nessa época, o Direito não nasce de um único indivíduo, mas floresce da reflexão cultivada por várias gerações, compondo-se e aperfeiçoando-se através dos tempos. A partir deste referencial percebe-se sutil diferença entre direito divino e direito humano, conquanto não se desvinculem.
 
O que é o direito romano?
 
Direito romano é o complexo de normas vigentes em Roma, desde a sua fundação lendária (século VIII a.C.), até a morte de Justiniano (565 d.C.), imperador do Oriente. A partir deste evento até a queda de Constantinopla em 1453, o direito em vigor no império romano do Oriente é reconhecido como bizantino ou romano-helênico.
 

O estudo das instituições jurídicas da Era Contemporânea glorifica o estudo do Direito Romano, mesmo porque o mesmo não sucumbe com a civilização em que foi gerado, projetando-se no pensamento jurídico desde a Idade Média até o século XIX. O direito romano é uma das maiores construções intelectuais da Antiguidade. Se a Grécia legou à humanidade o pensamento político e filosófico, Roma transmitiu-lhe o Direito. Daí dizer-se que Roma erigiu “[...] as categorias fundamentais do pensamento jurídico.[1]
 
Método dos juristas romanos
 

Deve-se reconhecer, em primeiro lugar, que em Roma já se fundava uma Ciência do Direito autônoma[2], porque não apenas os moralistas, filósofos, teólogos ou sacerdotes cultivavam o Direito, erguendo-se também a figura do jurisconsulto, consciente do seu objeto de estudo.
 
Os romanos não confundem o direito com a moral. Bem verdade, segundo a airosa fórmula do jurisconsulto Celso, é o Direito ars boni et aequi (arte do bom e da equidade), e a Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi: I. Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuer (A justiça é uma vontade constante e durável de atribuir a cada um o seu direito: I. São preceitos do Direito: viver honestamente, não lesar outrem e dar a cada um o que é seu). Contudo, a esse respeito, salienta Ebert Chamoun:
 
[...] tais proposições pretenderam apenas realçar o espírito que animar a criação e a aplicação espontânea dou coercitiva da norma jurídica. Com efeito, o bem comum (bonum) deve ser um dos últimos ideais do direito e ele não pode ser alcançado sem uma distribuição igual da justiça (aequum). Por outro lado, viver honestamente, não lesar outrem e dar a cada um o que é seu, podem ser limites muito mais amplos à atividade humana do que os demarcados pelo direito. Não há dúvida, entretanto, de que quem procede dentre deles, procede de acordo com o direito e poderá agir livremente sem temor de quaisquer sanções.
 
Por esses dizeres clássicos, são os juristas denominados profetas da justiça, por cultivarem a Justiça e pregarem o conhecimento do bom e da boa proporção, e exercitarem-se no discernimento do justo e do injusto.
 

Nessa seara, o jurisconsulto romano Paulo faz a clássica distinção entre o justo natural e o justo positivo[3], resgatando os romanos, dessa forma, a distinção aristotélica entre justo em si (dikaion phusikon), e justo civil (dikaion nomikon), originário das opiniões e convenções entre homens de determinadas cidades. O justo em si é o homem político (zoon politikon), que tem disposição natural para a vida em comunidade, para realizar o fim imanente da natureza humana, a saber, o de aperfeiçoar-se. O justo civil, por depender dos usos e costumes praticados nas cidades, é variável segundo os regimes políticos adotados. Todavia, seja numa democracia ou numa oligarquia, os homens não devem desviar-se da sua disposição de realizar sua finalidade imanente, uma vez que essa não está condicionada à subjetividade. O justo em si é universal, inclui o cosmos e os seres racionais, é a própria ordem das coisas.
 

No pertinente à confusão entre direito e religião, comum a toda civilização jurídica incipiente[4], na Roma antiga é espinhoso o labor intelectual para diferenciar o campo de ação das normas jurídicas e das normas religiosas. Conviviam o jus e o fas. O jus era o conjunto de normas formuladas pelos homens, destinadas à organização da vida dos romanos em sociedade; o fas reunia as normas divinas, religiosas, dirigidas às relações entre os homens e as divindades. Ebert Chamoun anuncia terem sido talvez as mais antigas normas jurídicas, as mores maiorum, de inspiração religiosa.[5]
 
Nos primeiros tempos do mundo romano o fas imperava, cabendo sua aplicação aos pontífices, ministros religiosos supremos, que monopolizavam secretamente os princípios jurídicos que ordenavam as ações humanas.
 

