Relativização da liberdade humana
Síntese e adaptação de texto contido em:
MOTA, Sílvia M. L. Responsabilidade civil decorrente das manipulações genéticas: novo paradigma jurídico ao fulgor do biodireito. Tese (Doutorado em Justiça e Sociedade)–Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2005 [Aprovada, por unanimidade, no Exame de Qualificação, realizado em 15 jun. 2005. Orientador: Professor Doutor Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Membros da Banca Examinadora: Professor Doutor Ricardo Pereira Lira, Professor Doutor José Ribas Vieira e Professora Doutora Fernanda Duarte].
MOTA, Sílvia M. L. Responsabilidade civil decorrente das manipulações genéticas: novo paradigma jurídico ao fulgor do biodireito. Tese (Doutorado em Justiça e Sociedade)–Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2005 [Aprovada, por unanimidade, no Exame de Qualificação, realizado em 15 jun. 2005. Orientador: Professor Doutor Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Membros da Banca Examinadora: Professor Doutor Ricardo Pereira Lira, Professor Doutor José Ribas Vieira e Professora Doutora Fernanda Duarte].
No contexto social, a liberdade “é uma conquista” e se impõe ao homem como de sua responsabilidade. Essa ausência de princípios norteadores da ação destaca-se na passagem da obra "O Existencialismo é um Humanismo", no qual um jovem pergunta a Jean Paul Sartre se deve ir para a guerra ou cuidar da mãe. Responde o filósofo, não existir uma regra, um valor, um modelo, mesmo uma resposta correta ou um conselho exterior, a servir de parâmetro para a ação. Ensina ser de total responsabilidade do jovem essa opção, por ser livre na eleição dos seus próprios valores. Não existindo valores universais a lhe servirem de paradigma, cabe ao homem engendrar os próprios valores que nortearão suas ações na vida. E, por assim ser, não existem valores éticos universais para a vida humana, mas somente a construção real e individual dos valores.
Esse pensamento leva à seguinte verificação: em Sartre, para atingir um fim/objetivo, é lícito usar de quaisquer meios?
As ações livres dos homens trilham a um fim determinado. Mas, na perspectiva sartriana, este objetivo está ameaçado pelo Outro, o qual, embora necessário, é também um mal. Coexistem, portanto, Eu e o Outro, duas liberdades que se afrontam e tentam mutuamente paralisar-se através do olhar. No meio social, o convívio Eu-Outro se constitui num embate pela supremacia da liberdade. Ao perceber-se inapto para uma identificação objetiva à consciência do Outro, será o homem conduzido a volver os olhos deliberadamente para o Outro. Por essa atitude avoca a própria liberdade, tentando ultrajar a liberdade do Outro. Dessa forma, o alvo do conflito será trazer a lume a luta de duas liberdades confrontadas enquanto liberdades. O Outro é um mal porque a sua liberdade demarca a liberdade própria do Eu e, mais ainda, é um mal indissociavelmente arraigado ao homem, pois o Outro faz parte do seu Eu, da sua consciência e da sua ação. Intentando satisfazer seus desejos e sua liberdade, o homem faz do Outro um meio, um mero objeto da sua livre ação. Mas, estabelece-se a recíproca e a liberdade do homem se desumaniza tornando-se um objeto do Outro e fazendo do Outro, igualmente, seu objeto. Impõe-se uma relação de senhor do Outro em relação ao homem, que passa a se sentir indefeso frente ao julgamento da consciência. O Outro é seu juiz e seu senhor. Não existe refúgio, pois em qualquer lugar o Outro se imporá, mesmo na sua solitude, porque o Outro está cristalizado no seu próprio cérebro.
