Oliveira, Marly de. Um feixe de rúculas. São Paulo: Editora da UNESP, 2023.
Marly de Oliveira (Cachoeiro de Itapemirim 1935 – Rio de Janeiro 2007) é poeta brasileira laureada, com obra poética vasta; entre seus livros estão: Cerco da primavera (1958); A suave pantera (1962); A vida natural – O sangue na veia (1975); Contato (1975); Invocação de Orpheu (1979); A força da paixão & A incerteza das coisas (1974); Retrato – Vertigem – Viagem a Portugal (1986) O banquete (1988); Obra poética reunida (1989); O deserto jardim (1990); O mar de permeio (1997); Antologia poética (1997); Uma vez sempre (2000). Tendo participado de antologias e tendo poesias de sua lavra em CD – Áudio poesia, sob a interpretação de Lauro Moreira (2009).
O livro Um feixe de rúculas de Marly de Oliveira é de publicação póstuma, portanto inédito até dois mil e vinte e três. Livro este dividido em três partes: Itinerário para o porto, Intermezzo: Brasil quinhentos anos e Escritos em italiano.
O livro possui também artigo de Alberto Da Costa e Silva, sob o título Marly de Oliveira: senhora do verso e do corte da estrofe. Mas com vínculos afetivos intelectuais fortes com seus familiares e autores, alguns deles conhecidos pessoalmente pela poeta. Mulher de brilho próprio, dona de espiritualidade mística. E por que não dizer religiosa? E intelectual?
Na primeira parte do livro, sob o título: Um itinerário para o Porto, a poeta não nos fala de descaminhos, fala de seus afetos, diferenciando o livro Um feixe de rúcula de seus livros anteriores pela sociabilidade maior dos versos. E, mormente, a poeta alarga o cerco da primavera, nele pondo, como se fossem flores, as pessoas amadas.
Os versos são sem título, mas foram usados os primeiros versos de cada poema como título. Vejamos o primeiro poema de o Um itinerário para o Porto (Pag.13), começado assim:
-
Ainda assim queria falar do Porto
onde estive há tão pouco tempo,
no entanto, o falar do Porto
é como se o estivesse vendo.
-
Para a partir do verso de número dezesseis revelar:
-
Repenso (vejo) aquelas pontes,
os arcos feitos para a sege,
o caminho da Sé para a Ribeira
e tudo mais o que todos sabem.
-
E no verso de número vinte e quatro, para dar continuidade:
-
O resto foi bem-estar
de quem se sente em família,
lembrando-se de Agustina,
Arnaldo Saraiva,
Graça Moura, Laura Nina,
e tantos outros, que a citá-los
seria fazer um catálogo.
-
Nomes que importam bem mais que as características do lugar que existem nos versos não escritos acima, pois o que lhe dizia a afeição era serem essas pessoas mais importantes que a referência toponímica. O porto na verdade é o deus na qual a poeta acredita, no qual tem fé, e o nome de deus está entre todos os que cita, vejamos o poema Sentar-se ao pé da cruz (P. 23):
-
Sentar-se ao pé de uma cruz,
que antes foi árvore verde,
esperando a união com a perfeição,
a deus distante e encoberto
pedindo que se descubra,
que tal uma pena de espera,
disse o poeta, não se cura
senão com a presença e a figura.
-
Os últimos versos do poema Sentar-se ao pé da cruz, mostra-nos o itinerário:
-
Partindo para outras terras,
buscando noutros lugares
a uva para o seu vinho
o pão para a comunhão.
-
Um feixe de rúculas, em sua primeira parte contém outros poemas belíssimos para quem deseje ler o verbo. Nessa parte, a poeta cita também seus afetos de fé e intelectuais, entre esses Leonardo Boff e Saramago, no poema Esta, a grande afinidade (P..29); para citar outros artistas e familiares nos versos do Itinerário, no mesmo nível de importância. Representativa do relevo que dá àqueles citados, estão abaixo os últimos versos do poema:
-
O problema é a luta
para que não seja vã a palavra,
o enunciado que acorda
aquele que adormece
e nem vê o tempo passar,
a vida passar,
sem ter plantado um grão sequer
para a fome do outro,
sem conferir
um sentido àquilo que nem
se conhece e não obstante.
-
O livro póstumo Um feixe de rúculas é aquele em que a autora expressa, maiormente, a sua consciência social e o seu amor ao solo pátrio. Não à toa, a segunda parte do livro é Intemezzo – Brasil quinhentos anos –. A menor parte do livro, não mais que seis poemas. O último poema dessa parte tem o título O mar que recorta o litoral, que é o primeiro verso do poema, impossível retirar qualquer fragmento poético para representar o todo, transcrito abaixo.
-
O mar que recorta o litoral
do Brasil não é azul
(como o da Grécia) nem
violento como o Pacífico
e outros, que agitam furacões
e vão destruindo tudo.
O mar do meu país foi o caminho
do acesso ao navegador português
que aqui ficou, o holandês
que não pode ficar, o francês
que ficou um tempo, é um oceano,
o Atlântico, que às vezes vai entrando
por enseadas e baías como se, homem,
abraçasse uma mulher. Lembra até
o “bras fluide” de Valery,
embora também às vezes faça,
pensar no “touro azul” de Cecília,
correndo sobre uma própria sombra.
-
Embora Oliveira tenha citados afetos intelectuais e afetivos em vários de seus volumes, Um feixe de rúculas é o livro em que mais se refere às pessoas que amou, sejam elas autores como Valery ou amigas e amigos da vida real, figuras públicas da literatura nacional, escritores consagrados. Como se tais personagens fossem o alfobre, as flores, à semelhança do que fez em seu livro O cerco da primavera, já resenhado no livro O limite é o cosmos da referência.
-
A terceira ou última parte do livro tem o título Escritos em italiano, os versos são apresentados em italiano e português, de forma bilíngue, nessa última parte do livro os poemas possuem títulos. Escolhemos o poema Primavera (P.99), ilustrativo da conexão com o livro Cerco da primavera.
-
A sinuosa estação ora me assalta
com seu rito antigo e conhecido.
Retorna o tempo e com o tempo o mal
de viver se detém sobre o meu luto.
Que manada impossível corroeu
toda esperança, toda fé em mim?
Aqui estás, amor, hirto e confinado
feito um bico, hirto e confinado
feito um bicho, ó tu, rei posto no exílio.
Ó tu, que bates nesta porta escuta:
antes de entrar, deixa toda palavra
no lábio impuro e vence esse pavor.
Atento à sombra suave que voa,
aqui jazem o sonho e a esperança vã,
silêncio tira ao tempo sua medida.
-
O verso: atento à sombra que voa, é uma referência ao seu livro A suave pantera, também comentado no livro O limite é o cosmos.
-
1) Daflon, Fabio. O limite é o cosmos: a poesia de Marly de Oliveira. Fabio Daflon – Vitória: Cousa, 2019.