Caridade ou solidariedade responsável?
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Introdução ao tema
Aclamada através do tempo e espaço por algumas religiões, por ser o caminho mais fácil para se alcançar o Paraíso, a esmola, sob o aforismo “Fora da caridade não há salvação”, apropriou-se do costume e do intelecto cognitivo dos povos, inoculando-lhes um vírus quase fatal, que contamina corpo e alma e ensina ao ser humano - subjugado aos seus encantos - os sintomas preferidos da mediocridade, que se iniciam na decadência da postura física, fixam-se num olhar desiludido e extravasam pela boca ou através de gestos mentirosos, amaldiçoados por uma infelicidade que se interpreta a bel prazer. Afirmo “quase” fatal, pois impossível e desumano ignorar os heróis circunstanciais, que renascem após os desesperos acendidos pelas vicissitudes insopitáveis da vida, entre outras, as calamidades sociais e naturais inesperadas, a doença e a morte, motivadas tantas vezes pelo jugo do poder político estabelecido.
De caráter inicialmente nobre, a palavra “esmola” perpassa os milênios num galope repleto de manipulada altivez, para alcançar o mundo contemporâneo sob a forma felina e ferina – camaleônica sedutora - que se individualiza no comportamento de cada indivíduo, quando inserido no corpo social.
Nesse jogo todo, o “ser pedinte” aprisiona-se na própria mendicância e dali recusa-se a sair, por si mesmo ou por força superior. A partir disso, o “poder estabelecido” engendra-o, forja-o aos seus interesses próprios, animando-o a degradar-se, cada vez mais, à corrupção inerente aos instintos selvagens contidos em todos os seres humanos. A partir da fatal constatação, assiste-se à falsificação temporária da realidade material, no afã de dissimular um lúbrico discurso. Vedam-se os olhos e trancam-se os ouvidos do “ser pedinte”, para que a pedincha oferecida se transforme em objeto de manipulação de quem a proporciona sobre quem a recebe. Deflagra-se um circuito invisível e, portanto, pernicioso e covarde, de opressão do mais fraco pelo mais forte.
Como sucedeu em diversos momentos ultrapassados pela Humanidade, a época em trânsito vocifera contra as injustiças sociais sibilantes, sendo propícia à discussão e ao estabelecimento de políticas públicas que visem melhor qualidade de vida ao ser humano. Este é o momento das mudanças a serem estabelecidas pela consciência moral do povo, mudanças essas, às quais, filosófica e moralmente, seriam desnecessárias a criação de leis jurídicas, pois que se encontram nas águas direcionadas pelas margens dos princípios instituídos desde sempre, à revelia de qualquer lei (im)posta pelos humanos, provenientes do Direito Natural.
Esse desejo-utopia de contribuir em prol de uma sociedade civilizada e sã, na qual os cidadãos tenham condições de gerir suas próprias vidas, sob a proteção de um Estado Democrático de Direito, encontra-se enraizado, não na Caridade Cristã, mas, nos Princípios de Solidariedade e de Responsabilidade, pertinentes ao mundo atual.
Mas, serão esses realmente suficientes?
Na Constituição Brasileira de 1988, o Princípio de Solidariedade, também conhecido como Princípio de Integração ou Princípio de Solidariedade Comunitária, apregoa-se no Preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar [...] uma sociedade fraterna.” Encontra-se também inserido no art. 3º, incisos I e III, ao situar que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. O princípio em destaque é ainda evidenciado em outros dispositivos, entre estes: art. 159, inciso I, alínea “c”; art. 43 e todos seus parágrafos e incisos; art. 151, inciso I; art. 159, inciso I, alínea “c”; art. 165, parágrafos 6º, 7º e inciso II do parágrafo 9º; art. 170 e seu inciso VII; caput do art. 192 e seu inciso VII; artigos 194 e 195; além dos direitos sociais previstos nos arts. 6º ao 11, assim como o parágrafo 10 do art. 34 das Disposições Constitucionais Transitórias.
