QUALIFICAÇÃO REGISTRÁRIA DA PROMESSA DE COMPRA E VENDA
A promessa de compra e venda de bem imóvel sofreu diversas modificações quanto ao seu regramento, conforme se deu a evolução da legislação pátria.
Para o exame da matéria na vigência do Novo Código Civil, é necessário verificar, inicialmente, que o art. 108 daquela codificação, que é norma geral aplicável a todos os negócios jurídicos, afirma que “não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”.
A promessa de compra e venda está apta a gerar direito real ao adquirente do imóvel, graças à sua inclusão no art. 1.225, VII, que arrola os direitos reais no âmbito do Código Civil. Não está inserida apenas no plano obrigacional, mas também no dos direitos reais.
Sua disciplina encontra-se nos arts. 1.417 e 1.418. O primeiro deles estabelece que “mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel”. O art. 1.418 complementa fixando que “o promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel.”
Sendo o direito derivado do registro da promessa de compra e venda um direito real, deve ser aplicada a norma geral relativa à forma dos contratos relativos à transmissão dos referidos direitos, ou seja, a forma de escritura pública, sempre que o valor for superior ao constante do art. 108 do Código Civil.
Essa a opinião abalizada de EDUARDO PACHECO RIBEIRO DE SOUZA (in Bol. Eletr. do IIRIB nº 640, de 26/02/2003):
"À evidência, a promessa de compra e venda visa a constituição de direito real sobre imóvel, e portanto é da substância do ato a escritura pública. A promessa só terá eficácia, que é a aptidão para produzir efeitos (e dentre eles o de constituir direito real pelo registro), se for lavrada por instrumento público, ressalvadas as exceções, que se verão à frente."
Dessa forma, ao mencionar a possibilidade de realizar a promessa de compra e venda por instrumento público ou particular no art. 1.417, o legislador nada mais fez do que harmonizar tal disposição com a do art. 108 do Código Civil, que admite o instrumento particular quando o valor do imóvel for inferior a trinta salários mínimos.
O Estatuto Civil trata de forma idêntica o contrato de doação previsto no seu art. 541, caput, declarando que a doação far-se-á por escritura pública ou instrumento particular, este último aceito quando o valor do imóvel for inferior ao mínimo estabelecido pelo art. 108 do Código Civil.
A característica de atribuir um direito real à promessa de compra e venda registrada em cartório a torna diferente dos demais contratos preliminares previstos no art. 462 do Código Civil, nos quais há apenas a incidência de um direito pessoal, que pode ser resolvido em perdas e danos, mas não gera qualquer direito no plano real.
Situação diferente é a regulada por leis específicas, como a Lei nº 6.766/79, que trata dos imóveis loteados e expressamente admite o instrumento particular. O mesmo sucede em relação aos imóveis financiados pelo SFH (Lei nº 4.380/64) ou mencionados pela Lei nº 9.514/97. Nessas hipóteses, é admissível o registro de instrumento particular de promessa de compra e venda, independentemente do valor do imóvel objeto do contrato, por expressa previsão legal.
Ausente tal previsão, o instrumento público é a forma correta de viabilizar a promessa de compra e venda, dando-lhe eficácia real.
Apesar dos argumentos acima expostos, parte da doutrina e da jurisprudência inclina-se no sentido da registrabilidade da promessa de compra e venda de imóveis firmada por instrumento particular.
Argumentam os defensores de tal tese que o art. 108 do Código Civil exige a escritura pública apenas para a transmissão do domínio, o que não é objeto da promessa de compra e venda, a qual atribui ao promitente comprador apenas o direito real à aquisição, e não a propriedade em si.
Além disso, o art. 1.417 do Novo Código Civil é explícito ao afirmar que “mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, elaborada por instrumento público ou particular ...”, facultando a forma para a lavratura do pacto entre as partes.
Tal regra encontrar-se-ia consentânea com o disposto no art. 108 da codificação civil, que, ao exigir a escritura pública para a validade dos negócios jurídicos relativos a imóveis cujo valor seja superior a trinta salários mínimos, ressalvou a possibilidade da lei dispor em contrário. Dessa forma, a disposição constante do art. 1.417 estaria em plena harmonia com a norma existente no art. 108, na qualidade de ressalva à regra geral.
MARIA HELENA DINIZ (in Curso de Direito Civil Brasileiro, v.4, p. 74), após mencionar a insegurança derivada do uso dos instrumentos particulares, está entre os que defendem que a promessa de compra e venda seja firmada por tais instrumentos, ao afirmar que “razões de ordem prática têm levado nossos juízes e tribunais a aceitar sua constituição por instrumento particular, pois a sua insegurança estaria contrabalançada pela exigência do registro no Ofício de Imóveis, para que o compromissário-comprador adquirisse o direito real.”
NICOLAU BALBINO FILHO (in Registro de Imóveis: doutrina, prática e jurisprudência, p.199) conclui afirmando que “o novo Código, a exemplo das leis anteriores já mencionadas, no caso em estudo deixa a critério das partes a eleição do instrumento contratual: público ou particular. Por isso, seria desprezível qualquer debate a esse respeito.”
Exemplo de tal interpretação na jurisprudência foi adotada na decisão a seguir transcrita, oriunda da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo (Proc. nº 000.03.03674-7, julgado em 01/05/2003):
"Compromisso de compra e venda. Escritura pública X instrumento particular. Notário.
EMENTA NÃO OFICIAL: Na vigência do NCC é de se afirmar a resgistrabilidade dos compromisso de compra e venda formalizados por instrumento particular, independentemente do valor.
O art. 108, do Novo Estatuto Civil, em compasso com o disposto no art. 1.417, do mesmo instrumento, exigem ESCRITURA PÚBLICA para a transferência de DOMÍNIO, mas não o exige tal formalidade para a conquista do direito ainda em formação, em que pese desenvolver, já nesta fase, caráter de DIREITO REAL.
O art. 1.418 do NCC, bem anota a exata natureza jurídico do contrato firmado pelo PROMITENTE COMPRADOR, indicando que este representa “instrumento preliminar”, ou preparatório, para o desate final, que se consolida com a passagem definitiva do DOMÍNIO. Como instrumento preliminar, não se mostra apto a transferir o direito transacionado, não exigindo a sua formalização por escritura.
Portanto, e resposta à dúvida registral levantada, é de se afirmar a registrabilidade dos COMPROMISSOS DE COMPRA E VENDA, formalizados por instrumento particular, independentemente do VALOR."
Também o Tribunal de Justiça do Distrito Federal se pronunciou a respeito do tema, concluindo pela possibilidade de ingresso no fólio real do instrumento particular de promessa de compra e venda de bem imóvel:
"COMPROMISSO PARTICULAR DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. REGISTRO NO CRI. POSSIBILIDADE.
O atual Código Civil, no art. 1.417, expressamente admite o registro, no cartório de imóveis, de promessa de compra e venda de imóvel, celebrada por instrumento público ou particular, para que o promitente comprador adquira direito real à aquisição. Apelação provida. (APC 20030110619448, julgada em 29/11/2004, DJU 15/02/2005)"
Portanto, o instrumento particular de promessa de compra e venda de bem imóvel cujo valor seja superior a trinta salários mínimos deve sofrer qualificação negativa, embora parte da doutrina e da jurisprudência aceite realizar o registro com base em tais instrumentos.