Felippe, Romulo. Pássaros negros na neve/Romulo Felippe. Vitória, ES, Novo Conceito, 2021.
Romulo Felippe é jornalista e escritor, ocupa a cadeira 9 da Academia Espírito-Santense de Letras. É autor dos livros Monge Guerreiro, uma fantasia medieval publicada em português, inglês e italiano (2018); Reino dos morcegos, uma fantasia juvenil (2018); O Farol e a Tempestade, romance (2019). Publicou também os livros Quando entrevistei Jesus, sobre uma Jornada na Terra Santa (2022); Mundos incríveis além do nosso (2022); O Fogo Eterno do Dragão (2022). Participou também da coletânea portuguesa Entre Monstros e Dragões. Durante a pandemia começou a produção O Lanceiro Romano para o mercado italiano.
A guerra não é metáfora, mas inúmeras vezes, na literatura, no cinema e no teatro a guerra suscitou textos e roteiros, às vezes tendo como pano de fundo o amor e seu etos. Tratamos aqui de pensar e sentir os dramas contidos no romance Pássaros negros na neve, de Rômulo Felippe, ambientado nas cordilheiras das Dolomitas, norte da Itália, onde vivia a família Domenichelli, composta por Giorgio – o pai e ex-combatente da Primeira Grande Guerra (PGG), e Fridda – a mãe – de Gianna Domenichelli, no dia em que completava dezesseis anos, durante a Segunda Grande Guerra (SGG), no ano de mil novecentos e quarenta e três. O livro nos mareja os olhos por causa da amorosidade dos seus personagens.
O título Pássaros negros na neve se refere, inicialmente, às gralhas, esvoaçantes no entorno do sítio Picollo Cielo, casa dos Domenichelli, lugar algo distante das batalhas campais, no qual se vivia com relativa tranquilidade, antes da queda de caça da Luftwaffe causada pelo piloto austríaco Hans Maximilian Hoffman, convocado contra a sua vontade pelas forças armadas alemãs, simulando uma pane de motor do caça, quando na verdade abrira o tanque de combustível, a fim de evitar o cumprimento da missão de assassinar vinte e oito judeus, sem saber que isso traria consequências trágicas para aquela família italiana.
Porque, involuntariamente, levou ao local um grupamento nazista de sete homens comandados pelo major Friederich Fisher: sargento-chefe Kraus, primeiro-cabo Krüger e os soldados Müller, Becker e Lange, que terminou por assassinar o pai de Gianna, obrigando Fridda a fazer uma refeição para todos, depois de terem perpetrado um estupro coletivo contra Gianna, obrigando-a a descer ao porão, tendo sido o piloto o último da fila a provocar os gritos da moça, Das Bergmädchen, a garota das montanhas, como chamou-a o major Fisher, também ex-combatente da PGG perdida pelos alemães.
Estupro gerador duma filha, Emma Domenichelli, muito tempo antes da possiblidade do teste do DNA, que começou a ser realizado nos anos oitenta do século vinte. Estupro no qual, provavelmente, contraiu e incubou uma tuberculose, apesar do seu viver isolado, que fez Gianna morrer poucos anos mais tarde. Tendo que ser registrado que Hans Maximilian Hoffman tinha uma noiva na Áustria, com quem gerou um filho, sem saber, porque permaneceu no rancho Picollo Cielo, após ter adotado o nome de Maximiliano Domenichelli, e casar-se com Gianna, para cuidar dela e da criança. Síndrome de Estocolmo?! Ou não? Não, não foi o caso.
Nos primeiros capítulos: O Gigante que devora os filhotes, As flores, As gralhas e a alcateia, As guerras que habitam nossas almas e Pássaros negros na neves, estão contidas as revelações sobre como Gianna e Hans sobreviveram aos tedescos, mesmo após a morte de Giorgio e de Fridda, que, ao preparar a refeição para todos, envenenou-a com uma planta venenosa (aconnitum napellos), utilizada para matar ratos, misturada com iscas, na rotina da prevenção da disseminação deles no entorno da casa, e que matara uma gralha incauta, achada pouco antes por Gianna, sob repreensão de Fridda para que não a tocasse.
Refeição provada pela própria Fridda, forçada a isso pelo major Fisher, o que fez Gianna perder a mãe e o pai, no dia do seu aniversário, além de ter sofrido o estupro. O que trouxe à tona a possibilidade de Emma ter um irmão austríaco que não sabe qual, caso quem a fecundasse tivesse sido Hans Maximiliam Hoffman, no dia do estupro.
