Licença poética
Em um comentário que publiquei num texto de um dos nossos recantistas - Alexandre Tambelli - "Tratados de versificação ou escrita literária e licença poética" (Link disponível) assim me expressei:
Maravilhoso seu trabalho nobilíssimo poeta. Meus aplausos!! Mas desculpe discordar um pouco do que você escreveu lá no início.
O poeta tem sim o dom da "licença poética" como todos sabemos ou já ouvimos falar. Mas não é assim tão vasta esta licença!
E, como o próprio nome diz, é "poética" a licença, ou seja, é só para poetas. Não para romancistas, ou autores de contos, prosa, ou escritores em geral.
Assim fosse, estaríamos num verdadeiro atoleiro. E mesmo para eles, os poetas, a "licença" não é extensiva a tudo que eles quiserem escrever. Existe a licença poética e a "licença" poética. Aquela é para algumas situações, que ao poeta é permitido fazer, transgredindo uma determinada regra.
Esta outra, não é para ninguém. É para aqueles que, não sabendo escrever, valem-se desta para grafar barbaridades em nome de uma "licença" inexistente.
Já vi, por exemplo, um certo poeta escrever: "faço minha as suas palavras." e, ao ser chamado a atenção para o erro de concordância, dizer: "eu tenho licença poética."
Mas concordo que não se pode, em nome de uma regra, sentir-se enjaulado, enclausurando ideias. (Desde que se respeite a norma culta, ou, no mínimo, a nossa língua pátria.
Acrescentando agora, ao postar isto aqui, na minha escrivaninha, o que se segue, quero deixar registrado mais uma observação a respeito do assunto, e que não foi incluída no comentário referido acima.
Houve uma licença poética, por exemplo, num famoso poema de Cecília Meireles, que serviu de ensejo a muita polêmica, onde ela usa, claramente, a "licença poética", para escrever "sou poeta" no poema "Motivo" de sua autoria. O motivo de aquela poetisa ter escrito "sou poeta", não foi para dizer que ela queria ser chamada de poeta! Apesar de muitas mulheres nos dias atuais, usarem este poema como argumento para se tacharem de poeta.
O motivo real de ela ter usado esta impropriedade de se chamar de poeta, foi para rimar com a palavra "Completa" do segundo verso da mesma estrofe, como se comprova a seguir.
"Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta."
(grifos meus)
Pela mesma licença poética, a poetisa Cecília Meireles se autodenomina de "mudo" na última estrofe do mesmo poema que citei acima, conforme se constata a seguir.
"Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada."
No poema ela se chamou de "mudo" não foi porque estivesse reivindicando para si este tratamento. Foi para rimar com a palavra "tudo" no primeiro verso da mesma estrofe.
Entretanto, uma coisa interessante se aufere deste fato: Por que razão, as mulheres que reivindicam para si o tratamento de "poetas" não o fazem também para "mudo"? Quando em algum momento vão escrever que a boca fica muda? E há tantos poemas onde se escreve esta frase ou algo semelhante!
_____
Notas
1. Foram feitas algumas alterações no texto original, em face a falhas cometidas e não percebidas pela falta de revisão antes da publicação.
2. Estas modificações não modificam em nada o sentido do texto. Apenas lhe corrige falhas de escrita, tal foi mencionado.
3. O poema "Motivo" abordado no final deste artigo, está publicado no livro "Viagem", lançado em 1939.