HÁ SEMPRE UMA MULHER: Sonetos
Acaba de sair do prelo a obra Há Sempre Uma Mulher, publicado pela Editora Clube de Autores (https://clubedeautores.com.br/livro/ha-sempre-uma-mulher) Trata-se de livro de sonetos que se projeta no leitmotiv dos poetas que imortalizaram as mulheres que não puderam ser alcançadas. Algumas ficaram secretas, outras foram declaradas. Algumas eram tangíveis, outras platônicas, todas, contudo, presentes em pistas deixadas pelos amantes para que elas se identificassem. Aqui uso o artifício desse jogo de esconde-esconde, ocultando em figuras de linguagem a intenção que em palavras diretas não pode ser descerrada. Convido os “recantistas” a degustarem uma taça do licor prazeroso que é uma nova publicação de sonetos.
Assim está prefaciado Há Sempre Uma Mulher:
PREFÁCIO
Joachim Du Bellay, um dos maiores poetas do século XVI, em seu tempo conhecido pelo apelido de O Ovídio Francês, registrou seu descontentamento pelo abandono das musas no soneto Las Musas, escrito em 1558 e um dos seus poemas mais conhecidos:
Onde estão aqueles doces prazeres
que à noite sob a noite escura
As Musas me deram, enquanto em liberdade
No tapete verde de uma praia distante eu as levava a dançar nos raios da lua? (…)
Da posteridade não tenho mais cuidado,
Esse ardor divino, não tenho mais,
E as Musas de mim, como estranhas, fogem.
Curioso é sinalar que embora o pobre Du Bellay se dissesse abandonado pelas Musas, delas recebeu inspiração elevada para a composição de um dos seus poemas mais iluminados... Mnemósine, a deusa da memória, filha de Urano e Gaia, não o deixou vazio de inspiração pelo abandono, nem dela e nem das deusas irmãs indutoras da criação artística.
As musas não abandonaram Du Bellay e nem se afastam voluntariamente dos poetas, mesmo que elas nos contornos da realidade, em alguns casos, os abandonem.
O autor seiscentista de Las Musas, entoava seu lamento às nove deusas filhas de Mnemosine e Zeus, dadas à luz em um nascimento múltiplo. A linhagem de Mnemosine presidia as artes e as ciências na mitologia grega, cabendo a cada deusa inspirar diferentes áreas, como poesia, música, dança, história e astronomia.
À época, os poetas e artistas acreditavam que as musas os inspiravam, concedendo-lhes ideias criativas e habilidades para expressar suas emoções e pensamentos por meio de suas obras.
O inspirado Du Bellay acorre à lembrança e abre o prefácio deste livro por ter sido ele o primeiro poeta a publicar uma coleção de sonetos de amor escrito na língua francesa. Trata-se de L'Olive, uma coletânea de cinquenta sonetos escritos em 1549.
Dizem alguns biógrafos que o poeta celebrou nesta obra uma amante imaginária, inspirado em Petrarca. “Ela tirou sua tez dos lindos lírios branqueadores, sua cabeça de ouro, seus dois lábios de rosas, E do sol seus olhos resplandecentes.
Não há certeza, mas outros afirmam que o nome representava um anagrama de Mademoiselle Viole, sobrinha de um bispo parisiense por quem o poeta suspirava com interesses românticos. Pode até ser, como outros acreditam, que tenha sido dedicado anonimamente a uma princesa. Na segunda edição L'Olive augmentée, de 1550, a dedicatória a sua dama é substituída por uma para Margarida de Valois, irmã de Henrique II.
As alusões acima, deve-se admitir, não são nem muito certas nem muito prováveis. Mas, com certeza, a musa eleita por Du Bellay foi Faustine a quem ele amava e considerava não tão cruel quanto Olive. A Faustine ele dedicou quase inteiramente o livro Les Amours, que começa com um pequeno poema com este dístico:
No tibi, si memini, nomen gentile Columba
Conveniens formæ est ingenioque tuo.
Não, eu penso nisso apropriadamente, é o nome de Colombae que convém... etc.