Nas ações voluntárias dos homens, o Outro aparece como um Mal por impor limites à liberdade de ação humana e um Bem por constituir-se num meio para seus fins. Dessa forma, afirmar a liberdade implica na sobreposição ao Outro, transformando o homem num objeto da própria liberdade. Contudo, como assinala Jean Morange, a liberdade humana não é absoluta: “É banal afirmar que nenhuma liberdade pode ser limitada. Mesmo aos olhos dos liberais mais extremistas, a liberdade de cada um deve terminar onde começa a liberdade do outro.” O ser humano, no gozo de sua liberdade, pode decidir-se por um determinado projeto de vida. Mas, embora seja único e irrepetível, não se encontra exilado no mundo, fechado em si mesmo. O homem convive com os demais, é um ser coexistencial. Neste sentido, declara Carlos Fernández Sessarego: “A existência é coexistência.”
Sob um ponto de vista histórico, interessante trazer a famosa distinção de B. Constant entre a liberdade do mundo antigo e a liberdade dos tempos modernos, referindo-se a modelos de liberdade que respondem a conquistas de etapas históricas concretas e aplicáveis a diferentes tipos de convivência social; ou a diferenciação de Imannuel Kant a dois usos de liberdade: um negativo, incorporado à capacidade do ser humano de agir independentemente de quaisquer outras causas para além da sua própria vontade ou razão prática - a independência a respeito de um objeto desejado; outro positivo, referente ao poder causal da razão em se autodeterminar, permitindo-lhe agir autonomamente, apenas com bases racionais. Isto significa a determinação do livre arbítrio pela simples forma legisladora universal. Assim, ser livre é ser moralmente responsável. Segundo Imannuel Kant, vontade livre e vontade submetida às leis morais são uma e a mesma coisa. Dennis Lloyd traça também a distinção entre a liberdade positiva e a liberdade negativa, enlaçando a última à organização do modelo de sociedade de tal modo que, independente de todas as sujeições impostas à ação individual em relação à sociedade como um todo, subsiste uma esfera para a escolha e a iniciativa individuais, alargada em conformidade ao bem-estar público. A liberdade positiva, por outro lado, muito mais próxima de uma concepção espiritual, subentende alguma espécie de oportunidade máxima para a auto-realização de cada indivíduo, até que atinja sua plena capacidade como ser humano.
No rastro do exercício livre da vontade humana, não se pode olvidar, os fins não justificam os meios. Neste sentido alerta Imannuel Kant que: “[...] o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade.”
Essa divagação pelo mundo filosófico, fixa alguns pontos fundamentais. A liberdade é a condição da existência humana; o homem é incondicionalmente livre, pode escolher livremente o que fazer. Não obstante, essa liberdade poderá limitar-se pelo medo, levando-o a abdicar de certas escolhas por receio à repressão religiosa, moral ou jurídica. Mas, a liberdade em si estará sempre presente e, sobrepondo-se ao medo, será executada. Por tal motivo - sendo um poder do homem - a liberdade sem freios arrisca-se a transformá-lo num asselvajado, o que importará na opressão dos fracos pelos fortes e na ausência de toda liberdade dos primeiros.
Na realidade, o nascedouro do conflito é a intolerância do homem frente ao exercício da sua própria liberdade. Daí a necessidade do estabelecimento de regras jurídicas para reger o desenvolvimento e a atuação do ser humano no corpo social.
REFERÊNCIAS
CONSTANT, B. De la libertad de los antigos comparada com la de los modernos: escritos políticos. Tradução M. L. Sánchez Mejía. Madrid: CEC, 1989.
FERNÁNDEZ SESSAREGO, Carlos. Libertad y genoma humano. In: EL DERECHO ante el Proyecto Genoma Humano. Tradução José Gerardo Abella. Bilbao: Fundación BBV Documenta, 1994. v. I.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução Alex Marins. São Paulo: M. Claret, outono 2002.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Alex Marins. São Paulo: M. Claret, outono 2002.
LLOYD, Dennis. A ideia de lei. 2. ed. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: M. Fontes, 2000.
MACEDO, Ubiratan Borges de. A ideia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1997.
MORANGE, Jean. Droits de l’homme et libertés publiques. 3. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1995.
SARTRE, Jean Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1999.
Imagem: Ícaro, guache recortado de Matisse