Uma ficção interdisciplinar
É preciso deixá-la agir por um momento, deixar o pedal prolongar o som, isto é, fazer um pastiche voluntário, para poder, depois disso, voltar a ser original, e não fazer durante toda a vida um pastiche involutário."
(Marcel Proust, A voz narrativa)
Cinco anos se passaram até que o leitor potiguar (e por que não dizer também o leitor brasileiro?) pudesse voltar a desfrutar as novas páginas de uma ficção interdisciplinar como a do escritor e professor de Filosofia Pablo Capistrano, detentor de um estilo único, por vezes até alucinante, para quem não está acostumado à sua maneira de fazer literatura contemporânea. O sucesso adquirido com a sua primeira tentativa em Pequenas catástrofes, romance de estreia no cenário das letras potiguares, lhe rendeu não só o reconhecimento local, como também o nacional a partir da publicação pela editora Rocco em 2006. Agora, Pablo retorna ao nosso campo de visão com um novo trabalho que dá continuidade à prosa anterior e as suas ideias e delírios filosóficos, metafísicos e científicos com o livro de contos É preciso ter sorte quando se está em guerra (Ed. Jovens escribas, 2011).
O título é bastante esquisito ao primeiro olhar, e a sensação de desquilíbrio da realidade e do mundo invade logo quem começa a percorrer a linha de ações que se desenvolve nos três diferentes contos, que, apesar de relatarem histórias distintas, parecem perseguir um mesmo projeto: a criação de um ser humano mais sofisticado, capaz de substituir o atual. É imprescindível não se relacionar esse dado do livro com a proposta de Pequenas catástrofes, texto no qual o autor, através de uma linguagem cinematográfica e característica da hodierna ficção, retoma essa temática que sempre o ateve às questões do futuro da humanidade, com a ajuda de leituras sobre Nietzsche, Aristóteles e, do seu preferido, o filósofo alemão Ludwing Wittgenstein. Os contos versam mais sobre a existência do homem, principalmente o valor que dá a sua identidade social, o amor, a ciência, o geneticismo qual ferramenta para se saber a composição biológica e química do ser humano etc. Tudo está voltado à gênese mundial.
No primeiro conto, A escada de Jacó, o leitor se depara com uma narrativa girando em torno de uma preocupação do narrador: o que represento para a sociedade em que estou inserido? E essa angústia cresce mais, assim que descobre que outro poderá tomar o seu lugar; um outro ser que usufrui do mesmo conhecimento e do mesmo prestígio social. Tanto que o protagonista-narrador acaba assumindo a identidade do seu rival ao término do conto. O interessante é a forma como o personagem faz para chegar até o seu desafeto (como ele mesmo prefere chamar) e eliminá-lo de sua própria vida —acessando sites de relacionamento e de informações pela internet, dentre os quais o orkut e o google. Aí, teremos uma interface entre os gêneros discursivos ferramentas da web e o conto de ficção, pertencente ao discurso literário. De certa forma, essa técnica complementa ambos os discursos, tornando o texto mais atrativo, sobretudo para as novas gerações tão ligadas à net, aos iphones, facebooks, netbooks, twitters do cotidiano. Tais termos também estão presentes no vocabulário direto, dinâmico, popular e juvenil do narrador de dois dos contos, o que acaba direcionando os assuntos interligados para um público cada vez mais juvenil, mas sem que possam ser refletidos pelo público adulto.
Tanto isso é verdade que nos emociona a leitura do segundo conto Saudades do amor, com o subtítulo uma história para garotos, no qual o narrador vai nos apresentar um retrato da juventude nos anos 90, uma época cuja marca principal estará no surgimento de novos ritmos do rock pop internacional, trazendo mensagens remanescentes do que foi a experiência de ser jovem nos anos 80, década em que se teve mais exemplos de desilusão e morgasmo social. Os anos 90 representaram o momento de organização de valores, referenciais acerca da adolescência e do papel do jovem, outrossim, numa sociedade em fase de reestruturação política. Todas as sobras ficaram nos 90. E Rudá, personagem principal do conto, sente essas transformações rápidas quando tenta entender qual o sentido do amor, um sentimento tão universal, mas, ao mesmo tempo, sempre em mudança conforme o contexto histórico de uma época. O amor aí vai enfrentar um novo olhar crítico do personagem, que ainda não conseguiu atualizá-lo em si mesmo. Só o fazendo ao leitor ao término da narrativa. De qualquer maneira, o conceito do amor, nesse tempo em que a história é narrada, não deixa de ter uma meditação nos conceitos de Beleza primordialmente deliberados por Platão em seu banquete socrático e perfeitamente dominados pelo autor do livro aqui analisado. A comprovação está nas inúmeras idealizações que Rudá faz sobre Ela, sua musa tão cobiçada, comparando-a até a uma deusa de vestido azul. Depois disso, o autor vai discorrer sobre os vários conceitos do amor e até mesmo sobre a origem da palavra a partir do grego Eros. Tal estratégia será útil para que ao final da história possamos perceber o choque de gerações com a decisão de Ela, a personagem dos sonhos de Rudá, ter o discernimento de encarar o amor como um sentimento também próprio das pessoas que se interessam por outras do mesmo sexo. A remanescência de novos valores morais começava a ganhar espaço, mesmo que de maneira polêmica, já nos 90, sem mais a opressão das décadas precedentes.