Registre-se, por oportuno, que todos os poetas da época cantavam em seus versos os beijos columbinos, misturando com seus amores o doce nome das pombas. Assim, Colomba, Colombelle retornam muitas vezes aos versos de Du Bellay, como o fez quando transpôs o apelido Faustine para o pequeno poema Armadura, de seus Jogos Rústicos:
Sus, minha pequena Colombelle,
Minha pequena e linda rebelde,
Pague-me o que devo:
Que tantos beijos me são dados
Que o poeta de Verona
Sua Lesbie pediu um pouco...
Mas você sabe o que são beijos, querido?
Eu não quero que eles sejam dados para mim
no estilo francês...
Eu os quero no estilo italiano...
O beijo referido é aquele que Du Bellay, em seu soneto sobre cortesãs de Roma descreveu neste verso:
Na maioria das vezes tem duas línguas na boca.
Segundo anota Thierry Sandre, a aventura do poeta foi breve. Em suas palavras:
Na verdade, os casos amorosos de Faustina e Joaquim do Bellay não foram felizes por muito tempo. Dificilmente é se os amantes pudessem se encontrar sem constrangimento três ou quatro vezes. O marido que estava sendo enganado sabia que estava sendo Errado. Mas ele não estava com vontade de interpretar o vulcano. Para pôr fim ao seu infortúnio, ele não imaginou nada de melhor do que enclausurar Faustina num convento, o que fez numa noite, de surpresa. Aqui começa o drama do qual nasceram os poemas dos Amours. Todo o livro trata apenas de o rapto de Faustina, a busca e o tédio do poeta, de suas lembranças, de seus arrependimentos, de seu rancor, de suas alegrias mortas e de suas esperanças.
Privado da consolação dos braços de sua Colombelle Du Bellay vagueia durante dez dias, devorado pelo ciúme, diante da porta da casa onde Faustine está trancada com o velho marido. Dias e noites ele se arrasta consumido pela febre, exausto pela tosse, deprimido. O marido, cansado de seu papel de Cérbero, envia Faustine para um convento onde ela fica sozinha, sendo proibido até que a mãe de Faustine tivesse acesso ao claustro.
Diante deste quadro Du Bellay não tem mais gosto por nada, toma da pena e em versos românticos sonha em libertar a cativa do fundo do claustro... Embora livre, sente-se condenado, penando no mesmo claustro do terno objeto de seu amor.
Na edição de 1550, Du Bellay inclui o Soneto XCII, que não apareceu na primeira edição de 1549.
Esta breve esperança, que a minha tristeza prolonga,
traidora só de mim, e fiel a Madame,
muitas mil vezes prometeu à minha alma
o final feliz do soucy, que o roe.
Mas quando vejo sua promessa de ser um sonho,
eu o amaldiçoo, o odeio, o culpo:
então, de repente, eu o invoco e clamo,
banqueteando-me com sua doce mentira.
Mais de uma vez o afastei:
Mas este homem cruel, que não se cansa
do meu infortúnio, vai render-se a ti.
Aí está a sua queixa: e tu, que dia e noite
ris dos meus problemas, fazes-me
repreendê-lo.
A concisão da forma do soneto está a serviço de expressar as contradições sentidas pelo amante. Através de uma série de inversões dentro do texto, Du Bellay consegue dar conta das ambiguidades de uma esperança que é ao mesmo tempo cruel e desejável
Como se vê, as musas jamais abandonaram Du Bellay, como Faustine o abandonara por pressão do destino. E a confidencia foi feita mais tarde quando cantou “Agora, mais do que nunca, tenho o prazer de amar a Musa, seja em francês que escrevo ou na língua romana...” No soneto do qual se extraiu a frase, Du Bellay refere-se a Pierre de Ronsard, um amigo fraterno, com quem estudou Humanidades no Collège de Coqueret, de onde nasceu a École de la Pléiadea.
Ronsard, também, poeta seiscentista, foi quem acrescentou regras ao soneto: duas quadras em que rimas masculinas e femininas se alternam. Nesse sistema, conseguiu produzir um corpo de trabalho abundante e variado. Sua coleção mais famosa é Les Amours de Cassandre, publicada em 1552, dedicado a Cassandra Salviati, filha de um rico banqueiro.
Cassandra estava prestes a completar quinze anos, quando foi apresentada à Corte, por ocasião de um baile no castelo de Blois. Ronsard mal a viu, dominado por intensa emoção, decidiu que ela seria sua inspiração para a vida inteira.