O Princípio de Solidariedade diz respeito à defesa dos direitos de igualdade de tratamento, dos interesses coletivos, supra-individuais, gerais ou públicos. Como princípio jurídico, Javier de Lucas assim entende a Solidariedade: “[...] consciência conjunta de direitos e obrigações, que surgiria da existência das necessidades comuns, de similitudes (de reconhecimento de identidade), que precedam às diferenças sem pretender sua alienação.” Tal linha de pensamento busca oferecer ao cidadão, concomitantemente, um tratamento equitativo e sustentável e isto origina infindáveis críticas, em especial quando se põe em foco a liberação de verbas, reconhecidamente escassas em qualquer sistema que privilegie a dignidade da pessoa humana. Essa ideia não é uma novidade para o direito brasileiro, pois a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e à liberdade são garantias individuais asseguradas pela Constituição Federal de 1988.
Em decorrência do exposto, outra inquirição se coloca: qual o significado da noção de dignidade humana aplicada ao indivíduo alocado na situação de miserabilidade humana?
Para aproximar os significados e compreendê-los frente às exigências atuais, parece interessante remontar às origens da noção, no século V a.C., onde plantam-se as raízes mais profundas na humanitas grega. No pensamento grego encontra-se uma visão universalista do ser humano, cujo valor está em mostrar claramente a exigência ética do respeito universal ao outro, a qualquer outro, ao que se considera outro eu. Pela época de 106-43 a.C., dirá Cícero (De legibus, I, 10) a esse respeito: “Nada há tão semelhante a outra coisa como um homem a outro. Qualquer definição do homem vale para outro. Ela somente resulta obscurecida na medida em que o homem se deixa levar pela corrupção dos costumes e pela variabilidade do ânimo.”
Esse pensamento é mais tarde desenvolvido e enriquecido pelo Cristianismo. A noção plantada pelos judeus do homem à imagem de Deus universaliza-se, difundindo-se a máxima de que qualquer membro da espécie humana possui um valor absoluto. E, provavelmente, ninguém melhor do que São Tomás de Aquino resume a impossibilidade de encontrar uma definição para o conceito de dignidade, quando exara: “[...] o termo dignidade é algo absoluto e pertence à essência.” Premissa básica do jusnaturalismo é, portanto, o reconhecimento no ser humano da sua própria dignidade, tornando desprezíveis, eticamente, condutas incompatíveis com tal condição, premissa considerada também na proposição finalista kantiniana da pessoa.
Nesse anfiteatro, relevante proporcionar, para além das perguntas, possíveis soluções. E, sendo assim, Ângela Maria Rocha Gonçalves de Abrantes ressalta, que, para implementar alguns dispositivos constitucionais o Brasil possui os chamados fundos constitucionais compensatórios, mecanismos de proteção às regiões nordeste/norte/centro-oeste: “[...] que visam minimizar as desigualdades econômicas e sociais ali existentes, reduzir a pobreza e acabar com os desequilíbrios existentes, ao tempo que objetivam patrocinar e incentivar o desenvolvimento dos Estados das citadas regiões.”
O Princípio de Solidariedade demonstra a ligação íntima entre o prejuízo da sociedade à vulnerabilidade de cada um dos seus membros, e, por tal razão, recomenda a reunião de todos para a suavização de infortúnios e a defesa de agressões, constituindo-se um sistema protetivo organizado em conjunto, em prol do bem comum. Implícita na Solidariedade encontra-se a Igualdade, tanto de esforço realizado como de proteção obtida e, nas palavras dos cientistas Fermin Roland Schramm e Miguel Kotow: “[...] ali onde esta simetria se rompe, aparecem os abusos e as desproteções dos mais débeis.”
Como se percebe, o Princípio de Solidariedade aplicado isoladamente às políticas públicas, queda-se precário para resolver os complexos problemas sociais, porque se apregoa a solidariedade em situações de profunda diversidade de necessidades, independente das discrepâncias profundas de valores colocadas avessas à argumentação.
Adentra, portanto, na pauta da cogitação aqui originada, outro princípio a ser considerado como possível instrumento apropriado para a análise de questões morais divisadas pelas dificuldades enfrentadas pelos seres sociais: o Princípio de Responsabilidade, cujas diversas acepções possuem em comum a necessidade de cuidar de outro ser humano quando este se encontrar ameaçado em sua vulnerabilidade.