Maria Clara Calheiros verifica em seus estudos, que os dois conceitos nunca se confundem, sendo mesmo possível encontrar referências expressas ao fas como derivado da vontade divina e o jus da vontade humana. Mas, ainda assim, corresponderiam os conceitos de jus e fas da época histórica aos seus significados originais? Responde a mesma autora que as opiniões dividem-se. Para alguns estudiosos, entre eles Göthimg, Lambert, Hervelin, Wenger, Beseler, Düll, jus e fas eram termos antagônicos, tendo o primeiro origem no vocábulo jug, palavra que traduziria a ideia de um vínculo estabelecido pela vontade humana.[6] Uma outra posição defendida por De Francisci é a que concebe jus e fas como partes integrantes de uma mesma realidade ontológica, ambas enquanto manifestação da vontade divina.[7] A distinção operada teria então um mero matiz histórico: fas concebia-se como regulação das relações das gentes pré-citadinas, enquanto jus era o ordenamento próprio dos cidadãos. Assim, o parecia testemunhar o parentesco entre os étimos jus e jovis (Júpiter), divindade eleita para presidir aos destinos da cidade.
 
Outros autores ainda entenderão fas, nefas e jus não como substantivos, mas como meros adjetivos, exprimindo a licitude ou ilicitude dos comportamentos humanos. Noutra versão, jus poderia também ter representado o fruto do acordo de vontades dos cidadãos, cuja necessidade de fazer respeitar advinda do fas.
 

A este respeito, entende Antonio Guarino que jus se concebe como manifestação do uso que os humanos fazem do fas, da sua liberdade.[8] Conceito mais bem formulado, este persistiu. Sendo assim, pensa-se que a separação operada pelos romanos entre fas e jus não indica a irreligiosidade deste último. Ao contrário, o jus se concebe como parte do fas, conceito mais abrangente do qual emergiu.
 
Dicotômica divisão em jus civile e jus gentium. O jus civile significava literalmente direito civil, direito peculiar a um determinado Estado e, neste sentido, direito dos cidadãos romanos; o jus gentium abrangia o direto comum aos romanos e aos outros povos (direito das pessoas/gentes, compondo-se por dois substantivos: jus = direito e gentium = pessoas = raça, nação). O jus gentium qualificava essencialmente o direito dos estrangeiros na sua relação com os cidadãos, em oposição ao jus civile, que é o da cidade romana. Atualmente, em direito internacional, indica as regras jurídicas que têm o seu fundamento na natureza das coisas, aplicáveis aos todos os povos e não somente os assuntos de um Estado determinado.
 
A existência de institutos jurídicos a todos os povos da Terra levou ao discernimento de que originassem de uma naturalis ratio, diversamente da civilis ratio que influi o jus civile. A partir de então, foi o jus gentium concebido como jus naturale, sendo os dois termos considerados sinônimos.
 
Através de Cícero, consagra-se a expressão direito natural, ao fazer a tripartida divisão do Direito Romano: jus civile, jus gentium e jus naturale. Não poderiam, entretanto, jus civile e jus gentium entrar em conflito com o jus naturale, direito natural, conjunto de princípios norteadores, localizados acima do arbítrio do homem, extraídos filosoficamente da natureza das coisas, visando solucionar ou inspirar a solução dos casos in concreto; inerente à natureza humana.
 
A época clássica do Direito romano transcorre durante os séculos II e III da era Cristã. O pensamento dos juristas quanto à procura do justo submete-se ao pensamento de Aristóteles.
 
Gayo retorna à divisão dicotômica do Direito: jus civile e jus gentium e Ulpiano resgata a divisão tríplice do Direito alcançada por Cícero. Ao falar do jus naturale, abrange a todos os animais, pois o define como o direito que Deus ensinou a todas as criaturas, não sendo exclusivamente próprio do gênero humano. Tal conceito foi adotado nas Institutas de Justiniano.
 
Como referido anteriormente, os juristas romanos não estabeleceram nenhuma distinção precisa entre o Direito e a Moral, mas tinham como certo serem sujeitos de Direito tanto o cidadão romano como todo membro da sociedade humana, convertendo o homem em titular de direitos naturais, conservados inclusive no estado de escravidão. A ideia do Direito Natural, entre os romanos, era tão importante, que se considerava o legislador a ela submetido.
 

No rastro da afirmação de que na Antiguidade clássica o Direito era um fenômeno de ordem sagrada[9], tem-se que, entre os romanos era, o Direito, uma forma cultural sagrada expressa eticamente através da prudência, virtude moral da cautela, do equilíbrio e do bom senso nos atos de julgamento. A partir desse referencial, alça um patamar peculiar a prudentia (prudência), sob a designação especial de Jurisprudentia, que “est divinarum atque humanarum rerum notitia, justi atque injusti scientia” (Jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência do justo e do injusto).
 
O Direito é, dessa forma, uma sorte de memória de arquétipos grupais, e os juristas, conquistadores de normas e princípios de bem-estar social.
 

