FICHAMENTO DE "O FOCO NARRATIVO", DE LIGIA CHIAPPINI

Universidade Federal da Paraíba

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas

Disciplina: Teoria da Literatura II

Professor: Expedito Ferraz

Wilder Kleber Fernandes de Santana

Fichamento do livro “O foco narrativo”, de Ligia Chiappini Moraes Leite

Trabalho de fundamento de curso apresentado à cadeira de Teoria da literatura II, sob tutela do professor Expedito Ferraz, como exercício de pesquisa, aprendizagem e produção.

1_ Narração, ficção e valor

→ Origens – Platão e Aristóteles: Narrar e Imitar

Segundo Ligia Chiappini, sob os pontos de vista Platônico e Aristotélico, histórias são contadas desde sempre. Seja através de fatos vividos por alguém ou de experiências que já foram vivenciadas. E foi dessa forma que, entre os fatos que são narrados e o público, se interpôs um narrador.

Porém, no tecer da história, houve complicação entre as próprias histórias narradas, e o narrador foi progressivamente se ocultando. Com o desenvolvimento do romance, os fatos narrados parecem narrarem-se a si mesmos. Existe uma relação entre o narrador e o personagem que os apresenta diretamente ao leitor, tanto os distanciando quanto os diluindo.

A narração não consiste em contar apenas o que se viveu ou aconteceu, mas também o que sonhou, imaginou. É por este motivo que narração e ficção surgiram praticamente em mesma estância. Segundo Platão e Aristóteles, que iniciam na tradição ocidental uma discussão sobre o modo de narrar entre a representação real e os efeitos exercidos sobre os ouvintes e/ou leitores.

Para Platão existe uma maneira de narrar que acompanha o verdadeiro homem honesto, e depende de quem será a referência (na narração). Esse mundo sensível, ao qual vivemos acorrentados, já é uma imitação do mundo das ideias. O julgamento é de que é mais adequado ao homem de bem narrar do que imitar. A poesia é uma cópia desse mundo sensível, condenável, servindo a amarrar mais ainda o homem ao domínio das paixões e dos sentidos, dificultando o desenvolvimento pleno do intelecto.

Já Aristóteles afirma o inverso de Platão. No sistema Aristotélico a poesia continua a ser imitação, mas não como uma cópia das aparências, e sim formadora das essências. Afirma ainda, na poética, que é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações numa mesma narrativa.

2_ Hegel e a objetividade épica

Desde então, até hoje, Aristóteles e Platão são retomados são retomados e representados para teorização da literatura. Uma das obras que os retomou e os sistematizou é “A Estética”, de Hegel.

Tentando diferenciar os gêneros – épico, lírico e dramático –, Hegel caracteriza o primeiro como eminentemente objetivo (a poesia épica seria aquela em que, do conjunto dos homens e dos deuses, brotaria a dinâmica dos acontecimentos que o poeta deixaria livremente. Trata-se de uma realidade exterior a ele, não se envolvendo com os sentimentos.)

O segundo, a lírica, é subjetiva (tendo com conteúdo “a alma agitada pelos sentimentos”, e o que se expõe é o extravasar do sujeito. Ele se expressa pelas palavras que profere.

O terceiro gênero, o dramático, sendo uma espécie de síntese doso outros dois (objetivo e subjetivo) se constitui sincronicamente de um desenrolar objetivo e da expressão vibrante da interioridade.

Detendo-se no estudo da epopéia, tendo passado pelo seu desenvolvimento histórico, Hegel tenta caracterizá-la como uma totalidade unitária, para posteriormente vê-la se transformar no romance.

O romance, a partir do momento em que é tido como conflito/relação entre poesia e prosa, começa a ser visto como um gênero enciclopédico que se alimenta dos outros anteriormente existentes. Segundo Ligia, no romance o dramático e o épico convivem, e essa distinção agora interiorizada, será o eixo da teoria do foco narrativo.

