O coração nas linhas e entrelinhas

Não sei ainda se a era virtual, da comunicação instantânea e das trocas de e-mails, conseguiu manter viva a instigante comunicação à distância, que outrora as cartas dominavam absolutas. Os que tiveram o prazer de carregar a saudade dos amigos distantes – e matá-la tantas vezes via Correio – são capazes de entender o que é abrir um envelope e encontrar um tipo de presença somente perceptível ao coração.

Quando li o livro “Cartas perto do coração” – que reúne parte das correspondências dos escritores Fernando Sabino e Clarice Lispector durante 24 anos – pude mergulhar na aventura fantástica dessa intensa comunicação à distância motivada pela paixão. Paixão declarada pelo próprio Sabino, que nos deixou em 11 de outubro de 2004 – um dia antes de completar 81 anos de uma riquíssima vida dedicada à literatura e aos amigos.

Na apresentação dessa obra, lançada no final de 2001, o escritor mineiro diz que sua correspondência com Clarice foi uma verdadeira reformulação de valores para ambos. Sobre isso ele escreve: “descobríamos o mundo, ébrios de mocidade. Era mais do que a paixão pela literatura, ou de um pelo outro, não formulada, que unia dois jovens ‘perto do coração selvagem da vida’; o que transparece em nossas cartas é uma espécie de pacto secreto entre nós dois, solidários ante o enigma que o futuro reservava para o nosso destino de escritores”.

As cartas estão publicadas na íntegra e remontam a um período que vai de 21 de abril de 1946 a 29 de janeiro de 1969. O início desse contato mostra dois jovens que praticamente tinham acabado de cruzar a casa dos 20 anos; uma época de muito investimento nos projetos pessoais e profissionais e também de muita insegurança diante do mundo e dos próprios conflitos.

Em se tratando de Clarice Lispector (que escreveu seu primeiro romance – “Perto do Coração Selvagem” – aos 17 anos) e Fernando Sabino (que aos 20 e poucos já era redator do jornal Folha de Minas, em Belo Horizonte), juventude e maturidade andavam lado a lado. Impressiona a fluência de suas cartas, que cruzavam o Atlântico às vezes da Suíça (Clarice) para os Estados Unidos (Sabino), noutras dos Estados Unidos (Clarice) para o Rio de Janeiro (Sabino). Em todas elas uma rica troca de impressões sobre literatura, cinema e as tantas inquietudes literárias ou não.

“Cartas perto do coração” faz jus ao título. O livro revela o lado real de quem conheceu a fama através da ficção. Confesso que, assim que soube do seu lançamento, fiquei curioso em saber um pouco mais da “Bruxa das Palavras”, desta vez por ela mesma e de uma forma absolutamente direta. Clarice me foi apresentada no final da adolescência e seus livros foram imprescindíveis no reforço às tantas afirmações e negações que destruíram e ergueram os meus sonhos naquela época. As impressões clariceanas dizem sempre mais do que aparentam dizer, como bem mostra o trecho a seguir tirado do livro “A Maçã no Escuro”: “a concretização de uma pessoa é muito difícil. Mas não irrealizável. O avanço consiste em criar o que já existe. E em acrescentar ao que existe algo mais: a imaterial adição de si mesmo”.

Se a própria Clarice muitas vezes se pegava tomada pela obscura sensação do não ser, Fernando Sabino traz um tipo de fortaleza talhada na lucidez. Não uma lucidez meramente racional, mas aquela que nasce da inexplicável força espiritual. Certa vez, em Viçosa-MG, tive a oportunidade de vê-lo e ouvi-lo tocando bateria, mas não foi como desejei. Admirador de sua obra e de sua personalidade, quis muito ter podido saber um pouco mais do que se passava nas linhas e entrelinhas do seu coração.

Roberto Darte
Enviado por Roberto Darte em 12/05/2008
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