Alcançado este momento, faz-se necessário recuperar a origem do vocábulo Ética, cujo sentido primeiro é de refúgio e proteção.
Hans Jonas, filósofo alemão contemporâneo, assenta na base da sua ética o dever de responsabilidade com a totalidade do ser, preservando-o dos processos de aniquilamento. Esse pensamento corresponde a atuar de modo a não permitir que os atos adotados sejam devastadores para as futuras possibilidades de uma vida digna sobre a Terra. Nessa seara, destaca-se dos demais filósofos, quando indica o jaez ontológico da responsabilidade, ao preocupar-se com o futuro de uma Humanidade que ainda não existe. Esse tipo de responsabilidade, nas palavras do autor, constitui-se no “[...] arquétipo de toda a ação responsável, arquétipo que, felizmente, não precisa de nenhuma dedução a partir de um princípio, senão que se encontra poderosamente implantado pela natureza em nós.”
Ao menos três pontos de vista tornam, senão inexecutável, mas, de intricada concretização, essa proposta. Em primeiro lugar, a Responsabilidade - enquanto princípio moral - refere-se a seres identificáveis, o que dificilmente sobrevém, pois as instituições reservam suas diligências a uma população, por vezes, não delimitada com clareza e objetividade. Hans Jonas requer a responsabilidade com um ser da Natureza e das futuras gerações, na busca de assinalar responsabilidades por tudo o que acontece ou venha a acontecer no Mundo e, a um primeiro olhar, esse pensamento transforma-se numa forma quimérica de responsabilidade. Em segundo lugar, Hans Jonas destaca a responsabilidade em situações de incerteza, a exemplo daquelas que exigem posicionamentos prudentes, em razão da sua inconsistência científica. Deve-se ressaltar, que uma política exacerbada na reserva do incremento tecnológico insinuaria consequências inumeráveis para a sociedade, a começar pelo desemprego maciço, e sob o ponto de vista dos recursos em saúde, pela menor cobertura para os mais desprotegidos. Por conseguinte, essa solução dificultaria as ações coletivas. Em terceiro lugar, evidencia-se a questão da confiabilidade de técnicas de diagnóstico e prognóstico desenvolvidas no campo da biotecnologia e sua aplicação no âmbito social. Nos casos de prejuízo seria difícil, embora não impossível, detectar os liames causais entre atos individuais e consequências coletivas, a fim de imputar responsabilidades.
No campo em discussão, a Ética, por si só, vislumbra-se insatisfatória. Por tais razões, parece plausível uma visão da Responsabilidade no âmbito jurídico, além de trazer a lume o Princípio de Precaução ou Princípio de Proteção, o que tornará o tema, ao menos, transitável. Fundamenta-se o último princípio assinalado, na função estatal de resguardar a integridade física e patrimonial dos cidadãos, significando proteção e cobertura às necessidades essenciais, através das quais o afetado possa atender a outras necessidades e/ou outros interesses.
Fermin Roland Schramm e Miguel Kottow indicam as seguintes características: gratuidade, no significado de não existir o compromisso a priori de avocar atitudes protetoras; vinculação, no sentido de que uma vez assumida livremente converte-se em pacto irrenunciável; e cobertura das necessidades entendidas a partir do afetado. Segundo os referidos autores, o Princípio de Precaução/Proteção não se reduz ao Princípio de Beneficência ou a algum tipo de paternalismo: “A legítima moral da beneficência depende da avaliação do afetado, único a decidir se um ato será para ele beneficente.” No caso do paternalismo, cabe ao agente deliberar sobre o que seja benéfico ao afetado, independente ou mesmo contra a opinião do afetado. Observa-se, portanto, a diferença substancial entre os dois princípios, sobre o alcance do termo “proteção”. E, mais adiante, continuam seu discurso: “A ética de proteção deve ser entendida como um compromisso prático, submetido a alguma forma de exigência social, com o qual a proteção se transforma num princípio moral irrevogável, posto que agentes, afetados, tarefas e consequências devem ser bem definidos.”
Sobre esse ponto, Paul Ricoeur, pensador comprometido, militante e profundamente cristão, detentor do Grande Prêmio de Filosofia da Academia Francesa, aproxima-se do conceito de phronesis (prudência), em Aristóteles, que significa: “[...] sabedoria na deliberação, decisão e ação”, que deveria se transformar num princípio geral a priori, sob o qual se construiriam as responsabilidades individuais e coletivas.