3_ Kayser: narração e convenção

Hegel realiza um mecanismo de ideias a respeito desses filósofos do passado. Um exemplo desse é nos manuais de Wolfang Kayser, em “Análise e interpretação da obra literária”, em que começa a tratar do narrador em sua forma primitiva: existe um narrador que conta acontecimentos a um auditório, porém, coloca-se em posição externa aos acontecimentos narrados. O romance, pouco mais tarde, viria a se beneficiar igualmente dessa liberdade maior de narrar.

Porém, segundo Kayser, há uma mudança no narrador de romance, em relação à poesia épica: não existe mais um público ao qual as histórias serão contadas, em que as pessoas se aproximam em experiências e valores. No romance o narrador fala pessoalmente a um leitor também pessoal, numa sociedade dividida em classes. Esse é o fenômeno da particularização, atribuído a alguns personagens que adquiriram valores comunitários.

Enquanto na epopéia o narrador se projetava á distância do mundo narrado, no romance ele torna-se íntimo, tanto por nos aproximar das personagens e dos fatos narrados quanto por dirigir-se diretamente ao leitor. Essa proximidade nos faz parecer estarmos diante de uma pessoa que expõe seus pensamentos, e, tanto o narrador quando o leitor ao qual ele se dirige são ficcionais.

Era assim que Aristóteles nos chamava atenção para a distinção entre verdade e verossimilhança.

4_ A teoria do foco narrativo: Henry James e Percy Lubbock

Diversos fatores que problematizam a relação entre ficção e realidade são bastante tratados por Henry James. O ideal para esse escritor é que, nas obras literárias ou em livros em geral, haja a presença discreta de um narrador que, por meio de um equilíbrio, passe para o leitor a idéia de que, a história que está sendo contada se conta a si própria, como um veículo que faça com que os leitores reflitam. Esse narrador é o responsável pela percepção e pela coerência dos elementos da narrativa. Tudo em favor da verossimilhança. É então que há um desaparecimento proposital e momentâneo do narrador.

Percy Lubbock, crítico Inglês, detendo-se no mesmo ponto de vista que James, é um pouco mais radical, afirma que só deve ser considerada “arte da ficção” as narrativas em que existem essas estratégias de omissão do narrador.

Lubbock ainda nos mostra diferença entre narrar e mostrar, sendo distinguidas pela intervenção do narrador. Além dessa existe a diferença entre cena (em que os acontecimentos são mostrados diretamente ao leitor, sem intervenção do narrador), e o sumário (panorama em que os fatos são contados e resumidos).

5_ A crítica a Lubbock: Wayne e Booth

Porém, diversos foram os autores que não concordaram com o ponto de vista de Lubbock, considerando-a parcial e dogmática.

Françoise Van-Rossum-Guyon nos alerta que é variada a terminologia utilizada para designar as categorias da narrativa.

E. M. Foster combate o seu normativismo, sobretudo em relação à condenação ao narrador que interfere na narração, e mudanças no ponto de vista, no mesmo romance.

Wayne Booth, no seu livro “A retórica da ficção”, mostra-nos que há inúmeras maneiras de contar uma história e que essa escolha depende dos valores a transmitir e dos efeitos que se busca desencadear (e não de uma necessidade de coerência para que não haja rompimento entre ficção e realidade). É Booth que promove a criação da categoria do autor implícito, sendo uma imagem do autor real criada pela escrita, exercendo o papel de comandar os movimentos do narrador, do tempo, das personagens, e de todos os acontecimentos das histórias.

6_ As visões de Jean Pouillon

Para Jean Pouillon, haveria três possibilidades na relação narrador-personagem: a visão com, a visão por trás e a visão de fora.

Na visão por trás, o narrador domina todo um saber sobre a vida da personagem e sobre o seu destino. É onisciente, sabendo de onde parte e para onde se dirige, na narração, o que pensam, fazem e dizem as personagens.

Na visão com, o narrador limita-se ao saber da própria personagem sobre si mesma e sobre os acontecimentos. Renunciando à visão de um Deus que tudo sabe e tudo vê, assume-se aqui a plena liberdade da criatura jogada no mundo, capaz de, na visão de Sartre, assumir o nada para ser.