O misticismo é um ponto-chave na prosa de Pablo, porque enfatiza uma corrente de discussões em torno da existência humana e que passeia por questionamentos direcionados à moral do homem. Inúmeras devem ter sido as experimentações feitas pelo autor na busca de resultados para esse fim, uma vez que é perceptível em sua narrativa alusões sobre as mais variadas crenças religiosas, ritualísticas e até primitivas. O que nos faz relembrar a moral do filósofo alemão Nietzsche ao argumentar sobre o maniqueísmo dos tempos em sua obra Além do bem e do mal. É o encontrado em O sutra do girassol, último conto do livro, em que é nítida a insistência nesses apontamentos. A palavra sutra diz respeito a uma espécie de tratado indiano que, de acordo com a literatura, organiza em forma de aforismos todas as regras da moral, do rito e dos costumes. São provocações lógicas, e ao mesmo tempo complexas, sobre até que ponto o ser humano pode agir com racionalidade ou não no auge de sua essência. O girassol ligado à ideia do sutra talvez seja o único componente que sobreviveu ao estado de conturbação e brutalidade pelo qual passa o nosso planeta, já carente de ações positivas que recuperem a ética e os valores da humanidade. A cor amarela pode simbolizar, por exemplo, a amizade como um desses valores. Como falar de amizade em tempos tão competitivos e dinâmicos, nos quais parece valer a antiga máxima de Plauto: "o homem é lobo do homem"? Por coincidência, o personagem dessa terceira narrativa, Ariel, presente também em Pequenas catástrofes, mostra-se obcecado em levar adiante sua proposta de que é necessária a remodelação da raça humana ou até o seu fim para que outra raça superior possa substituí-la. Numa linguagem bastante interdisciplinar, isto é, demonstrando domínio acerca de conteúdos da área de Ciências exatas (física, astrofísica, química e genética), chegamos a deduções, às vezes até megalomaníacas do personagem, que acredita tê-las obtido a partir do instante em que se encontrava no banheiro de um bistrô, num suposto bairro elitizado da cidade, urinando durante uma tempestade magnética. Indiretamente, vamos reparar nas intenções de Ariel o mesmo projeto que o acompanhou em Pequenas catástrofes, quando, ao se deparar com o amigo e ex-colega dos tempos de escola, Max Deiman, um fotojornalista famoso, descobre que este mantém viva dentro de si mesmo a crença de que uma raça superior há de surgir na Terra. Porém, para que isso ocorra, só existe uma saída: a composição de uma droga híbrida para tornar esse sonho realidade e os problemas do planeta serem sanados. A substância química seria o Tetrapharmakon, atuante diretamente no DNA humano. Essa tese aparece em É preciso ter sorte quando se está em guerra, mas com uma outra roupagem, desta vez, atribuindo a mudança na estrutura genética ao fenômeno atmosférico. A verdadeira droga estaria assim tão alcance de nossas mãos? Seria tão fácil produzi-la? Parece que sim. Tanto que Ariel é dominado pela própria teoria, que lhe aparece em forma de outro ser inteligente, pouco visível aos seus olhos no final da história. Imbuído está nisso tudo o projeto Zarastustra, já mencionado em Pequenas catástrofes, e, pelo visto, revisado no gênero conto aqui experimentado por Pablo. Segundo este, tal projeto foi uma criação de James Ramsey que cria numa técnica que fosse capaz de pôr em prática todo o teorismo nietzscheniano acerca dos rituais de convivência do homem em seu próprio meio de vida.
Como se vê, o estilo de Pablo Capistrano ganha desdobramentos, à proporção que ensaia novos métodos de escrita ficcional e reanalisa o que já fora exposto. É inteiramente possível numa pesquisa, seja literária, seja não-literária, se oferecer uma nova óptica a respeito do objeto de investigação, sem, contudo, fugir ao tema. No caso da prosa capistraniana, é preciso muita habilidade, porque mexe-se obrigatoriamente com a linguagem, por se tratar de um texto artístico, e com o que se vai abordar nesse texto. Na passagem para um novo milênio, antigos receios do nosso porvir ainda incomodam as mentes mais brilhantes dos estudiosos de todos os campos do saber. Por que não principiar tal pertubação pela literatura? Eis que germina de nossa província uma obra que tem muito a nos ensinar com um toque sutil de originalidade o que ainda pensamos que está totalmente em nossas mãos: nosso destino.