Fatos todos relatados minuciosamente no diário de Gianna, ao qual Emma não terá acesso até à morte de seu pai Hans Maximilian Hoffman, ou Maximiliano Domenichelli, como preferirem, (pai adotivo ou biológico de Gianna, até segunda ordem), que assumiu as funções de camponês criador de ovelhas produtoras de lã, antes de Giorgio, ao abandonar a profissão de piloto, para viver com a órfã Emma, entre ovelhas, lobos e gralhas, dentro da bela paisagem das Dolomitas por cerca de três décadas.
Depois dos primeiros capítulos citados, o texto nos remete à década de setenta, às suas referências culturais e ao passado mais recente de Emma, dez anos atrás nos anos sessenta, quando fazia faculdade de veterinária, curso não concluído, mas que a levou a conhecer Dominik, Dom para os íntimos, filho desconhecido de Hans Maximilian Hoffman, que nada sabe sobre a existência do filho, por jamais ter voltado ao seu solo pátrio. Ocasião em que houve um flerte entre ambos, Emma e Dominik, – o bastante para que nunca deixassem de se amar –. O piloto Dom, na verdade, queria ir às Dolomitas para resgatar os fatos circunstantes à queda do avião de seu pai, achar o avião nazista e saber toda a verdade sobre “o tedesco” Hans Maximiliano Hoffman. Não foi sozinho a essa missão, levara consigo Amelie com quem tinha uma relação aberta, que não durou mais depois do encontro de Emma e Dom, quando fizeram amor. Teriam cometido incesto?
Sem saber nada sobre a história de como foi gerada Emma encontra Dom; sem saber nada sobre a verdadeira história de seu pai Dom encontra Emma. Ele se torna amigo do pai de Emma (seu pai). Emma se torna amiga de Amelie, que se apaixona pelo sargento Giuseppe, um carabineiro. Há uma ciranda amorosa. Dom conversa apenas com Giuseppe sobre um dos motivos pelos quais quer ir às Dolomitas. Num certo momento, convida o pai de Emma para sobrevoar a área. No sobrevoo, revela a Maximiliano que veio a busca da verdade sobre a história de seu pai, em busca do paradeiro do avião. Maximiliano revela que ele próprio é Hans Maximilian Hoffman: Eu sou seu pai! E sofre um acidente vascular cerebral, sem conseguir ser socorrido a tempo, apesar de pouso emergencial, morre.
É quando Emma e Dominik podem descer ao porão e resgatar o diário mantido por Gianna Domenicheli, no qual são revelados todos os mistérios, sem que fique esclarecido se Emma e Dominik são irmãos ou não, porque essa ansiada verdade não é revelada no diário. Indo além da leitura do diário da mãe, a filha decide procurar seu tio Andreas, o partisano, seu tio, que reconhecera o bom caráter do pai adotivo ou biológico de Emma, viagem que resultará na leitura de uma carta por Gianna ao irmão. A trama é complexa e dolorosa.
Tecida a trama, falaremos daqui a pouco dos deuterogonistas. Mas, antes, é esclarecedor dizer que Gianna, com seu diário é protagonista e narradora, que o livro tem vários protagonistas além de Gianna, que o autor intermeia sua própria narrativa com a narrativa existente no diário, que Maximiliano, Emma e Dom protagonizam o livro tanto quanto a Gianna narradora, que com a leitura do diário pela filha e por seu namorado retoma protagonismo na elucidação dos fatos, não só por causa do diário, mas também por uma correspondência epistolar para seu irmão Andreas – o partisano –.
Entre os personagens também há o cão são Bernardo Alfie, Killian, o falcão de Dom, os lobos, as gralhas e a cordilheira das Dolomitas, entre outras referências toponímicas. O domínio do autor sobre a geografia dos fatos é interessante e mostra a vivência ou a pesquisa sobre a área. Com exceção de Killian, falcão cuja asa lesada impede-o de voar, todos os personagens têm participação direta na trama. Killian, cuja lesão na asa foi tratada com gordura de ovelhas recomendada por Maximiliano se recupera e voa ao fim da história. Voo que simboliza a superação do trauma. Fim que nos remete à grandeza dos seres humanos da família Hoffman e Domenichelli. A poesia da prosa no romance Pássaros negros na neve nos remete, comovidamente, à tal grandeza.