Hans Jonas, por sua vez, também retoma o conceito de prudência, por embutir a existência da casualidade, da insegurança, do risco, da afoiteza e do ignorado, artifícios ínsitos à realidade científica. A prudência permite a detecção sensata da previsibilidade para com o futuro, tão necessária na discussão dos resultados. Ao seu embalo, escolhe-se o que é imperativo evitar. Por isso, a prudência expressa-se através da precaução, que se liga à sabedoria, à capacidade de identificar o que seja bom e/ou mau para o cidadão.
Outra pergunta impõe-se, talvez, na mente dos leitores: o que tem tudo isso a ver com o ponto inicial deste trabalho: a esmola que se oferece aos menos desprovidos de sorte?
Pois bem, em todas as áreas do conhecimento as situações devem ser entendidas por diversos aspectos e não somente encontrar apoio na posição arbitrária de quem provoca a discussão. O objeto deste trabalho não é a pedra insensível. Os sujeitos destacados são os seres humanos, que, por sua natureza, pensam, sentem e gozam de momentos felizes ou infelizes, que dividem justiças e injustiças no grupo social. Sendo assim, o discurso efetivado, até o momento, contextualiza a necessidade de defender que as relações entre indivíduos e Sociedade, entre o “subjetivo e o objetivo” carecem de identificação. Cultua-se ainda a proeminência do poder de persuasão e coerção das intervenções do Poder Público, quando forçoso identificar os riscos e combater a discriminação.
Deve-se compreender a exigência de igualdade entre os cidadãos, através da vindicação de tratamento igualitário aos iguais, o que exige o estabelecimento de novos paradigmas de equilíbrio a serem aplicados como um pré-requisito ao estabelecimento da categoria cujos membros devem ser tratados com igualdade. Por tal razão, e, por sua desenvoltura própria, os temas Ética e Esmola, aproximam-se. É protuberante a necessidade de avaliar a tutela do Poder Público, como pretensão de cuidar do sujeito social, prevenindo os riscos e promovendo um meio ambiente saudável, no qual lhe sejam garantidas as necessidades mínimas.
No âmbito do conhecimento científico - que deve atuar no sentido de garantir a todos os meios para alcançar sua felicidade - a aplicação solitária dos princípios originários do anfiteatro da Ética tornam-se insuficientes. Mas, conquanto o sejam, ao menos, tracejam caminhos para a afirmação de regras jurídicas que dignifiquem o indivíduo no que lhe é essencial - sua dignidade humana.
Pensamento final
Ao final deste enredo, deve-se afirmar que não mais é suficiente apontar as falhas com o dedo em riste, nem emoldurá-las em palavras de semântica beleza, com base em critérios díspares e insatisfatórios, mas, de apelo retórico polissêmico, que, pela diversidade de interpretações, por si só, atrairão adeptos, na maioria das vezes ignorantes ao real significado do objeto almejado. Faz-se necessária uma atitude conjunta, entre Estado e Sociedade. Sendo assim, a caridade, essa prática ambígua nos seus propósitos, não se amolda a uma sociedade que pugna pela cidadania.
No Brasil, a ética constitucional aponta de forma clara para a cidadania. Sendo assim, um indivíduo carente não pode ser visualizado como inferior por outro indivíduo que nasceu em melhores circunstâncias de vida.
A depender de esforços individuais, irei ao encontro dos meus anseios profissionais e humanos, de contribuir para que nossas crianças e adolescentes, nossos homens e mulheres, que se espalham por esse imenso país, se conscientizem do vício intragável que carregam - alguns deles - de exaltar a própria incompetência - hoje gritada aos quatro ventos, num ato (in)visível de acomodação, por ser mais fácil colocar a culpa da própria derrota, material e/ou intelectual, em outrem - no momento em que a entendem relevante para a fruição de algum bem desejado a qualquer custo, inclusive sob o jugo da esmola, seja esta compreendida em qualquer âmbito da vida humana.
