Fama Volat/ Francisco Grijó – Vitória: Cândida, 2019.
Francisco Grijó, capixaba, escritor, professor de Literatura Brasileira, é membro titular da Academia da Academia Espírito-Santense de Letras, foi Secretário de Cultura de Vitória (ES). Autor de Diga Adeus a Lorna Love (contos, 1987); Um Outro País para Alice (contos. 1989), Com Viviane ao lado (romance, 1995), Licantropo (contos) Histórias Curtas para Mariana M (romance, 2009), Todas Elas, Agora (contos). Participou de várias antologias literárias (conto, crônica). Publicou em 2019 o romance policial Fama Volat, do que nos ocupamos a partir de agora.
Segundo Mario Vargas Llosa, há três formas de crítica:
“A primeira, individual e subjetiva, predominou no passado, e seus defensores a chamam de clássica; seus detratores de impressionista. A segunda, moderna, pretende ser científica, analisar uma obra de maneira objetiva, em função de regras universais, muito embora, é claro, a índole das regras varie conforme o crítico (psicanálise, marxismo, estilística, estruturalismos, combinações). A terceira tem mais a ver com a história de literatura do que com a crítica em si propriamente dita (1) ”.
O livro Fama Volat tem muito mais a ver com primeira e a terceira formas de crítica. Usaremos mais a primeira a partir de agora, porque do ponto de vista da terceira maneira o livro é um ensaio histórico sobre o romance policial. Embora não possamos desconsiderar totalmente a segunda maneira.
. Quanto a estilística, há características do conto na prosa romanesca de Grijó, um dos aspectos disso é o nenhum aprofundamento na personalidade dos personagens e esse aspecto resulta na agilidade da prosa; aliás, agilidade dentro duma gama fabulosa de informações, as quais impedem que o leitor avance o sinal do tempo de leitura. A concisão do contista permite que discorra sobre obras de arte de forma fantástica ou que discorra sobre um mundo do qual fazemos parte, tangencialmente, como visitadores de museus ou galerias, sem nunca termos entrado nele de verdade, algo que seduz o leitor, embora, a princípio, não seduza o policial honesto protagonista do romance.
As informações sobre o tráfico de obras de arte e as obras de arte traficadas enlevam os leitores, enquanto não é revelada ou imaginada a razão da confusão toda.
Logo na orelha do livro, Adolfo Costa, numa referência ao livro Histórias Curtas para Mariana M, revela ter sido compelido a, antes de escrever a orelha do Fama Volat, ler o livro de 2009 de Grijó. Na orelha do livro em tela, Costa cita Luiz Guilherme Santos Neves, autor da orelha do livro Histórias Curtas para Mariana M, dizendo que Santos Neves disse o seguinte sobre o livro que escreveu a orelha: “É romance e é ensaio, e sobre o quê? Sobre literatura policial”. O mesmo se aplica ao Fama Volat.
“Há uma sociedade secreta neste livro – e seu nome dá título à obra: Fama Volat (Pág,11) diz o narrador e faz a apresentação dos fatos na primeira pessoa, dos métodos investigativos policiais nas ações do investigador de polícia Anselmo Rosa-Torres, que em si mesmos vão criando o enredo a partir de um crime provavelmente acontecido em Vitória, isto é, real (com a ressalva da mera coincidência).
Não se sabe quantos romances ou filmes policiais possam ter sido inspirados em crimes acontecidos. Cito apenas um: Mandrake, a Bíblia e a bengala, de Ruben Fonseca, cujo mote foi o do roubo da Bíblia de Gutemberg da Biblioteca Nacional. Um roubo de um acervo cultural de valor inimaginável.
Afirma-nos o autor:
“Seria a Fama Volat apenas uma lenda urbana? O termo remonta a Virgílio, poeta romano clássico, autor de Eneida – texto em cujo conteúdo se encontra tal expressão. Numa tradução grosseira e literal, significa a Fama Voa – ou seja: a notícia é disseminada com rapidez, o que constitui não somente um oximoro, como também uma ironia (que em muitos casos dá na mesma), já que a Fama Volat é, a valer, uma organização tão absolutamente secreta que ninguém sabe ao certo se ela é verdadeira. Para muitos é mito (Pág.19).”.
No livro o autor nos diz como surgiu a Fama Volat. Instigo a curiosidade dos leitores a ler o livro. Os encontros dos componentes da organização tinham um único objetivo nas suas origens: a troca de informações sobre o tráfico de obras de arte, fossem elas literárias, plásticas ou musicais (Pág.19), em 1903.
Anselmo Rosa-Torres é investigador policial de nome ilibado, e evitou notoriedade por ter resolvido um crime ocorrido na High Socyete, anterior ao relatado no romance. Serve na 5ª DP, na João Carlos de Souza, na Praia do Canto, e lhe caberá investigar o assassinato do casal Simone Carpeaux e Ester Vilhena, a primeira bem-sucedida marchand, ou mais que isso: avaliadora de obras de arte; ambas encontradas mortas em casa por Renato Carpeaux, fotógrafo, irmão de Simone.
Renato é o primeiro entrevistado (Pag.25) e revela a Rosa-Torres que Simone tinha ligação com uma organização secreta, a Fama Volat (Pág. 37). Indo mais adiante com duas informações que lhe custarão a vida, ao revelar que sua irmã era amiga de Amarildo Suárez, o barão do café, riquíssimo, milionário, colecionador de obras de artes; e de Ertha Fallaci, dona de uma galeria de arte bem grande, na Enseada do Suá (Pág. 39). Borgo, o chefe de Rosa-Torres, o apoia, e dá ao subordinado total autonomia, e ao fim do romance, isso se tornará perigoso para o investigador, que esquece de lhe avisar da ida ao ateliê de Ertha.