Por fim, na visão de fora o narrador limita-se a descrever os acontecimentos, falando do exterior, sem que possamos nos adentrar nos pensamentos, emoções, intenções ou interpretações das personagens.

7_ Revisando as "visões": Maurice-Jean Lefebve

Segundo Maurice-Jean Lefebve, que reaproveita as categorias da visão de Jean Pouillon, a visão por detrás seria típica do romance clássico, especialmente o do século XIX; nele, diegese e discurso estão equilibrados. No romance de visão com, típico de certa linha dos romances do século XX, em primeira pessoa, que usam monólogo interior e o fluxo de consciência, haveria a predominância do ato do narrar sobre a diegese. Finalmente, a visão de fora, em que Lefebve aponta uma influência do cinema, característica, portanto, do século XX.

Lefebve também nos alerta para os silêncios da narração, as elipses, as indeterminações, os brancos, o que a narrativa omite, a começar por tudo aquilo que ela faz supor ter acontecido antes de ela se iniciar. E, problematizando, então, a sua própria distinção entre discurso e diegese vai mostrando as possibilidades de imbricamento entre eles, ou até mesmo a impossibilidade de separá-los rigidamente, pois a diegese acaba se confundindo com o enunciado, e este só tem existência pela enunciação, que, por sua vez, só se manifesta concretamente através daquele.

Lefebve corrige, assim, a parcialidade de Jean Pouillon que não considera a distinção entre narrador e autor implícito, pois o narrador, uma vez enunciado ou mesmo pelo próprio ato de enunciação, acaba se modificando num ser ficcional. Manter essa distinção, porém, é condição necessária para passar da análise meramente técnica para a análise ideológica dos textos literários.

8_ A análise estrutural da narrativa: Roland Barthes e Tzvetan Todorov

As vozes e as visões do narrador (em termos de uma análise linguística) também são discutidas em T. Todorov e em Roland Barthes.

Barthes faz distinção entre: “O nível das funções”, onde se passa propriamente a fábula e onde se situam os elementos de caracterização das personagens e de criação da atmosfera ou ambiente; “O nível das ações”, onde se situam as personagens, mas, agora, enquanto agentes, fios condutores de certos núcleos de funções que definem a área de atuação de cada uma e “O nível da narração”, integrando os outros dois, e onde a simples pessoa verbal não é suficiente para esclarecer com quem está a palavra, podendo uma narrativa em terceira pessoa ser mero disfarce da primeira.

Já Todorov procura aprofundar a análise linguística do problema do narrador, através de categorias como o pronome pessoal, o tempo, o aspecto e o modo verbal, considerando que a narrativa é uma extensão da frase e a ela se aplicam certas propriedades da linguagem.

Todorov, além de ter inventado os signos que designam diretamente o processo de enunciação como certos advérbios (agora, aqui), certos pronomes (este, isto) e o tempo presente, passa a analisar o que denomina "discurso avaliatório", pelo qual o processo de enunciação invade o enunciado inteiro. Todorov fala, ainda, de uma imagem do narrador e d’uma imagem do leitor.

9_ A tipologia de Norman Friedman

Norman Friedman, em suas análises, levanta as principais questões a que é preciso responder para tratar do narrador: quem conta a história? Trata-se de um narrador em primeira ou em terceira pessoa? de uma personagem em primeira pessoa? não há ninguém narrando? de que posição ou ângulo em relação à história o narrador conta? que canais de informação o narrador usa para comunicar a história ao leitor e a que distância ele coloca o leitor da história?

Segundo Friedman, a diferença principal entre narrativa e cena está de acordo com o modelo geral particular: sumário narrativo é um relato generalizado ou a exposição de uma série de eventos abrangendo certo período de tempo e uma variedade de locais, e parece ser o modo normal, simples, de narrar; a cena imediata emerge assim que os detalhes específicos, sucessivos e contínuos de tempo, lugar, ação, personagem e diálogo, começam a aparecer.

