Impressões sobre a realidade: o verossímil ou o necessário em Nove Noites

“Marca o começo da libertação de dois erros que muitas vezes têm estragado as

teorias estéticas: a tendência para confundir os juízos estéticos com os juízos morais e

a tendência para considerar a arte como simples reprodução ou fotografia da

realidade.” (ROSS sobre A Arte Poética, In: Aristote; trad. franc., p. 401)

Bernardo Carvalho começa Nove Noites pela voz do sertanejo Manoel Perna, portador da resposta para o mistério da morte de um jovem etnólogo americano no meio da selva brasileira. O romance mistura evidências históricas onde o escritor conecta a experiência de sua infância no Xingu à vida do Dr. Buell Quain. O último trabalho de Quain terminou em seu suicídio como consta nos documentos mal preservados no país. A narrativa intercalada entre Manoel Perna e o próprio escritor são o ponto alto na construção da trama. O primeiro narrador estaria mais próximo do Dr. Buell enquanto o segundo faz o trabalho de detetive procurando preencher as lacunas de uma investigação um tanto precária. A polêmica do episódio leva o leitor a crer na possibilidade de proteção à memória do falecido americano sob a máscara da ficção, porém, é o efeito estético que parece prevalecer no sucesso da obra.

Primeiramente, há uma constante justificativa do autor pela opção em escrever um romance ao invés de um livro de caráter histórico devido às conseqüências do último na realidade. No entanto, a opção pela ficção aborda o papel do autor não em relação a sua função pura e simplesmente de imitador e sim do efeito estético alcançado ao fazer esta simulação. O papel do ficcionista está no universal, portanto segundo a lição aristotélica: de caráter mais elevado, enquanto o historiador se reserva somente ao particular. Longe da concepção platônica, que separa a idéia dos objetos, para Aristóteles a idéia (eidos) é aliada ao indivíduo ou substância (ousia), em outras palavras, esta conexão dá vida ao personagem que então passa inspirar a confiança do interlocutor ao longo do texto.

O trabalho detalhado mostra sua riqueza num romance que muito deve a pesquisa do autor, o caráter mitológico dos índios deixa que fatos e ficção se confundam amarrados pela voz do sertanejo: um híbrido de índios e de homens brancos. O relato de Carvalho segue evidenciando a dificuldade de compreensão, pois há um juízo moralizante recorrente até mesmo a trabalhos de ficção: “As minhas explicações sobre o romance eram inúteis. Eu tentava dizer que, para os brancos que não acreditam em deuses, a ficção servia de mitologia, era o equivalente dos mitos dos índios, e antes mesmo de terminar a frase, já não se sabia se o idiota era ele ou eu. Ele não dizia nada a não ser: ‘O que você quer com o passado? ’. Repetia. E, diante da sua insistência, tive de me render à evidência de que eu não sabia responder à sua pergunta. Não conseguia fazê-lo entender o que era ficção (no fundo, ele não estava interessado), nem convencêlo de que o meu interesse pelo passado não teria conseqüências reais, no final seria tudo inventado.” (CARVALHO, 2006, Companhia de bolso, p. 86).

O autor mostra que o leitor desavisado pode avaliar como bem entender o livro. Consciente disto: “Cada um lê os poemas como pode e neles entende o que quer, aplica o sentido dos versos à sua própria experiência acumulada até o momento em que os lê.” (CARVALHO, 2006, Companhia de bolso, p. 102). Todavia, ao optar por escrever um texto literário oscila entre o aspecto ontológico e o aspecto epistemológico do eidos. Aplicados ao eidos o texto e personagens tomam as atitudes inteligíveis para partir então do concreto ao abstrato de forma compreensível, mesmo que os fatos por si só (a forma bruta que os índios descreveram como o etnólogo se matou e suas cartas que descrevem acontecimentos que não checam com os documentos oficiais) passem por descrédito.

Partir para este gênero presta um serviço filosófico, diante de uma situação tão obscura é um recurso que propõe uma nova categoria de verdade. Ao menos uma “categoria de homens diz ou faz em tais circunstâncias, segundo o verossímil ou o necessário.”ARISTÓTELES, 2007, Martins Claret, p.43), logo, a personagem ganha por muitas vezes a empatia da audiência. Nove Noites não são simples imitações de ações ou o seu conjunto, pois excita o terror e por vezes a compaixão do espectador, segundo Aristóteles o que torna a obra mais bela. O final da narrativa não responde o mistério da morte de Quain, “... (e mais ainda) quando os fatos se desencadeiam contra nossa expectativa, pois desse modo provocam maior admiração do que sendo devidos ao acaso e à fortuna...” (ARISTÓTELES, 2007, Martins Claret, p. 45). Morre o antropólogo e seu segredo, a suposta carta (portadora da confidência de Quain) mencionada por Manoel, igualmente é esquecida com sua morte na selva.

Diante do exposto acima, concluo que o enredo de Nove Noites segue a idéia de tragédia aristotélica: seu final surpreendente ultrapassa as expectativas do leitor. Contudo, o autor passou credibilidade aos fatos tão conturbados para que ocorra a aceitação ou empatia por toda esta sucessão de eventos obedecendo exatamente “à condições de credibilidade; (isto é) deve ter certa verossimilhança”(ECO, 1991, Editora Perspectiva, p. 53) o que passa uma mensagem estética efetiva. Desta maneira, a opção pela ficção indica prevalecer sobre uma suposta proteção à memória da figura histórica de Buell Quain.

Referências bibliográficas:

ARISTÓTELES. Arte Poética, 2007, 1ª edição, Martins Claret. São Paulo – SP.

CARVALHO, Bernardo. Nove Noites, 2006, 1ª edição, Companhia de Bolso. São

Paulo- SP.

ECO, Umberto. A Estrutura Ausente, 1991, 7ª edição, Editora Perspectiva. São Paulo – SP

Texto de 2010