Mas Ronsard não podia se casar com a jovem, pois era um clérigo tonsurado, assim, o pai de Cassandra não demorou muito para encontrar um marido para sua filha. Apenas dezenove meses após o famoso baile em Blois, ela se casou com Jean de Peigné, senhor de Pray, um primo distante de Ronsard.
Imitando Petrarca, que cantava de sua amante Laura, ele faz de Cassandra sua musa, celebrando um amor inteiramente imaginário em um estilo precioso com comparações mitológicas
Acho que morreria se não fosse pela Musa
Que aqui e ali fiel me acompanha
Sem se cansar, pelos campos, pelos bosques e pelas
montanhas,
E com esses lindos presentes todas as minhas preocupações
são satisfeitas:
Se estou entediado não tenho outro truque
Para me aliviar do tédio doque ter a companhia de Clion;
Assim, se eu ligo para ela, ela não me desdenha,
E por ter vindo me ver, ela nunca pede desculpas:
Presentes das nove Irmãs em todas as estações
Enchem todo o meu quarto e limpa, minha casa,
Pois a ferrugem nunca toca em seus lindos presentes.
A lata não floresce com abelhas tão doces
Como seus lindos presentes são doces para minha boca,
Da qual os bons Espíritos nunca se embriagaram.
Bom, nesta altura, é preciso dizer, para não parecer arrogante ou presunçoso, que a lembrança trazida de poetas do seiscentismo europeu, em vez da dos patrícios da estirpe de Tomás Antônio Gonzaga que em longo poema imortalizou o sentimento não consumado com Maria Doroteia, se deveu a ambos serem precursores dos sonetos em língua francesa e seus desvarios e universos ilusórios contemplarem contextos que se prestam à perfeição ao pano de fundo da obra que se apresenta: Há Sempre Uma Mulher.
Por oportuno, e ligando-se o antigo ao moderno, tenha-se que o título Há Sempre Uma Mulher foi inspirado na canção Samba da Bênção de Vinícius de Moraes, uma verdadeira ode em que está entrelaçada a alegria e a tristeza como elementos fundamentais da vida e da arte.
A vida é arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida
Há sempre uma mulher à sua espera
Com os olhos cheios de carinho
E as mãos cheias de perdão
Ponha um pouco de amor na sua vida.
Parafraseando Vinícius, pode-se destacar a importância da alegria, com a ressalva de que, para compor um bom soneto, é necessário um toque de tristeza. Essa dualidade reflete a complexidade das emoções humanas e a essência da poesia, que muitas vezes é animada em seu ritmo, mas carregada de notas melancólicas.
A síntese do livro se projeta no leitmotiv dos poetas seiscentistas que imortalizaram em sonetos suas musas, as mulheres que não puderam ser alcançadas. Algumas, até ocultadas sob cognomes, como se os poetas jogassem com os leitores a deliciosa brincadeira de infância, o jogo de esconde-esconde.
No livro faço uso dessa brincadeira nunca abandonada pelos poetas, ao esconder em figuras de linguagem a intenção que em palavras diretas não pode ser descerrada. Até Machado de Assis, sentimentalmente, homem de poucos amores, não se lhe conhecendo outro romance íntimo, além do que o prendeu para sempre à sua nobre esposa, a quem dispensou versos inspiradores, como A Carolina , aos dezesseis anos, cheio de paixão e diante da impossibilidade de viver sem a mulher amada, publicou na Marmota Fluminense o poema A**** com a epígrafe retirada do poema À toi do livro Odes et Ballades, de Victor Hugo.
A****
Viens, je suis dans la nuit, mais je puis voir le jour!
Victor Hugo
Oh! Se eu pudesse respirar num beijo
O teu hálito ardente e vaporoso.
E na febre do amor e do delírio
Sobre o teu seio estremecer de gozo!
Oh! Se eu pudesse nessa fronte bela
A coroa depor dos meus amores,
E embevecer-me como em sonho aéreo
De teus olhos nos mágicos fulgores.
Ai! Respirara então ainda uma vida.
Oh! Pálida visão!