Na Parte1 do romance, logo em sua primeira página (Pág.15), o texto nos revela o seguinte:
“ É tudo história, com agá solene, maiúsculo. Repito: ouça com cuidado, atenção. Entre 10 e 11 de junho de 1903, durante o chamado Golpe de Maio, o golpe de estado que assassinou Aleksander Obrenovic´, rei da Sérvia – e sua esposa, Draga Obrenovic´, essa sim nossa protagonista.”.
Protagonista porque foi ela a primeira colecionadora de objetos de arte que atuou de formas clandestina, pois alguns membros da organização nacionalista Unificação ou Morte encontraram, durante o saque aos bens do trono, um tesouro cujo valor era tão imenso quanto desconhecido: “...partituras escritas pelo punho verdadeiro de Johann Sebastian Bach”; entre outras riquezas.
Estando lá no Golpe de Maio as origens da organização secreta que viria a se chamar Fama Volat. Sobre a qual nenhuma pesquisa no Google diz nada, não se encontrando sobre ela nada em lugar nenhum, embora haja leilões de obras de arte oriundas de não se sabe onde para serem vendidas a não se sabe quem. Arguto, Rosa-Torres direciona suas investigações também para o mercado das artes, em buscas de pistas inclusive na Internet. Esse é o momento no qual o investigador começa a escrever um ensaio sobre o romance policial e sobre o tráfico de obras de artes.
Tendo, por sua origem paulista, policial amigo que o informa haver além da Undernet, uma Internet só de ricaços onde, provavelmente, por meio de snapchats uns se comunicam com outros, para efetivação de transações secretas acerca de obras de artes e documentos das sete artes, que se dão ao conhecimento do leitor atento. Diversionismo de grande beleza, porque nos faz não imaginar a razão do assassinato de Simone Carpeaux e Ester Vilhena, pois se não fossem elas quem eram, talvez o romance se reduziria a uma ciumada de Ester em relação Ertha Fallaci, num caso de adultério lésbico, o que tornaria Ertha suspeita de crime passional, se Rosa-Torres não viesse a saber disso tarde demais, mas a trama vai muito além disso. Pois não foi Ertha quem matou as mulheres acasaladas fazia tempo. E se o investigador tivesse sabido a tempo e a hora isso só se constituiria como uma pista falsa.
Outros personagens vão surgindo no curso da história, o investigador não é tão solitário, Rita Expedito, jornalista cultural encontra-o com certa frequência. Há algo entre eles, algo que não se interpõe quase nada ao enredo do romance e no que ambos possam a ter com ele ( Pág. 53). Com Rita, Rosa-Torres assunta sobre o caso e sobre artes, e o que a jornalista poderia saber a mais sem dizer ao investigador fica no ar. O clima de mistério perpassa todos os personagens. Rosa-Torres mantém o faro no rumo certo, a convicção de que foram membros da Fama Volat os mandantes do crime. Os ricaços. Descarta a possibilidade de crime passional que de fato teria motivações incipientes. Intermitentemente, Renato Carpeaux fornece mais informações ao policial, agora dois envelopes, um deles com fotos (Pág.69). O quebra-cabeça começa a configurar uma imagem de tudo mais clara. O empresário Amarildo Suárez é inquirido como suspeito. E é, de fato. Porém, a toda ação corresponde uma reação, morador de Vitória, Suárez não pode revidar pessoalmente, é muito conhecido. Então, evoca os tentáculos da Fama Volat para ser protegido. Um carro branco passa a espreitar o investigador.
Simone e Ester foram mortas porque a partir da segunda, em crise de ciúmes, começaram a vazar informações sobre a Fama Volat e membros da organização. Ação de terra-arrasada que lhe custou a vida e a de Simone. Rosa-Torres não teria sabido disso se não tivesse sido emboscado por membros da organização na galeria de Ertha Fallaci, onde foi sem avisar a chefia em seu único descuido. Renato Carpeaux é morto. Mas não morre todo mundo no final.
Subjugado, Rosa-Torres ouve toda a verdade da boca de um dos tubarões da Fama Volat, um empresário paulista, agora sabe demais. Sabe quase tudo, por ter feito uma investigação próxima a perfeição. É admirado por quem o investigou! Não é assassinado, dopado acorda numa calçada, onde transeuntes passam indiferentes. O que fará a partir de então o policial honesto e ilibado? Aquele que não entrava no mundo que investigava? Aquele incapaz de ceder a qualquer sedução? Conseguirá manter o seu verdadeiro self? Saberá o leitor se colocar em seu lugar no momento em que sofre o poder das circunstâncias? Essa é a grande dúvida. Esse é um romance sobre um dilema existencial. Esse é um romance sobre a dúvida. Lê-lo de cabo a rabo é a única chance dada ao leitor para viver o drama. Até que ponto um homem pode transcender o poder das circunstâncias? Principalmente, quando elas não são subjetivas. Será a própria vida algo insignificante diante da possibilidade de revelar tudo que foi descoberto, mas que ainda assim terá que ser provado?
Nem tudo aqui é revelado, após Draga Obrenovic´, há outros nomes que tocaram para frente as atividades da Fama Volat, entre eles renomado escritor de romances policiais relativo às origens desse gênero literário. Talvez ele mesmo um investigador e parte da organização secreta. Grijó consegue misturar a história com a ficção de forma supimpa. Belo livro. Após a leitura saímos enriquecidos e mais aptos a ler mais romances do gênero, isso enriquece a literatura. Nunca um romance policial, ao fim, deixou tanto suspense no ar.
1) Vargas Llosa, Mario. A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary/ Mario Vargas Llosa: tradução José Rubens Siqueira. – I. ed. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.