"Um Copo de Cólera" em análise

Um Copo de Cólera, a segunda das três expressivas obras do autor de A Lavoura Arcaica, fora publicada em 1978, ano ainda profundamente marcado pela repressão da ditadura militar. Nesta época, é então eleito para a presidência da república o general Ernesto Geisel, que restaura o habeas-corpus e trabalha para a democracia no Brasil, cessando de vez o AI-5, o ato inconstitucional mais cruel da história.

Através desta sumária contextualização histórica, pode-se vislumbrar uma introdução à novela de Raduan Nassar, uma perspectiva pós-modernista de extravasamento humano sob a qual foi desenvolvida. O alcance da verborragia literária canalizada pelos instantes descritos de silêncio e pela força das palavras, vai ao extremo das sensações de vazio existencial.

A relação amorosa é abrangida em sua fundamentação no plano sexual, é na cama que ocorrerá a liberação dos instintos reprimidos pelas convenções da sociedade. A incomunicação dos personagens que compõem a trama se dá na catarse rompida por um acontecimento externo banal. Com estes e mais outros aspectos, pretende-se tecer uma análise desta novela de Nassar, com cuja maestria a compôs em apenas quinze dias.

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Eis uma narrativa que joga com o subjetivismo e com o fluxo de consciência presentes no pensamento caótico e nos incessantes diálogos dos personagens principais, um homem autoritário e machista de quarenta anos e sua namorada jornalista, de visão social ampliada, humanista. Espaçada no ambiente rural de uma chácara em localização indefinida, a história é iniciada e encerrada com capítulos de mesmo título. Começo e fim em: A Chegada.

Primeiro, a mulher aguarda seu homem com alguma displicência e dúvida. Ao chegar e, a todo momento, ele está taciturno. Há uma seqüência de olhares, estranhamentos seguidos de entendimento súbito, quando o protagonista morde um suculento tomate de maneira provocativa, como que em convite animalesco à uma espécie de dança do acasalamento e se dirigem para o quarto. Estavam de lados opostos.

Na Cama. Embora pareçam dois estranhos, o sexo se apresenta como a única linguagem passível de entendimento aos dois seres. Ao que ela diz: “É este canalha que eu amo!” A nudez inicial dos pés descalços do homem, comparados a dois lírios brancos, conota o fetichismo da mulher e antecipa o extravasamento de ambos no ato sexual. O Levantar. Após uma noite de intenso gozo, a sedução persiste. Ela o quer prender à cama ainda, mas ele se impacienta e tem pressa, reluta: “me deixe, trepadeirinha”, ergue-se nu a olhar a paisagem da janela, distante. Ela o circunda, prende. Vão ao chuveiro.

O Banho. O jogo erótico avança. A mulher, no gesto aparentemente submisso ao banhar, ensaboar o namorado, massageando experiente o seu corpo inteiro, dos pés à nuca, na verdade o detém, pois o atiça ao ápice do deleite através das mãos firmes.

Ele fecha os olhos, entregando-se intimamente a esse momento que o veste e o reveste de passividade lacônica: “(...) e me fazendo estender meus pesados sapatos no seu regaço pra que ela, dobrando-se cheia de aplicação, pudesse dar o laço, eu só sei que me entregava inteiramente em suas mãos pra que fosse completo o uso que ela fizesse do meu corpo.”

Até O Café da Manhã o protagonista se mantém rígido na sua indiferença, especialmente com Dona Mariana, a empregada da casa, austera, a servir o café: “Mariana entrou com seu jeitão de mulata protestante (...)”. “(...) Nos cumprimentando como sempre encabulada, mas sem dar bola pro seu embaraço eu imediatamente encomendei ‘o café’, e ela sabia muito bem, pelo tom, que eu queria dizer com isso (...)”.

É no capítulo seguinte que se delineiam os instantes de maior impacto na trama. O Esporro. Interessante salientar a conotação do título, que traz ambigüidade de significados. Esporro pode bem ser caracterizado pela ejaculação ou pela exposição abrupta de palavras, um jorro lingüístico da sublimação do sexo. Nota-se muita força no discurso das personagens que se digladiam no revezamento de poder. O foco narrativo passa do masculino ao feminino, com a guerra dos sexos marcada por um tolo incidente.

O cume conflituoso é estabelecido no momento em que o protagonista se vê embrutecido pelo fato de sua cerca ser invadida por formigas saúvas. A gota d’água da tempestade num copo de cólera. Decerto, a cerca de plantas rompida encerre a metáfora do rompimento com o si, o ego abalado, corroído pela realidade imposta. O protagonista diante da sua própria impotência, arremessando frustrações à mulher, aos empregados, ao cachorro Bingo e ao mundo, verbaliza tão freneticamente, que chega à agressão física por desgosto, em recusa à cumplicidade amorosa. Ele não se conforma com o bom senso da mulher, mas acaba por reconhecer o raciocínio ágil dela intimamente:

“Eu devia cumprimentar a pilantra, não tinha o seu talento, não chegava a isso meu cinismo, fingir indiferença assim perto duma fogueira, dar gargalhadas à beira do sacrifício, e tinha de reconhecer a eficiência do arremedo, um ligeiro branco me varreu um instante a cabeça, senti as pernas de repente amputadas, caí numa total imobilidade(...).”

É com a descrição de sua derrota que o capítulo mais extenso se desfecha. Prostrado ao chão em espasmos de ressentimento profundo, quando é logo amparado pelos empregados Dona Mariana e Seu Antônio como se fosse um menino acalentado. Esta cena última dá vazão, enfim, a: A Chegada, em que a mulher o encontra regredido por completo, agora na posição fetal como se estivesse à sua espera. E ela, ao sentir-se inundada por um aflorado instinto maternal, encerra a trama ambientada pelos resquícios de alguma trégua:

“(...) Deitado de lado, a cabeça quase tocando os joelhos recolhidos, ele dormia, não era a primeira vez que me prestaria aos seus caprichos, pois fui tomada de repente por uma virulenta vertigem de ternura, tão súbita e insuspeitada, que eu mal continha o ímpeto de me abrir inteira e prematura pra receber de volta aquele enorme feto.”

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A novela analisada possui ao todo sete capítulos, cada qual composto por um único parágrafo e também por um só período, com uma pontuação desregrada em razão do tom coloquial empregado na narrativa, além das expressões de baixo calão, variáveis onomatopaicas e intertextualidade. Cita alguns célebres pensadores em mescla com a linguagem do teatro, do absurdo, do surreal.

O retrato da crise conjugal brasileira é pintado por Raduan Nassar nesta obra não como mero desacerto romântico, mas com o teor causticante perpassado na época mais violenta da ditadura. Pode-se concluir, portanto, que se trata de uma literatura engajada pelas idéias de liberação individual, além de ousada quanto aos recursos lingüísticos, da imagística e de um psicologismo repleto de nuanças febris das mentes conflitantes.

Aqui o ser humano é desnudado sem censura, há sim a busca pela identidade através de jogos com o simulacro e, tão somente sob o jugo de uma ânsia de marginalização é que se pode ir de encontro a qualquer forma de poderio absoluto.

(Também no Blog TRAÇAS S/A: http://lepdopteratura.blogspot.com)

por: Paola Fonseca Benevides