Gemagem/ Marcos Tavares. Vitória: Flor & Cultura. 2005.

Em sua dedicatória, na ocasião da compra do livro Gemagem, Marcos Tavares dedicou-o a mim da seguinte maneira: Para o literato Fábio Daflon, uma amostra da resina obtida na verde árvore ainda juvenil. Forma despretensiosa de apresentar-me o livro, reunião de poemas publicados dispersamente, antes da publicação. Mas os poemas reunidos não representam apenas a juvenília do autor, como ele nos enseja a pensar no primeiro poema RE / TALHOS (Pág. 19), os títulos dos poemas são em letras maiúsculas, no qual, em tom familiar, diz que “O pai queria-me engenheiro”, quinta estrofe, para concluir na sexta estrofe da seguinte forma:

-

Não aguento mais essa morte,

Tenho mesmo é vontade de viver.

Um dia hei de ser um homem.

-

Repito, agora, que os poemas não são de puerilidade, porque ao declarar “Tenho mesmo é vontade de viver. Um dia hei de ser um homem.”. O que o poeta pretende fazer é o dizer sobre a sua ontogênese, isto é, formulação da experiência, viver que o permitirá conseguir o desiderato de ser um homem. Mas, ressalve-se, falar de formulação da experiência para o poeta não trata de uma declaração existencialista, cujo mote tornado popular é o de que A existência precede a essência, pois há muita essência no livro, essência essa não balizada por princípios de qualquer natureza, pois falamos de poiesis (impulso do espírito humano para criar algo a partir da imaginação e dos sentimentos), daí o título Gemagem, (operação que consiste na extração de resina ou de látex das árvores) (1). E se a capa do livro bela nos traz dourado ovo em imagem refletida como se abaixo dela houvesse um espelho, podemos ver dois ovos, o da imagem refletida e o próprio ovo refletido, mais fosco no reflexo, em ambiência mais “resinosa”, ou, se estivermos certos na interpretação, seminal, poético, sensorial, gozoso.

No poema DESPEDIDA (Pág.26), percebemos rito de iniciação, na primeira estrofe da primeira parte do poema, está escrito:

-

Vou-me, embora tarde.

Não, não mais cedo

à sede de ti, ó corpo,

corpo de doce veneno,

que venero.

-

Estrofe fabulosa, “Vou-me, embora tarde.”. Reparem como o uso dos sinais gráficos provocam polissemias, podia ter sido escrito apenas: Vou-me embora tarde. Mas o uso da vírgula e do ponto final modificam sensorialmente o verso repetido “Vou-me, embora tarde. Dando uma sinalização de lamento em vez de revolta, de pausa, com o ponto final. Quando, na hora da partida, hora da formulação da experiência, o corpo deixa de lado a acomodação de ficar, intenção de ficar também representativa de um desejo, onde o corpo se acomodaria. Porém, note-se o desejo de movimento do corpo venerado, não num sentido narcísico, pois há a saída do espelho.

A habilidade de Tavares brincar com sinais gráficos reaparece aqui e acolá no livro, nunca vira um poeta fazer isso, essa é uma das delícias do livro, vejamos também a primeira estrofe de primeira qualidade do poema ANDRÓGINA (Pág. 38):

-

Teu corpo,

sei-o belo,

nervos à pele,

a dar vertigem.

-

Seio belo, belo seio, sei-o, mas que vertigem isso causa no leitor! Vertigem da originalidade, vertigem de inspiração para outros poetas sem tais recursos, vertigem de nervos à pele. Não à toa nos Comentários (reunião de dizeres sobre o livro), (Pág. 92), vários autores e conhecedores das letras fazem o elogio do texto, entre eles Sandra Medeiros. Que nos dez que o autor é “ Sutil mestre da ambiguidade, artesão e escravo de textos carregados de novas palavras.”. Ao que acrescentaríamos mestre do uso dos sinais gráficos, capaz de transformar hifens e vírgulas em metáforas, polissemias em metáforas, velhas palavras em novas palavras, palavras novas em espaços imaginativos de criação mesmo para o leitor, transcendendo o conceito de que o bom poeta é o que lê, sente e escreve no leitor, pois Tavares consegue fazer o leitor sentir, simplesmente sentir, o que é tão raro quanto achar um diamante, hoje em dia. Mais que ser poeta, Marcos Tavares nos ensina a estar poeta, e o estar poeta se confunde com o ser, daí a espontaneidade dos versos, apesar, apesar positivamente, do burilar dos poemas na criação dos versos.

E se os poemas transcendem o autor, falam também da percepção do mundo, como no poema BALADA DO CAIS DO PORTO (Págs. 34 e 35), cuja primeira estrofe é assim:

-

À beira do cais do porto,

em busca dalgum dinheiro,

mulheres alugam o corpo

a navegantes estrangeiros.

Não lhes importa sejam turcos,

ou filipinos, ou dalgum reino,

mas que tragam em cada bolso

moedas fortes do mundo inteiro.

-

Cuja última estrofe é a seguinte:

-

À beira do cais do Porto,

está chorando uma rapariga,

não das dores do de um parto,

porque virgem sua barriga,

mas da saudade de um rosto

que em longes mares fez ida

- À beira do cais do porto,

lágrimas e ondas bem unidas.

-

Poxa, quanta ambiguidade e ambivalência existe na palavra unidas, as ondas chegam o amor parte ainda desejável, há dor, lamentação por causa do amor frustrado. Mas no livro o amor não se rende a lamentações, transcende as perdas, atraca em novos amores a partir de poemas de tons autobiográficos, de poemas do viver a que o poeta se propôs, como se o sentimento fosse um manto diáfano capaz de tornar-se mar respirável. Desejo expressado no poema Ou as outras (Pág. 45).

-

Primeiro, da primeira vez,

Amei-a por inteiro

com o mesmo amor

da primeira vez

da segunda mulher.

-

Para o poeta a vida não se resume à pulsão de morte, ao que se repete, porque o amor não se repete, embora seja essência. Quarta estrofe:

-

Como um todo, nela,

amei-a e amei-a

com todo conteúdo

do amor possível em um

só, contudo.

-

Sintamos as palavras conteúdo e contudo, na segunda, em relação à primeira, há a supressão do acento agudo do u e da vogal e, existente por exemplo na soma eu e ela. Em Gemagem o amor é solo mas não é por ser mensagem, é canto que entra a partir da janela de dentro, o amor não se lastima por existir. No livro há nas últimas páginas alguns poemas concretos, homenagens a outro escritor, odes a amizade e às coisas da vida. Mas findo aqui, porque ir além seria transpor a essência do que a leitura me fez viver.

1) Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio Buarque de Holanda/ Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Pág. 974. – 3. Ed. Curitiba: Positivo, 2004.

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 05/11/2022
Código do texto: T7643364
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