Essa distinção norteia a tipologia de Friedman, organizada do geral para o particular. É chamada a atenção, logo de início, para a predominância da cena CENA, nas narrativas modernas, e do sumário, nas tradicionais.

Autor onisciente intruso é a primeira categoria proposta por Friedman. Haveria aí uma tendência ao sumário, embora possa também aparecer a cena. Esse tipo de narrador em a liberdade de narrar à vontade, de colocar-se acima, para além dos limites de tempo e espaço. Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus comentários sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados com a história narrada.

A interferência do narrador — comentando os acontecimentos, freando a HISTÓRIA e procurando se colocar do ponto de vista das leitoras, para apreciar de fora as ações e reações das personagens consegue certo distanciamento irônico que acaba chamando a atenção para os implícitos da história, suas intenções últimas.

Respondendo às questões de Friedman: — quem narra? — um narrador onisciente intruso, um eu que tudo segue, tudo sabe e tudo comenta, analisa e critica, sem nenhuma neutralidade. — De que lugar? — provavelmente de cima, dominando tudo e todos, até mesmo puxando com pleno domínio as nossas reações de leitores e driblando-nos o tempo todo.

Quem nos fala é esse eu. Os canais de que se utiliza são os mais variados, predominando a sua própria observação direta. Finalmente, somos colocados a uma distância, ao mesmo tempo menor, do narrado — já que temos acesso até aos pensamentos das personagens —, e maior, porque a presença do narrador medeia sempre, ostensiva, entre nós e os fatos narrados, conservando-nos ironicamente afastados deles, impedindo nossa identificação com qualquer personagem bem como frustrando a absorção na sequência dos acontecimentos, com pausas frequentes para a reflexão crítica.

Muito comum no século XVIII e no começo do século XIX, o NARRADOR ONISCIENTE INTRUSO saiu de moda a partir da metade desse século, com o predomínio da "neutralidade" naturalista ou com a invenção do INDIRETO LIVRE por Flaubert que preferia narrar como se não houvesse um narrador conduzindo as ações e as personagens, como se a história se narrasse a si mesma.

→ Narrador onisciente neutro, a segunda categoria de Friedman, o narrador onisciente, ou narrador onisciente neutro, fala em 3ª pessoa. Também tende ao SUMÁRIO embora aí seja bastante frequente o uso da CENA para os momentos de diálogo e ação, enquanto, frequentemente, a caracterização das personagens é feita pelo NARRADOR que as descreve e explica para o leitor.

→ "Eu" como testemunha:

O narrador-testemunha narra em 1ª pessoa, mas é um "eu" já interno à narrativa, que vive os acontecimentos aí descritos como personagem secundária que pode observar, desde dentro, os acontecimentos, e, portanto, dá-los ao leitor de modo mais direto, mais verossímil.

No caso do "eu" como testemunha, o ângulo de visão é, necessariamente, mais limitado. Como personagem secundária, ele narra da periferia dos acontecimentos, não consegue saber o que se passa na cabeça dos outros, apenas pode inferir, lançar hipóteses, servindo-se também de informações, de coisas que viu ou ouviu, e, até mesmo, de cartas ou outros documentos secretos que tenham ido cair em suas mãos.

→ Narrador-protagonista:

Nesse caso, o narrador personagem central, não tem acesso ao estado mental das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitado quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos. Como no caso anterior, ele pode servir-se seja da cena seja do sumário, e, assim, a distância entre HISTÓRIA e leitor pode ser próxima, distante ou, ainda, mutável. O exemplo dado é Grade Sertão: veredas.

→ Onisciência seletiva múltipla:

O quinto tipo, chamado por Friedman de onisciência seletiva múltipla ou multisseletiva, é o próximo passo, nessa progressão rumo à maior objetivação do material da história. Em que o que se perde é o "alguém" que narra. Não há propriamente narrador. A história vem diretamente, através da mente das personagens, das impressões que fatos e pessoas deixam nelas. Há um predomínio quase absoluto da cena. Difere da onisciência porque agora o autor traduz os pensamentos, percepções e sentimentos, filtrados pela mente das personagens, detalhadamente, enquanto o narrador onisciente os resume depois de terem ocorrido. O que predomina no caso da onisciência múltipla.

