A euforia do corpo. - Anaximandro Amorim - Editora Patuá. 2022.
Em seu livro A euforia do corpo, recentemente publicado pela Editora Patuá – agosto de 2022 – Anaximandro Amorim, graduado em Direito e Letras, professor de Francês, membro titular da Academia Espírito-Santense de Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e membro titular da Academia de Letras de Vila Velha, nos provoca o sentimento do soma e do psíquico e do que é psicossomático sem que apele para as morbidades bipolares ou os histrionismos corporais eufóricos para, então, fazer os olhos do leitor serem os dois pratos da balança, ou o óculos usado para a leitura, tornando-os até certo ponto côncavos a fim de que se pese ou sopese o que há de dionisíaco e apolíneo em seu livro de poemas, pois como brasileiros sabemos ser o dionisíaco para nós o carnaval ou o que é orgia, transbordamento dos sentidos. Ou a loucura, mesmo na política com suas escatologias negativas, no sentido negativo da palavra escatologia. Enquanto o que baliza a euforia nos poemas do livro é a espontaneidade. Tornando-se a palavra espontaneidade a partir da leitura do livro A euforia do corpo o elo de ligação entre o dionisíaco e o apolíneo, mesmo quando o palavrório do poema é todo dionisíaco, como observamos no poema sem título, de certa forma como epígrafe, antes do início da primeira parte do livro (Pág. 30).
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Rede de arraia
que se arrasta sobre
rede de arraia
deixando pedaços
de pele sobre as unhas
transforma
morada de espírito
em bordel de baixo meretrício?
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O ponto de interrogação pode suceder uma pergunta ou um questionamento, no poema acima sucede a um questionamento, e o questionamento é o que o sujeito pergunta a si e ao outro, no caso acima como proposição de contato com o outro corpo. Questionamento que não permite que o dionisíaco se reduza a Baco, que seja bacanal, muito menos ainda orgia em baixo meretrício. Proposição que nos leva muito mais a pensar no encontro de Eros com Psique, como ocorreu no conto de Apuleio do que nas aventuras de Afrodite. E se sabemos do dionisíaco e das suas possibilidades degenerativas, temos, no livro de Amorim, a possibilidade espontânea de libido, ou Eros em Graça.
Donald Winnicott é o psicanalista que melhor trabalhou a questão da saúde mental da espontaneidade – o corpo simbólico –. Para ele a espontaneidade é fruto da ausência da inibição, do recalque, da forclusão e das coisas reais que se embriagam diante da possibilidade do evento dionisíaco eroticamente são, capaz de suportar a alegria. Winnicott vincula a agressão à espontaneidade, a agressividade à espontaneidade, pois o corpo se projeta e pode machucar o outro ou acariciá-lo. A inteligência do corpo é a presença de espírito, e a presença de espírito nunca avilta o corpo. Não elevo aqui o espírito ao lado místico, reporto-me ao pensamento capaz de dar ao espírito o livre arbítrio. Em seu livro Breviário do Silêncio, o autor nos falava do estigma de Caim, em A euforia do corpo cria essa ponte entre o apolíneo e o dionisíaco que confere equilíbrio ao texto. Sua coluna dorsal.
Da primeira parte, pinço o poema Corpo de alívio (Pág.64) para falar dessa ponte entre o apolíneo e o dionisíaco, transcrevendo-o:
Seu corpo e outras partidas
podem significar
comprometer-se face ao
rosto indizível
como estrada de pés descalços,
por onde já andei, assim,
errante e nu
às vezes via crucis
às vezes belo, absoluto
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Fujo para seu corpo de alívio,
levando minhas feridas
de entranhas abertas por
aves de rapina
como desejo de nome-comum
mesmo sabendo que
tudo o que se move
no mundo
vai fenecer um dia.
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O que é nome-comum? Nome comum é ponte, é algo dizível por onde se pode atravessar o rio, por onde se pode arremessar feridas às águas para serem curadas sem mais serem carga para o corpo, numa metamorfose simultânea do apolíneo em dionisíaco e vice-versa, jogo simbólico ainda referido ao estigma, feridas, numa despedida ao que foi Breviário do Silêncio, que em A euforia do corpo se distende em proposição de discurso amoroso. Da segunda parte do livro pinço o poema Entre pernas (Pág.77), transcrito a seguir:
Por entre as pernas
(Sim, por entre as pernas)
busco a paz da
finitude
Tudo fenece por alguns
segundos para renascer
de novo
tudo é reprise do
instante.
Por entre arames-farpados
(pelas barricadas)
nas curvas dos ossos
busco existir
além do
limite do corpo.
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E por falar em limite o autor transcende o limite do corpo, não o estigmatizando mais, para encontrar as circunstâncias, por entre arames-farpados (pelas barricadas) e o que mais exista de insubmissão ao poder das circunstâncias, negando o efeito do presente histórico embora saiba dele.
Não há uma terceira parte no livro, mas há o Epilogo que o conclui com um poema também sem título (Pag.85), conforme transcrito abaixo.
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Gosto da poesia
como jorro. Meu
país é campo
fértil. O que não
se entrega está
fora dos meus
domínios.
O estéril.
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Não há como não recordar a canção de Ivan Lins, O amor é meu país, principalmente no momento histórico em que vivemos. Jorro de alegria – ainda sob forma de esperança –. Mas a ponte entre o apolíneo e o dionisíaco não foi construída sem dor ou sem esforço para que o movimento acontecesse. O corpo é uma loucura (Pág,31), sugere-nos o poeta no título do poema que surge após a sua afirmação, para afirmar em outro título O corpo é um amuleto (Pág.33), a loucura é a estação dionisíaca ainda sem contato com a leveza a despeito das circunstâncias, o amuleto é apolíneo, é brinde ao corpo enunciado. Podemos então pensar que a construção da ponte foi um processo traduzido por escrito em versos livres extrovertidos para que houvesse A soberania do corpo, título também de poema (Pág.47).
Mas há também a questão do limite e o autor nos põe diante dela no poema O narciso dos meus dias (Pág. 79), a seguir transcrito:
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De silêncio e pó:
Assim é o Narciso dos meus dias
Pássaro de ar que bate no teto
No limite das minhas fantasias
Refazendo minhas amarras
Na certeza de ser cativo
Reinventando a beleza
– em busca de alguma alegria.
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O livro tem algumas páginas da cor do breu da noite, algumas sem nada escrito, a capa e o projeto gráfico é de Roseli Vaz, e tem de interessante terem sido feitas de fotos cortadas a mão e de bordos irregulares mesmo quando tentam formar figuras geométricas como a do retângulo vertical, no caso da capa, dentro do livro estes fragmentos fotográficos se desprendem parcialmente um dos outros. No miolo do livro são usados dizeres do filósofo francês Jean-Luc Nancy como epígrafes às quais não prestei muita atenção a fim de não me sugestionar antes da leitura dos poemas em si próprios. O prefácio é de Renata Bonfim, Doutora em literatura, poeta e ativista ambiental.