Aclamada através do tempo e espaço por algumas religiões, por ser o caminho mais fácil para se alcançar o Paraíso, a esmola, sob o aforismo “Fora da caridade não há salvação”, apropriou-se do costume e do intelecto cognitivo dos povos, inoculando-lhes um vírus quase fatal, que contamina corpo e alma e ensina ao ser humano - subjugado aos seus encantos - os sintomas preferidos da mediocridade, que se iniciam na decadência da postura física, fixam-se num olhar desiludido e extravasam pela boca ou através de gestos mentirosos, amaldiçoados por uma infelicidade que se interpreta a bel prazer. Afirmo “quase” fatal, pois impossível e desumano ignorar os heróis circunstanciais, que renascem após os desesperos acendidos pelas vicissitudes insopitáveis da vida, entre outras, as calamidades sociais e naturais inesperadas, a doença e a morte, motivadas tantas vezes pelo jugo do poder político estabelecido.
De caráter inicialmente nobre, a palavra “esmola” perpassa os milênios num galope repleto de manipulada altivez, para alcançar o mundo contemporâneo sob a forma felina e ferina – camaleônica sedutora - que se individualiza no comportamento de cada indivíduo, quando inserido no corpo social.
Nesse jogo todo, o “ser pedinte” aprisiona-se na própria mendicância e dali recusa-se a sair, por si mesmo ou por força superior. A partir disso, o “poder estabelecido” engendra-o, forja-o aos seus interesses próprios, animando-o a degradar-se, cada vez mais, à corrupção inerente aos instintos selvagens contidos em todos os seres humanos. A partir da fatal constatação, assiste-se à falsificação temporária da realidade material, no afã de dissimular um lúbrico discurso. Vedam-se os olhos e trancam-se os ouvidos do “ser pedinte”, para que a pedincha oferecida se transforme em objeto de manipulação de quem a proporciona sobre quem a recebe. Deflagra-se um circuito invisível e, portanto, pernicioso e covarde, de opressão do mais fraco pelo mais forte.
Como sucedeu em diversos momentos ultrapassados pela Humanidade, a época em trânsito vocifera contra as injustiças sociais sibilantes, sendo propícia à discussão e ao estabelecimento de políticas públicas que visem melhor qualidade de vida ao ser humano. Este é o momento das mudanças a serem estabelecidas pela consciência moral do povo, mudanças essas, às quais, filosófica e moralmente, seriam desnecessárias a criação de leis jurídicas, pois que se encontram nas águas direcionadas pelas margens dos princípios instituídos desde sempre, à revelia de qualquer lei (im)posta pelos humanos, provenientes do Direito Natural.
Esse desejo-utopia de contribuir em prol de uma sociedade civilizada e sã, na qual os cidadãos tenham condições de gerir suas próprias vidas, sob a proteção de um Estado Democrático de Direito, encontra-se enraizado, não na Caridade Cristã, mas, nos Princípios de Solidariedade e de Responsabilidade, pertinentes ao mundo atual.
Mas, serão esses realmente suficientes?
Na Constituição Brasileira de 1988, o Princípio de Solidariedade, também conhecido como Princípio de Integração ou Princípio de Solidariedade Comunitária, apregoa-se no Preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar [...] uma sociedade fraterna.” Encontra-se também inserido no art. 3º, incisos I e III, ao situar que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. O princípio em destaque é ainda evidenciado em outros dispositivos, entre estes: art. 159, inciso I, alínea “c”; art. 43 e todos seus parágrafos e incisos; art. 151, inciso I; art. 159, inciso I, alínea “c”; art. 165, parágrafos 6º, 7º e inciso II do parágrafo 9º; art. 170 e seu inciso VII; caput do art. 192 e seu inciso VII; artigos 194 e 195; além dos direitos sociais previstos nos arts. 6º ao 11, assim como o parágrafo 10 do art. 34 das Disposições Constitucionais Transitórias.
