O coração da Medusa/ Renata Bonfim; tradução de Pero Sevylla de Juana. – 1. Ed. Ed. da Autora: Vitória. ES: 2021.
Livro de plenilúnio da poeta capixaba Renata Bonfim, O coração da medusa se apresenta aos leitores em edição bilíngue, com os poemas traduzidos para o castelhano por Pedro Sevylla de Juana, o que permite a nós latino-americanos a leitura do livro desde uma perspectiva continental, sejamos da América Ibérica ou da Castelhana. Além da tradução dos poemas para o espanhol, Pedro Sevylla de Juana, da Espanha, nas páginas finais do livro escreveu interessante ensaio crítico em relação ao qual nos enriquecemos, mas que procuramos não usar os mesmos elementos informativos para realizar a compreensão sobre o que tanto nos tocou durante a leitura de O coração da medusa.
Desde o título o livro traz à tona o espanto necessário e frequente no que possa tanger nossos sentidos. Tememos mais os olhos da medusa do que o coração, tememos virar pedra e talvez seja este limite imposto pelo medo que nos põe em fuga e nos traz, simultaneamente, o desejo de fazer a travessia das páginas, o desejo de sobreviver à poesia como algo realizável, sem o emparedar nos limites do corpo estatuária. E, sem dúvida, é este o primeiro desafio: o de aceitar a estanqueidade do corpo, que mesmo empedrado ainda olha e pode olhar além até mesmo de si mesmo.
Os poemas são escritos como frases interrompidas que seguem adiante abaixo e acima do ponto em que estejamos com os olhos, pausas que nos causam doces tropeços, como se após termos, na condição de leitor, sido empedrados nos nossos próprios corpos, em busca do coração da Medusa, pudéssemos começar a caminhar na direção de uma Lua cheia mais luminosa do que o sol, sem que a luz emergente dos versos nos cegue, curiosamente, como se a mulher representada nos impusesse a parada para obtenção dalguma capacidade de seguir em frente.
E é por essa razão que os dedos dedilham as páginas, quase que sob algum feitiço, diverso da maldição da imobilidade. Gradativamente, diante da nossa paralisia, a Medusa se move, durante essas movimentações desde a luz que cega, mas não interrompe a visão, e este é o mote de doçura maior da poética livresca, surgem sombras, como se a Medusa se movesse e ainda temerosos só pudéssemos ver o que resulta desses movimentos em relação aos quais nos sentimos incapazes de enquadrar a imagética viagem da poeta.
Ponto de transição no qual começa o jogo de luzes e sombras do texto do livro como um todo. Em que a poeta brinda ludicamente com os sentimentos provocados no leitor, fazendo-o repensar mesmo os seus conceitos sobre poesia. Não mais apenas com a capacidade de criação na qual o poeta sente o que o leitor sente, provoca o que o leitor deseja ou escreve um pensar na cabeça de alguém. A poesia de Renata Bonfim, em seu livro em tela, causa sentimentos de movimentação que vão além das meras sensações provocativas ou das sutis mensagens pelas quais muitos poetas tentam falar de si mesmos, perdendo a chance da universalidade.
O coração da Medusa, dentro da caixa torácica em que todos nós temos coração, habita sombras, mas é luz nem tão recôndita e o segredo maior é o desse órgão que canta para nós a sua luz própria de coração liberto antes intangível. O que a Medusa faz ao nos revelar o íntimo da intimidade é muito mais que maravilhoso ou fantástico: pois nos faz compreender nossa paralisia, nos faz repensar a vil necessidade da decapitação da Medusa, nos faz repensar no coração que sobe à língua e transborda vida, defendendo-a em sua totalidade.
Embora tenha escrito sobre o livro lido por completo ontem, sábado, e, hoje, domingo, dessa vez não parei muito para pensar sobre o que escreveria; sob a emoção de algo mudado, antes arraigado em mim desde a antiguidade clássica, agi. Talvez até agora ao escrever notas de análise literária sobre um livro eu o tenha feito como reação. Hoje foi diferente. Foi ação. E isso é tudo o que posso dizer sobre o movimento para mim libertário que me trouxe ao teclado para escrever essas breves linhas com doçura. Que esplêndido livro!