Nessa flor que os sentidos embriaga
E aroma o coração!
Vem; dá-me o teu amor; careço dele
Como do sol a flor,
Reanima a cinza de meu peito morto,
Ai! Dá-me o teu amor!
Publicado, originalmente, na imprensa, anos depois, o soneto apareceu em uma das antologias machadianas, na subseção Dispersas. Trata-se de um soneto em que o eu lírico declara seu amor pela donzela e suplica para ser correspondido, apelo assemelhado ao feito pelo francês:
Ah! Com seu sorriso doce embelezar minha vida!
A maior felicidade está no amor.
A luz não me foi tirada para sempre;
Venha, Venha, apesar de estar à noite, posso ver o dia!
Obviamente, sem a verve e a maestria poética de Victor Hugo e do Bruxo do Cosme Velho, dei minha interpretação ao por que do anonimato.
À…
À… é o modo com que o poeta
Dedica à memória de alguém
Um poema de amor, e quer também
A identidade desse amor secreta.
É que a paixão que a alma inquieta
Não pode ser da conta de ninguém,
E talvez nem À…, a quem quer tanto bem,
Saiba que ela é sua predileta.
Pode ser que À… não tenha lido,
Ou se leu, os versos tenha repelido
E a carta poema posto fora.
Mas o poeta só vê À… fitando
E de olhos alagados murmurando,
Por que não vens falar de amor, agora?
No sentido de se manter a identidade oculta, nos idos do ano 43 a.C., Ovídio Naso já ressaltava que “nós contamos somente com discrição nossos sucessos, mesmo reais; nossos furtos amorosos ficam protegidos pelo mistério de um silêncio impenetrável”. Queria dizer que os amantes devem saber traçar códigos na arte amorosa, em especial se for exigida proteção dos encontros, sigilo dos nomes e lugares onde se amam.
Há vez em que o eu lírico deseja revelar o nome da eleita, mas o poeta reluta, diante da impossibilidade, e a mantêm presente na figuração poética, como em A Mulher Sonhada:
A MULHER SONHADA
Sonhei um dia com um grande amor,
Para viver sonhando toda a vida,
Mas por uma razão desconhecida
O rosto dela o sonho não mostrou.
Todo o mais de quem fosse confiou
À imaginação toda absorvida
Nas formas da escultura concebida
Pelo mais talentoso escultor.
E do que se esperasse fosse a alma
De uma deusa a ter na fronte a palma
Da beleza, a escultura encarnava.
E ao vir teu belo rosto já sabia
Ser da mulher sonhada àquele dia
E que, sem conhecer, já tanto a amava
A verdade é que todo homem de qualquer quadrante da Terra precisa de uma musa, de uma inspiração, de alguém por quem valha a pena lutar contra moinhos dos ventos, transfigurando ilusoriamente Dulcineia em princesa…
Não importa que a musa seja uma simples camponesa. Para o poeta ela é a mulher que envelhece, mas as rugas não são vistas. É a que censura, repreende e as imprecações são ouvidas como um doce canto. É a mulher indiferente que ao dormir vira para lado, mas nela se enxerga apenas um anjo sem asas, um anjo da pura tentação que ao lado dormita.
A musa é a mulher perfeita, nunca menos do que a imagem que o poeta faz dela e por isso o amor nunca arrefece. E por isso, o poeta transforma-a em poema, atribuindo-lhe todos os elementos de elevação, de sensualidade, de desejo, de prazer, de satisfação e de gozo.
A escolha dos sonetos de Sempre Há Uma Mulher se fez de forma aleatória, mas de certo modo, baseada em minhas preferências pessoais, fazendo um balanço de minha obra e minha dedicação a uma das formas mais populares de poesia: o soneto. E a pretensão é que, em estado natural, os textos traduzam alguém que, à semelhança das referências, se mostre ardente, elegíaco, decepcionado e, muitas vezes, irônico, a entremear em única fibra poética a musa, a mulher e o soneto, como feito em A Vida em Soneto.
A VIDA EM SONETO
A vida guarda os traços de um soneto,
Composição sujeita a metro e rima,
A esconder em si, uma obra-prima,
Ou dos poemas algo bem discreto.