O Princípio de Solidariedade diz respeito à defesa dos direitos de igualdade de tratamento, dos interesses coletivos, supra-individuais, gerais ou públicos. Como princípio jurídico, Javier de Lucas assim entende a Solidariedade: “[...] consciência conjunta de direitos e obrigações, que surgiria da existência das necessidades comuns, de similitudes (de reconhecimento de identidade), que precedam às diferenças sem pretender sua alienação.” Tal linha de pensamento busca oferecer ao cidadão, concomitantemente, um tratamento equitativo e sustentável e isto origina infindáveis críticas, em especial quando se põe em foco a liberação de verbas, reconhecidamente escassas em qualquer sistema que privilegie a dignidade da pessoa humana. Essa ideia não é uma novidade para o direito brasileiro, pois a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e à liberdade são garantias individuais asseguradas pela Constituição Federal de 1988.
Em decorrência do exposto, outra inquirição se coloca: qual o significado da noção de dignidade humana aplicada ao indivíduo alocado na situação de miserabilidade humana?
Para aproximar os significados e compreendê-los frente às exigências atuais, parece interessante remontar às origens da noção, no século V a.C., onde plantam-se as raízes mais profundas na humanitas grega. No pensamento grego encontra-se uma visão universalista do ser humano, cujo valor está em mostrar claramente a exigência ética do respeito universal ao outro, a qualquer outro, ao que se considera outro eu. Pela época de 106-43 a.C., dirá Cícero (De legibus, I, 10) a esse respeito: “Nada há tão semelhante a outra coisa como um homem a outro. Qualquer definição do homem vale para outro. Ela somente resulta obscurecida na medida em que o homem se deixa levar pela corrupção dos costumes e pela variabilidade do ânimo.”
Esse pensamento é mais tarde desenvolvido e enriquecido pelo Cristianismo. A noção plantada pelos judeus do homem à imagem de Deus universaliza-se, difundindo-se a máxima de que qualquer membro da espécie humana possui um valor absoluto. E, provavelmente, ninguém melhor do que São Tomás de Aquino resume a impossibilidade de encontrar uma definição para o conceito de dignidade, quando exara: “[...] o termo dignidade é algo absoluto e pertence à essência.” Premissa básica do jusnaturalismo é, portanto, o reconhecimento no ser humano da sua própria dignidade, tornando desprezíveis, eticamente, condutas incompatíveis com tal condição, premissa considerada também na proposição finalista kantiniana da pessoa.
Nesse anfiteatro, relevante proporcionar, para além das perguntas, possíveis soluções. E, sendo assim, Ângela Maria Rocha Gonçalves de Abrantes ressalta, que, para implementar alguns dispositivos constitucionais o Brasil possui os chamados fundos constitucionais compensatórios, mecanismos de proteção às regiões nordeste/norte/centro-oeste: “[...] que visam minimizar as desigualdades econômicas e sociais ali existentes, reduzir a pobreza e acabar com os desequilíbrios existentes, ao tempo que objetivam patrocinar e incentivar o desenvolvimento dos Estados das citadas regiões.”
O Princípio de Solidariedade demonstra a ligação íntima entre o prejuízo da sociedade à vulnerabilidade de cada um dos seus membros, e, por tal razão, recomenda a reunião de todos para a suavização de infortúnios e a defesa de agressões, constituindo-se um sistema protetivo organizado em conjunto, em prol do bem comum. Implícita na Solidariedade encontra-se a Igualdade, tanto de esforço realizado como de proteção obtida e, nas palavras dos cientistas Fermin Roland Schramm e Miguel Kotow: “[...] ali onde esta simetria se rompe, aparecem os abusos e as desproteções dos mais débeis.”
Como se percebe, o Princípio de Solidariedade aplicado isoladamente às políticas públicas, queda-se precário para resolver os complexos problemas sociais, porque se apregoa a solidariedade em situações de profunda diversidade de necessidades, independente das discrepâncias profundas de valores colocadas avessas à argumentação.
Adentra, portanto, na pauta da cogitação aqui originada, outro princípio a ser considerado como possível instrumento apropriado para a análise de questões morais divisadas pelas dificuldades enfrentadas pelos seres sociais: o Princípio de Responsabilidade, cujas diversas acepções possuem em comum a necessidade de cuidar de outro ser humano quando este se encontrar ameaçado em sua vulnerabilidade.
Alcançado este momento, faz-se necessário recuperar a origem do vocábulo Ética, cujo sentido primeiro é de refúgio e proteção.
