Foucault e Kant, trilhando às sombras da Aufklärung
Quando pensamos na sociedade contemporânea ocidental, não é possível desvincular a influência iluminista, dentro de um caráter de normatização epistêmica, já que a presença das chamadas “luzes” parecem sempre eclodir nos discursos, ainda que de forma indireta, produzindo uma epistemologia refém de dispositivos que a delimitam e criam paradigmas acerca de sua estruturação.
Imannuel Kant, proeminente filósofo alemão do fim do século XVIII e início do século XIX, em dezembro de 1784, publica em um periódico alemão “Berlinische Monatsschrift”, sua resposta à pergunta “Was ist Auflärung?”, apresentando sua concepção acerca do tema em voga. Incialmente expondo a necessidade do homem de sair do que denominara menoridade, ou seja, a “falta de decisão e coragem de servir-se de si sem a direção de outrem” (KANT, 2005). A partir de tais premissas, estabelece duas formas do uso da razão, uma ordem de privada e outra de ordem pública, sendo que a primeira se refere a necessidade de uma determinada função e restritiva, enquanto a segunda possui caráter amplo e irrestrito já que corrobora um ideal de esclarecimento público. Convém observar que:
Se for feita então a pergunta: “vivemos agora em uma época esclarecida [aufgeklärten]”?, a resposta será: ‘não, vivemos em uma época de esclarecimento {Aufklärung]”. (KANT, 2005, p. 69).
Atento ao governo da época, Kant reforça que um chefe de Estado pode e deve permitir que seus súditos se sirvam da razão pública e que deve inclusive incentivá-los. Também reitera que um homem pode adiar o seu esclarecimento, mas jamais renunciá-lo, criando o apanágio que serviria de herança da aclamada Aufklärung.
Em 27 de maio de 1978, o icônico filósofo francês do século XX, Michel Foucault, se propõe em uma palestra, a criticar o texto kantiano, a parir da pergunta “O que é a Crítica?” (1991). E sobre a crítica, o mesmo sentencia:
Afinal, a crítica existe somente em relação a outra coisa que ela mesma: ela é instrumento, meio para um devir ou uma verdade que ela não saberá e nem será, ela é um olhar sobre um domínio que quer policiar e é capaz de fazer a lei. Cault apresenta cr(FOUCAULT, 1991, p. 170).
Foucault expõe a crítica como uma atitude que desvela uma virtude geral, uma arte de governar os homens era apresentada e denominada pelo filósofo francês de governamentalização. Como se escapa ao ato de ser governado, ele questiona? Mais do que isso, propõe uma “arte de não ser de tal forma governado” (Foucault, 1991). As bases de tais concepções arraigadas na concepção kantiana são desmembradas em pontos de ancoragem históricos, a saber: historicamente bíblica, essencialmente jurídica e o problema da certeza em face da autoridade. Entremeiam-se o direito, a ciência, a escrita, a natureza, a própria relação consigo mesmo.
O grande foco da crítica se refere às relações que atravessam e cosem o poder, a verdade e o sujeito, num tricô de pontos soltos, na interrogação de cada sobra de camadas. Na crítica o sujeito se dá o direito de interrogar, numa “arte de não servidão” (FOUCAULT, 1991).
O modo de ser do homem, tal como se constituiu no pensamento moderno, permite-lhe desempenhar dois papéis: está, ao mesmo tempo, no fundamento de todas as positividades, e presente, de uma forma que não se pode sequer dizer privilegiada, no elemento das coisas empíricas. (FOUCAULT, 1999, p. 475).
Onde campos se entrelaçam num diálogo complexo, que posteriormente seria vislumbrado como uma verdadeira “Arqueologia do Saber” (1972), fazendo com que o mundo sofresse um processo de transformação com a emergência das Ciências Humanas. Os efeitos dessa cadeia de saberes continuam a ecoar e mais do que nunca é possível perceber seu modus operandi na formatação dos discursos contemporâneos, como se pudéssemos averiguar nuances desses recortes epistêmicos. Estes recortes epistêmicos operam como processos que definem modos de saber e de produção de verdades, as quais têm seus efeitos sobre a vida em suas várias instâncias. Na realidade estas verdades que sustentam os discursos conferindo-lhes validade. Estes discursos são narrativas ou metanarrativas que têm como função nomear as coisas e ao fazer isso ela produz exclusão e interdição. Afirma Foucault no livro “Ordem do Discurso”:
Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. (2007, p. 475).
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Cóllege de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. 15. ed. São Paulo: Loyola, 2007. (Leituras filosóficas)
______. O que é crítica? (Crítica e Aufklärung). Cadernos da Faculdade de Filosofia e ciências – UNESP de Marília, v. 09, n. 01.Marília, SP, 2000.