Raptos de fantasia num quarteto
Em palavras vibrantes da estima
De Deus enchem os dias e aproxima
A vida do poema mais completo.
Mas se no último terceto há desdouro
E o poeta não encontra o verso de ouro
A vida é uma obra inacabada.
Sem luz, sem cor, sem música, a vida
É uma composição comprometida,
E de um belo soneto não tem nada.
Além dessa vez, incluo na composição Soneto Vivo, o mesmo tema.
SONETO VIVO
Pequena e delicada, é um soneto
A mulher a meu lado adormecida,
A encantar, por tantas vezes lida,
Os meus olhos tomados de afeto.
A quadra de abertura é o já quieto
Rosto ornado da rima enriquecida
Dos cabelos em cachos na descida
De ombros e colo, pés do outro quarteto.
Compõe-se o terceiro pelos seios,
Que nos versos das curvas dão os meios
De um voraz leitor ir ao tesouro
Do último terceto, os seus quadris,
Onde em leitura atenta que lhes fiz,
Achei dois incomuns versos de ouro.
Além de exaltar o soneto e a mulher nos textos acima, lancei mão de igual inspiração em Soneto:
SONETO
“Fiz-te hoje um soneto”, lhe falei,
E ela ordenou-me docemente
“Recita”, e ficando bem à frente
De seu bonito rosto recitei.
“Quero beijar a tua boca ardente”,
Tocando suas mãos, eu inventei,
“Fosse eu um beija-flor...” Pare! Parei,
Sendo eu ao seu apelo obediente.
Pétalas rubras de uma rosa viva
Colaram-se a meus lábios e à deriva
O recital ficou pra outra hora.
E o resto do soneto, esquecido
Em fala, ganhou todo o sentido,
Quando jogamos nossas roupas fora
E, sequência, ficou ainda demonstrado em Petrarquiando:
PETRARQUIANDO
O poeta Petrarca imaginou
A poesia, como se avista
A mulher pelos olhos de um artista,
E a forma do soneto engendrou.
E a ir do chão ao auge do Ventor,
Opôs-se a história a dar a pista,
Mas... Será que se fez o alpinista
De um vate enlouquecido por amor?
Do íngreme caminho até o cume,
Na cupidez de ver o amor ao lume,
Da vida de um poeta, deu o roteiro.
Dos loucos, sempre é ele o mais completo,
Se da mulher, que dá forma ao soneto,
Não escalar o corpo por inteiro..
Além da parte das alusões às musas e aos amores não correspondidos, os versos aqui colecionados oferecem o charme simples do dia. Ou seja, sem a verve e a ilustração da língua dos grandes poetas, usando o linguajar popularesco de hoje, e uma estética diferente, exalto a poesia e as musas da minha experiência, como sintetizado no soneto Poesia:
POESIA
Poesia é feminino e singular
E guarda o que há mais belo no mundo
A dar sentido ao anseio mais profundo
De quem o amor maior sabe expressar.
E se em imagem fosse figurar
Em expressão de vida, o mais fecundo
Retratista inspirado iria ao fundo
Da arte pra mulher então pintar.
E essa mulher chamada poesia
Vestida de si mesma e da alegria
É aquela por quem tanto me inquieto.
Com quem em sonho e em tal deslumbramento,
Lendo as rimas ricas chego atento
Ao verso de ouro de um belo soneto.
No livro não se encontra um tema central, já que numa antologia poética não há um narrador que conte uma história com começo meio e fim. Em Há Sempre Uma Mulher se encontra uma sucessão de vozes que vão entrelaçando o soneto, a musa e os sentimentos, em um retrato variado e fragmentado do poeta, de sua sorte e de seus infortúnios.
Na primeira parte do trabalho encontram-se algumas características do poeta, revestidas em sonetos. Afinal, quem lê envereda a curiosidade na procura por uma relação direta entre obra e vida do autor, mais ainda se a obra tiver por contexto o mundo misterioso no qual o poeta prefere manter segredos guardados a sete chaves.
A alguns, isso incomoda, já que o traço autobiográfico, descoberto ou revelado, pode atrapalhar a liberdade da imaginação do leitor e restringir a fabulação do poeta, durante o ato de escrever. Mas, não há como fugir que toda poesia é atravessada pela mão que escreve.