Hans Jonas, filósofo alemão contemporâneo, assenta na base da sua ética o dever de responsabilidade com a totalidade do ser, preservando-o dos processos de aniquilamento. Esse pensamento corresponde a atuar de modo a não permitir que os atos adotados sejam devastadores para as futuras possibilidades de uma vida digna sobre a Terra. Nessa seara, destaca-se dos demais filósofos, quando indica o jaez ontológico da responsabilidade, ao preocupar-se com o futuro de uma Humanidade que ainda não existe. Esse tipo de responsabilidade, nas palavras do autor, constitui-se no “[...] arquétipo de toda a ação responsável, arquétipo que, felizmente, não precisa de nenhuma dedução a partir de um princípio, senão que se encontra poderosamente implantado pela natureza em nós.”
Ao menos três pontos de vista tornam, senão inexecutável, mas, de intricada concretização, essa proposta. Em primeiro lugar, a Responsabilidade - enquanto princípio moral - refere-se a seres identificáveis, o que dificilmente sobrevém, pois as instituições reservam suas diligências a uma população, por vezes, não delimitada com clareza e objetividade. Hans Jonas requer a responsabilidade com um ser da Natureza e das futuras gerações, na busca de assinalar responsabilidades por tudo o que acontece ou venha a acontecer no Mundo e, a um primeiro olhar, esse pensamento transforma-se numa forma quimérica de responsabilidade. Em segundo lugar, Hans Jonas destaca a responsabilidade em situações de incerteza, a exemplo daquelas que exigem posicionamentos prudentes, em razão da sua inconsistência científica. Deve-se ressaltar, que uma política exacerbada na reserva do incremento tecnológico insinuaria consequências inumeráveis para a sociedade, a começar pelo desemprego maciço, e sob o ponto de vista dos recursos em saúde, pela menor cobertura para os mais desprotegidos. Por conseguinte, essa solução dificultaria as ações coletivas. Em terceiro lugar, evidencia-se a questão da confiabilidade de técnicas de diagnóstico e prognóstico desenvolvidas no campo da biotecnologia e sua aplicação no âmbito social. Nos casos de prejuízo seria difícil, embora não impossível, detectar os liames causais entre atos individuais e consequências coletivas, a fim de imputar responsabilidades.
No campo em discussão, a Ética, por si só, vislumbra-se insatisfatória. Por tais razões, parece plausível uma visão da Responsabilidade no âmbito jurídico, além de trazer a lume o Princípio de Precaução ou Princípio de Proteção, o que tornará o tema, ao menos, transitável. Fundamenta-se o último princípio assinalado, na função estatal de resguardar a integridade física e patrimonial dos cidadãos, significando proteção e cobertura às necessidades essenciais, através das quais o afetado possa atender a outras necessidades e/ou outros interesses.
Fermin Roland Schramm e Miguel Kottow indicam as seguintes características: gratuidade, no significado de não existir o compromisso a priori de avocar atitudes protetoras; vinculação, no sentido de que uma vez assumida livremente converte-se em pacto irrenunciável; e cobertura das necessidades entendidas a partir do afetado. Segundo os referidos autores, o Princípio de Precaução/Proteção não se reduz ao Princípio de Beneficência ou a algum tipo de paternalismo: “A legítima moral da beneficência depende da avaliação do afetado, único a decidir se um ato será para ele beneficente.” No caso do paternalismo, cabe ao agente deliberar sobre o que seja benéfico ao afetado, independente ou mesmo contra a opinião do afetado. Observa-se, portanto, a diferença substancial entre os dois princípios, sobre o alcance do termo “proteção”. E, mais adiante, continuam seu discurso: “A ética de proteção deve ser entendida como um compromisso prático, submetido a alguma forma de exigência social, com o qual a proteção se transforma num princípio moral irrevogável, posto que agentes, afetados, tarefas e consequências devem ser bem definidos.”
Sobre esse ponto, Paul Ricoeur, pensador comprometido, militante e profundamente cristão, detentor do Grande Prêmio de Filosofia da Academia Francesa, aproxima-se do conceito de phronesis (prudência), em Aristóteles, que significa: “[...] sabedoria na deliberação, decisão e ação”, que deveria se transformar num princípio geral a priori, sob o qual se construiriam as responsabilidades individuais e coletivas.