→ Onisciência seletiva:

Esta é uma categoria semelhante à Onisciência seletiva múltipla, apenas trata-se de uma só personagem e não de muitas. É, como no caso do narrador-protagonista, a limitação a um centro fixo. O ângulo é central, e os canais são limitados aos sentimentos, pensamentos e percepções da personagem central, sendo mostrados diretamente. Virgínia Woolf e Clarice Lispector são duas mestras no estilo indireto livre e na onisciência seletiva.

→ Modo dramático:

Agora que já se eliminou o autor e, depois, o narrador, eliminam-se os estados mentais e limita-se a informação ao que as personagens falam ou fazem, como no teatro, com breves notações de cena amarrando os diálogos. Ao leitor cabe deduzir as significações a partir dos movimentos e palavras das personagens. O ângulo é frontal e fixo, e a distância entre a história e o leitor, pequena, já que o texto se faz por uma sucessão de cenas.

→ Câmera:

A última categoria de Friedman significa o máximo em matéria de "exclusão do autor". Esta categoria serve àquelas narrativas que tentam transmitir flashes da realidade como se apanhados por uma câmera, arbitrária e mecanicamente. Porém, afirma ele que a câmera não é neutra. No cinema não há um registro sem controle, mas, pelo contrário, existe alguém por trás dela que seleciona e combina, pela montagem, as imagens a mostrar. E, também, através da câmera cinematográfica, podemos ter um ponto de vista onisciente, dominando tudo, ou centrado numa ou várias personagens. O que pode acontecer é que se queira dar a impressão de neutralidade.

10_ Análise mental, monólogo interior e fluxo de consciência: A "análise mental" trata-se do aprofundamento nos processos mentais das personagens, mas feito de maneira indireta, por uma espécie de narrador onisciente que, ao mesmo tempo, os expõe (mostra, pela cena) e os analisa (pelo sumário).

Já a distinção entre monólogo interior e fluxo de consciência nem sempre é tão clara. Muitas vezes, na teoria e na crítica literárias, as duas expressões são utilizadas como sinônimos. O monólogo como forma direta e clara de apresentação dos pensamentos e sentimentos das personagens é muito antigo. É encontrado, por exemplo, em Homero, na Odisséia.

Já o monólogo interior implica um aprofundamento maior nos processos mentais, típico da narrativa deste século. O fluxo de consciência, na acepção de Bowling, é expressão direta dos estados mentais, mas desarticulada, em que se perde a sequência lógica e onde parece manifestar-se diretamente o inconsciente. Trata-se de um "desenrolar ininterrupto dos pensamentos" das personagens ou do narrador.

3_ Narração, ficção e história

11_ A objetividade contestada: a moderna opção do lirismo

O pressuposto da objetividade ou o princípio segundo o qual a narrativa deveria contar-se a si mesma, sem a intervenção de um narrador, é expressão de uma visão realista que, juntamente com o próprio gênero romanesco, entra em crise no século XX.

Anatol Rosenfeld dedica um belo ensaio, intitulado "Reflexões sobre o romance moderno", em que analisa a perda do centro, na literatura, por analogia ao que chama de desrealização, na pintura, ou a perda da perspectiva. O Romance também sofre alterações análogas: abala-se a cronologia, fundem-se passado, presente e futuro, estremecem os planos da consciência e o onírico invade a realidade; assume-se e se expõe o relativo na nossa percepção do espaço e do tempo, entre outros fatores; Substitui-se o narrador por uma voz diretamente envolvida no que narra, narrando por apresentação direta e atual, presente e sensível pela própria desarticulação da linguagem, o movimento miúdo das suas emoções e o fluxo dos seus pensamentos. E, com isso, anula-se a distância entre o narrado e a narração.