Em sequência, vem demonstrada a preferência pelos resquícios do parnasianismo que insiste em se perpetuar na forma do soneto. É na forma e no conteúdo do soneto que surge a mulher, seja ela real ou idealizada, seja a evocada no livro do Gêneses, a casta e pura osso dos meus ossos e carne da minha carne ou a sedutora órfã, objeto de desejo de todos os homens do filme Et Dieu... créa la femme, de Roger Vadin.
E é, sobretudo, a beleza feminina que é evocada, mal aparecendo qualidades pessoais, destacando-se o que agrada do aspecto físico.
RECADO SEM RIMAS
No corpo da mulher há muitos pontos
de atração ao homem, os cabelos, os olhos,
a boca, a nuca, o colo, os seios,
o umbigo, o ventre, os quadris,
as coxas, as mãos, os pés, os pelos,
o toque, a voz, o gesto, o cheiro,
as formas, as curvas, a meiguice, a esperteza,
a excitação, o corar das faces, a timidez..
É tolice o homem pensar em ter,
possuir e prender uma mulher,
pois, na verdade, é a mulher que tem,
possui e prende o homem em sua teia
e há muito ando preso numa rede de encantos,
esperando o bote mortal da aranha.
INCÊNDIO
A selva em fogo estava em seus cabelos
E as labaredas, não queimando o solo
Dos seios e de tão sublime colo,
Calcinavam meus olhos, de tão belos.
Parecia até que alguns novelos
Do fogo aos fios, indo ao outro polo,
Consumiam a grama onde entre o rolo
De fumo os olhos davam-se aos flagelos.
Se em clima agreste, a chuva era a melhor
Maneira de acabar fogo, o suor
Dos corpos aumentavam mais a chama.
E o sopro da enlevada excitação,
Promovia a fervente combustão
Do amor a se alastrar em nossa cama.
E retomando o tema do mártir do amor, o poeta nada pede, embora ande preso numa rede de encantos, esperando o bote mortal da aranha... É essencialmente infeliz, por ser submisso à musa e sempre derrotado nesta luta de amor. Mas este sofrimento é, também, uma felicidade, sobretudo, por ser o pretexto para o exercício poético.
Mas os temas propostos no jogo de metáforas e analogias construídas nos textos de Há Sempre uma Mulher não conduzem, apenas, ao sentimento que um homem expressa em relação a uma mulher, mas também à sua forma de ver o mundo, como visto em Fotografia e Mundo:
FOTOGRAFIA
No mundo nada é preto ou tudo é branco,
A foto deve ter a cor da vida.
E nunca a mais bonita é a colorida,
Nem feia, uma sem cor, ou em preto-e-branco.
O sentido da foto há de ser franco,
Mesmo a imagem sendo invertida,
Se pelo batedor for corrigida,
Não se há de confundir frente com flanco.
Pode a foto o avesso estampar,
Cabendo a quem bate avaliar,
Se o verso é o seu lado correto.
Mas quem busca arte em fotos se tortura
Por ver que a vida em essência pura
Não se capta em cor ou em branco e preto.
MUNDO
O mundo não é frio nem é doce,
Nem quente e meio amargo, é como é,
E se de um jeito ou de outro ele fosse,
Seria chocolate ou picolé.
O mundo é o mundo, acabou-se!
Se engane sobre ele quem quiser.
É algo para os sonhos nele por se,
Ou, simplesmente, pra se pôr de pé.
Não pertence a Maria ou a Raimundo,
Não tem mão, sentimento, é só um mundo
Como a alma de alguém, vasta ou pequena.
Se faltar picolé ou chocolate
Pra quem nele se ajuste ou se debate,
Não se vai alegrar ou sentir pena.
Como se percebe, a inspiração presente em Há Sempre Uma Mulher não é apenas amorosa. Quanto mais a leitura avança, mais ela se move em direção a motivos outros. O homem-poeta mergulha em vários momentos de sua trajetória existencial, romantizando as histórias reais ou imaginárias de várias formas, sem que haja necessariamente uma ordem cronológica ou um tema único.
Destarte, os leitores devem ler e tratar cada soneto de Há Sempre Uma Mulher como uma pequena peça que tem a sua autonomia e colabora na construção do todo.