Hans Jonas, por sua vez, também retoma o conceito de prudência, por embutir a existência da casualidade, da insegurança, do risco, da afoiteza e do ignorado, artifícios ínsitos à realidade científica. A prudência permite a detecção sensata da previsibilidade para com o futuro, tão necessária na discussão dos resultados. Ao seu embalo, escolhe-se o que é imperativo evitar. Por isso, a prudência expressa-se através da precaução, que se liga à sabedoria, à capacidade de identificar o que seja bom e/ou mau para o cidadão.
Outra pergunta impõe-se, talvez, na mente dos leitores: o que tem tudo isso a ver com o ponto inicial deste trabalho: a esmola que se oferece aos menos desprovidos de sorte?
Pois bem, em todas as áreas do conhecimento as situações devem ser entendidas por diversos aspectos e não somente encontrar apoio na posição arbitrária de quem provoca a discussão. O objeto deste trabalho não é a pedra insensível. Os sujeitos destacados são os seres humanos, que, por sua natureza, pensam, sentem e gozam de momentos felizes ou infelizes, que dividem justiças e injustiças no grupo social. Sendo assim, o discurso efetivado, até o momento, contextualiza a necessidade de defender que as relações entre indivíduos e Sociedade, entre o “subjetivo e o objetivo” carecem de identificação. Cultua-se ainda a proeminência do poder de persuasão e coerção das intervenções do Poder Público, quando forçoso identificar os riscos e combater a discriminação.
Deve-se compreender a exigência de igualdade entre os cidadãos, através da vindicação de tratamento igualitário aos iguais, o que exige o estabelecimento de novos paradigmas de equilíbrio a serem aplicados como um pré-requisito ao estabelecimento da categoria cujos membros devem ser tratados com igualdade. Por tal razão, e, por sua desenvoltura própria, os temas Ética e Esmola, aproximam-se. É protuberante a necessidade de avaliar a tutela do Poder Público, como pretensão de cuidar do sujeito social, prevenindo os riscos e promovendo um meio ambiente saudável, no qual lhe sejam garantidas as necessidades mínimas.
No âmbito do conhecimento científico - que deve atuar no sentido de garantir a todos os meios para alcançar sua felicidade - a aplicação solitária dos princípios originários do anfiteatro da Ética tornam-se insuficientes. Mas, conquanto o sejam, ao menos, tracejam caminhos para a afirmação de regras jurídicas que dignifiquem o indivíduo no que lhe é essencial - sua dignidade humana.
Pensamento final
Ao final deste enredo, deve-se afirmar que não mais é suficiente apontar as falhas com o dedo em riste, nem emoldurá-las em palavras de semântica beleza, com base em critérios díspares e insatisfatórios, mas, de apelo retórico polissêmico, que, pela diversidade de interpretações, por si só, atrairão adeptos, na maioria das vezes ignorantes ao real significado do objeto almejado. Faz-se necessária uma atitude conjunta, entre Estado e Sociedade. Sendo assim, a caridade, essa prática ambígua nos seus propósitos, não se amolda a uma sociedade que pugna pela cidadania.
No Brasil, a ética constitucional aponta de forma clara para a cidadania. Sendo assim, um indivíduo carente não pode ser visualizado como inferior por outro indivíduo que nasceu em melhores circunstâncias de vida.
A depender de esforços individuais, irei ao encontro dos meus anseios profissionais e humanos, de contribuir para que nossas crianças e adolescentes, nossos homens e mulheres, que se espalham por esse imenso país, se conscientizem do vício intragável que carregam - alguns deles - de exaltar a própria incompetência - hoje gritada aos quatro ventos, num ato (in)visível de acomodação, por ser mais fácil colocar a culpa da própria derrota, material e/ou intelectual, em outrem - no momento em que a entendem relevante para a fruição de algum bem desejado a qualquer custo, inclusive sob o jugo da esmola, seja esta compreendida em qualquer âmbito da vida humana.
Cabo Frio, 8 de novembro de 2009 – 17h06
Se algum leitor desejar as referências das obras aqui citadas,
solicito que entre em contato, através do meu e-mail particular: silviamota@silviamota.com.br
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