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12_ História e ficção: a concepção aristotélica e seus desdobramentos

A defesa de Diderot do romance implica uma teoria aristotélica da ficção, na medida em que a ficção teria, paradoxalmente, o poder de revelar o ilusório do mundo em que vivemos. Alcançando o universal, pela mediação do particular, para ele, como para Aristóteles, ela permitiria desvendar as aparências, levando-nos a conhecer as essências.

Para Lukács, como para os ilustrados, a literatura teria pois a capacidade de dar a conhecer para mover, isto é, para levar o leitor — uma vez que vislumbrou pela ficção uma realidade mais profunda — a desejar transformá-la.

Mas como se coloca, então, a relação da ficção com a história, neste momento? Na verdade, não se abandona a comparação que se impôs desde Aristóteles. Ela volta e meia, reaparece, implícita ou explicitamente, nos próprios romancistas ou nos teóricos da literatura, quando não vem recolocada pela própria filosofia. A diferença é que agora não se desconfia somente do poder de representação do discurso da HISTÓRIA. A desconfiança se alastra também para o poder da ficção de, pela particularidade, chegar à universalidade, operação que nos levaria, segundo Aristóteles, Diderot ou Lukács, a compreender e conhecer mais profundamente a realidade.

No confronto, a relação entre ficção e história, entretanto, a ficção continua levando vantagem, porque ela, pelo menos, assume a sua fragilidade e não tenta escamotear uma determinada visão da realidade sob a máscara da verdade. Por outro lado, da parte de historiadores e da própria filosofia, se elabora neste século um conceito outro de história que procura corrigir os pressupostos positivistas de um discurso objetivo e científico sobre os fatos do passado, narrados pelo historiador.

13_ A historiografia e o escamotear do narrador

Para tentar responder a questão das possíveis relações entre HISTÓRIA e FICÇÃO Barthes vai analisar alguns discursos de historiadores clássicos, como Heródoto, Maquiavel, Bossuet e Michelet. E chega às seguintes conclusões:

Quanto ao processo de enunciação: Ele aparece indicado no discurso do historiador, de várias maneiras. A primeira delas é pelas indicações de caráter testemunhar, isto é, o historiador menciona, "além do fato relatado, o ato do informante e a palavra do anunciante que se refere a esse ato" 8. São as fontes, os testemunhos, todos os elementos que o historiador recolhe fora e integra ao seu discurso, esclarecendo o que eles dizem e como foram por ele "escutados".

A segunda maneira de marcar no enunciado a enunciação, no discurso do historiador, é pela presença aí de signos que remetem à organização desse discurso. Nessa categoria se insere também a questão da relação do tempo da enunciação e do tempo do enunciado.

Finalmente, a terceira maneira de marcar a organização do enunciado e, por aí, o seu organizador, é pelas "formas de inauguração" do discurso, ou de abertura, que, em alguns historiadores, se aproximam do "exórdio" dos poetas, uma espécie de invocação religiosa que dá um caráter sagrado ao início do relato e, por extensão, a todo ele, e que, modernamente, se "objetiva" aparentemente nos prefácios.

Quanto ao enunciado: no exame do enunciado do discurso histórico, ele se vale das categorias da análise da narrativa. Assim, divide o enunciado histórico em algumas "unidades de conteúdo", basicamente os "existentes" e os "ocorrentes". Os primeiros corresponderiam aos agentes (ou às personagens, na narrativa, segundo uma terminologia mais tradicional).

A análise revelaria, assim, dois níveis do discurso histórico, o das significações que o historiador voluntariamente atribui aos fatos narrados, dos quais pode tirar explicitamente lições morais ou políticas, e um segundo nível, cujas significações são perceptíveis através da temática do historiador, ou da estrutura da sua narrativa, que acaba por revelar, implicitamente, uma determinada visão, uma determinada filosofia da história.

O discurso histórico não é, portanto, ideológico apenas pelas idéias que explicitamente defende, mas também pela sua própria estrutura; é uma elaboração ideológica ou imaginária, enquanto é uma elaboração linguística.

Wilder F Santana
Enviado por Wilder F Santana em 15/07/2011
Código do texto: T3096879
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