A Jurisprudência Romana não parece ter por finalidade suprema a defesa dos interesses privados. Não é, pois, fruto da casualidade os romanos não procederem a uma classificação dos direitos nas categorias de conjunto (direitos reais, de personalidade, etc.), sendo seu esforço direcionado à construção de uma ordem e, nesse sentido, um jus.[10]
 
A palavra jurisprudentia, utilizada pelos romanos, liga-se à fronesis, proveniente da filosofia grega, significando discernimento, e entendida pelos gregos como virtude. Fronesis era uma espécie de virtude e capacidade para julgar. Seu exercício reclamava o desenvolvimento de uma arte no trato e no confronto de opiniões, proposições e ideias que, contrapostas, permitiam uma explanação das situações.[11] Essa arte correlaciona-se à dialeta (dialética) de Aristóteles, da forma como foi proposta por Aristóteles, como arte de discorrer ou argumentar por problemas e contraposições, e que também se denomina tópica, à qual juristas contemporâneos, como Theodor Viehweg[12] e Chaim Perelman[13] trouxeram notáveis contribuições.
 

O método dialético pode ser visualizado como um digladiar de argumentações, onde objetos e elementos fáticos exteriorizam-se por aspectos contraditórios, em constante disputa. Seu desenvolvimento identifica-se com o princípio da unidade e luta dos contrários. É, ainda, filosofia da natureza, lógica do pensamento aplicada à compreensão do processo histórico das mudanças e dos conflitos sociais, ou método de investigação da realidade.[14] A dialética opõe-se à intransigência, à rigidez do pensar, sendo a mudança constante o ápice do processo, através do qual sempre nascerá e se desenvolverá uma nova ideia.
 

O pensamento prudencial dos romanos manifestou-se como um poder de argumentar e de provar.[15] O jurista romano era respeitado, mais do que pelo seu saber, pela sua gravitas, o que indicava sua proximidade com seus antepassados. A teoria jurídica romana distanciava-se da contemplação grega, assumindo-se através de uma manifestação autoritária dos exemplos e dos feitos dos antepassados e dos costumes daí derivados. Embora se vincule, de alguma forma, à prudência e à retórica gregas, tem individualidade. A exemplo da prudência grega, não gravita unicamente na esfera da teoria. É, antes, uma ação que confirma e fundamenta o certo e o justo.
 
[1] CHAMOUN, Ebert. Instituições de direito romano. Prefácio do prof. San Tiago Dantas. 4. ed. rev. e aum. Rio de janeiro, São pauo: Forense, 1962, p. 15.
[2] REALE, Miguel. Filosofia do direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 627-628.
[3] D, I, I, 2, Paulo: "Jus se diz de vários modos. Pode designar o que é justo e bom universalmente: tal é o jus naturale; ou o que, numa cidade qualquer, é útil a todos: tal é o direito civil."
[4] CHAMOUN, Ebert. Instituições de direito romano. Prefácio do prof. San Tiago Dantas. 4. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro, São Paulo: Forense, 1962, p. 26.
[5] CHAMOUN, Ebert. Instituições de direito romano. Prefácio do prof. San Tiago Dantas. 4. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro, São Paulo: Forense, 1962, p. 26.
[6] CALHEIROS, Maria Clara. Ius, iustitia, derectum: prolegómenos a uma história da origem romanística dos modernos signos jurídicos linguísticos. Universidade do Minho, Portugal. Secção de Ciências Jurídicas Gerais Universidade do Minho. Disponível em: http://www.direito.up.pt/IJI/Cadernos%20do%20IJI/ANTIGONA%20V/Maria%20Clara%20Calheiros.htm#_ftn3. Acesso em: 17 abr. 2004.
[7] DE FRANCISCI apud CALHEIROS, Maria Clara. Ius, iustitia, derectum: prolegómenos a uma história da origem romanística dos modernos signos jurídicos linguísticos. Universidade do Minho, Portugal. Secção de Ciências Jurídicas Gerais Universidade do Minho. Disponível em: http://www.direito.up.pt/IJI/Cadernos%20do%20IJI/ANTIGONA%20V/Maria%20Clara%20Calheiros.htm#_ftn3. Acesso em: 17 abr. 2004.
[8] GUARINO, Antonio. L'ordinamento giuridico romano. 3. ed. Nápoles: Casa Edittrice Eugenio Jovene, 1959, p. 54 et seq.
[9] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 56.
[10] “A jurisprudência romana se desenvolveu numa ordem jurídica que, na prática, correspondia apenas a um quadro regulativo geral.” (FERRAZ JR., 1994, p. 57).
[11] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 58.
[12] VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. 166 p. (Pensamento Jurídico Contemporâneo, v. 1). Título original: Topik und Rechtsphilosophie.
[13] PERELMAN, Chaïm; Olbrechts-Tyteca, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
[14] GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1994, p. 31.
[15] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 60.
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 24/06/2012
Reeditado em 01/08/2017
Código do texto: T3741980
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